Ciência

A faculdade que ajudou o Brasil a se redescobrir – 90 anos da FFLCH-USP

Do Jornal da USP. Está lá no dicionário: “Cellula Mater é uma expressão em latim que significa ‘célula mãe’ ou ‘célula original’”. Ou seja, é o princípio de tudo, a gênese primordial que vai pavimentar o caminho de coisas que se desenvolverão e crescerão.

Para Ruy Barbosa, por exemplo, a família é a cellula mater da sociedade, a primeira unidade social da qual um indivíduo faz parte, seu centro inicial de equilíbrio. A expressão está, também, no brasão da cidade de São Vicente, na Baixada Santista, representando o título que recebeu por ter sido a primeira vila fundada naquela porção de terra que viria a ser o Brasil, em 1532. 

Cellula mater, então, é a origem. E é assim que deve ser vista a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH. Ou, para sermos mais precisos, sua encarnação anterior – a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a FFCL.

Noventa anos atrás, foi a criação dessa robusta faculdade que deu alma à Universidade de São Paulo. Porque a USP já nasceu com tônus acadêmico, ao incorporar – de acordo com o decreto que a criou, em 25 de janeiro de 1934 –  faculdades e institutos de ensino superior que já existiam há décadas, como a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Direito e a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz, esta em Piracicaba.

A musculatura, a história e a experiência no ensino universitário, então, já existiam e ajudaram que aquela recém-nascida universidade começasse a ocupar o seu espaço estruturada. Mas as faculdades que a compunham já tinham seu passado, sua própria quilometragem acadêmica.

Era necessário que a USP também tivesse, mais do que um corpo que lhe desse sustentação, uma alma inspiradora – e assim, como cellula mater e também como uma alma mater, foi criada aquela que hoje é conhecida, destarte todas as siglas que a identificaram ao longo de décadas, como “Fefeleche” – mais que um acrônimo, um autêntico nome próprio.

Afinal, a hoje FFLCH foi criada para criar a USP, para ser sua base original. E assim foi. De suas salas de aula e de seus departamentos espalhados inicialmente pela cidade de São Paulo – tempos da icônica Rua Maria Antônia, da Rua Maranhão, da Alameda Glete e tantos outros espaços antes da Cidade Universitária – e depois no campus do Butantã, saíram alunos que se tornaram mestres e que ajudaram a pensar o Brasil de várias formas, a interpretar um país que, ainda hoje, requer uma interpretação mais detalhada e minuciosa – gente que não só inscreveu seu nome em pesquisas de ponta, nas salas de aula, em órgãos nacionais e internacionais e mesmo na Presidência da República, no caso o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, formado na antiga FFCL, professor da faculdade, cassado pelo regime militar e que teria uma carreira política para além da Universidade. 

O Brasil não é para amadores, já se disse certa vez. E aqueles homens e mulheres que foram educados e formados pela Faculdade de Filosofia estavam longe de ser amadores. Eram profissionais do ensino e do pensamento, eram estilistas do raciocínio – lógico e humanista – que deitaram um olhar atento sobre o País, sobre as ciências e sobre tudo o que poderia envolver nossa sociedade. “É um espaço de crítica, de memória e de resistência”, afirmou recentemente a respeito da FFLCH a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, atual vice-reitora da USP e ex-diretora da faculdade.

Seria injusto aqui fazer uma listagem de todos os grandes nomes que passaram pela FFLCH ou que lá ainda estão e que deram muito de si para interpretar o Brasil em seus mais variados matizes – como um grande caleidoscópio que forma imagens ao mesmo tempo distorcidas e belas, e que precisam ser compreendidas. Mas cada departamento da antiga FFCL ou da atual FFLCH gerou pelo menos um grande, enorme nome inconteste na sua área, que ganhou ressonância no Brasil e no exterior. Certamente até mais de um. Quer ver?

Para não correr o risco de injustiça ou de esquecimento, fiquemos apenas com alguns que não estão mais entre nós: na geografia, Aziz Ab’Sáber e Milton Santos. Na sociologia, Florestan Fernandes e Octavio Ianni; nas letras, Antonio Candido e Alfredo Bosi; na história, Sérgio Buarque de Holanda e Eurípedes Simões de Paula; na física, Mário Schenberg; na filosofia Ruy Fausto e Bento Prado Jr. Esta rápida lista poderia continuar por muito mais linhas, mas ela, em si, com esses poucos e inegáveis nomes, já é suficientemente incontestável para demonstrar a importância da faculdade para a USP e – mais ainda – para o Brasil.

E de nada adiantou os senhores fardados – e mesmo quem trajava paletó e gravata mas que tinha no verde-oliva um estado de espírito – terem fatiado a antiga FFCL em finais da década de 1960, em uma reforma universitária para lá de questionável. Naquela reforma, a FFCL foi desintegrada – assim como todas com a mesma nomenclatura Brasil afora –, virou FFLCH e da unidade original saíram os hoje Institutos de Matemática e Estatística, de Geociências, de Química, de Física, de Psicologia, por exemplo.

Na nova FFLCH, ficaram as Humanidades. Mas, subvertendo a máxima que alguns creditam a Júlio César, outros a Napoleão, do divide et impera – ou dividir para conquistar, a FFLCH (com suas novas ramificações) foi dividida, mas não conquistada. Na verdade, ela foi dividida e conquistou. Hoje, a FFLCH apresenta números hiperbólicos: são cinco cursos de graduação, 23 programas de pós-graduação, 11 departamentos, 14 mil alunos, 300 funcionários, 420 professores, seis prédios, uma biblioteca com mais de 300 mil volumes.

Talvez esse seja um bom momento para se olhar no retrovisor e se admirar o passado, a origem desse gigante – como bem define a jornalista Leila Kiyomura (clique aqui para ler a reportagem). A FFLCH, ou a FFCL, não surgiu de geração espontânea nem pavimentou sua trajetória sem esforço, dedicação (é um clichê, mas também uma verdade) e gente de várias latitudes disposta a fazer daquela ótima ideia que hoje tem 90 anos uma realidade.

Jovens e promissores estrangeiros

Na criação da USP, a grande novidade, sem dúvida, era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), idealizada como um ambiente que deveria reunir as mais diversas áreas do saber. Mas quem seriam os professores dessa nova faculdade? A intenção era trazer intelectuais e pesquisadores europeus, não necessariamente com experiência acadêmica.

Para levar essa ideia adiante, foi preciso uma espécie de triunvirato, formado por Júlio de Mesquita Filho – dono do jornal O Estado de S. Paulo e um dos principais idealizadores da criação da USP –, Georges Dumas, porta-voz do Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour les relations avec l’Amérique Latine (1907-1940) e responsável pela criação, em São Paulo, do Liceu Franco-Brasileiro e do Instituto Técnico Franco-Paulista, fundados em 1925 – e pelo professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica e primeiro diretor da recém-criada FFCL. 

Os laços pessoais estabelecidos entre Dumas e Júlio de Mesquita Filho, ao lado da francofilia reinante entre os membros das elites ilustradas brasileiras, são dois dos fatores que podem explicar a escolha de franceses para compor o corpo docente da Universidade no domínio das Humanidades. Mas não só franceses: para lecionar na recém-fundada unidade vieram também, entre 1934 e 1944,  italianos, alemães e alguns poucos portugueses, espanhóis e estadunidenses. A chegada desses estrangeiros possibilitou a criação de uma universidade com formações diversas, pouco exploradas até então no Brasil: a maior parte deles foi convocada para ministrar disciplinas de áreas como filosofia, biologia, química, física, matemática, história e sociologia.

Coube, então, a Teodoro Ramos a contratação dos professores estrangeiros. E ele tinha uma missão adicional: não contratar professores consagrados. A proposta era encontrar jovens que estivessem dispostos a vir criar uma universidade em um país distante como o Brasil. Na verdade, a contratação dos professores – principalmente os franceses, naquela que ficou conhecida como “missão francesa” – se deu em três fases distintas. 

Em 1934, são contratados professores experientes em universidades e liceus franceses, com o objetivo de abrir os cursos. Dos seis nomes que compõem essa primeira leva — Émile Coornaert (história), Pierre Deffontaines (geografia), Robert Garric (literatura francesa), Paul-Arbousse Bastide (sociologia), Étienne Borne (filosofia e psicologia) e Michel Berveiller (literatura greco-latina) — somente Berveiller e Arbousse-Bastide renovaram os seus contratos com a Universidade no ano seguinte. Em 1935, o perfil do grupo já era outro, assim como a duração dos contratos, agora de três anos: são agora jovens agrégés, sem experiência no ensino superior, com exceção de Fernand Braudel, na época com 32 anos.

Além do professor de história, chegam ao País neste momento Pierre Hourcade (literatura francesa), Pierre Monbeig (geografia), Claude Lévi-Strauss (segunda cadeira de sociologia, na época professor secundarista e com 26 anos) e Jean Maugüé (filosofia, que Antonio Candido considerava seu professor mais marcante). A partir de 1938, são convidados docentes mais velhos, e chegam Roger Bastide, substituindo Lévi-Strauss, Jean Gagé (no lugar de Braudel), Alfred Bonzon (literatura francesa) e Paul Hugon (economia), que se estabelecerá definitivamente no País. 

“A seleção desses professores teve um critério totalmente aleatório. Lévi-Strauss conta, no primeiro capítulo de Tristes Trópicos, que era formado em filosofia, mas desejava ser antropólogo.

Relembra que, num certo dia, recebeu um telefonema de um filósofo, seu professor, perguntando se continuava com a ideia de estudar índios. Diante da confirmação, esse professor disse:

‘Então, você precisa falar com Georges Dumas, pois ele está organizando uma missão que vai para uma universidade em São Paulo, recém-criada; e nos arredores dessa cidade enxameiam índios’. Esse foi o critério para a escolha de Lévi-Strauss”, relembrou o historiador Fernando Novais ao site Terra.

E a preferência pelos franceses para lecionar na área de Humanidades não foi um acaso: naquela época, a Alemanha vivia o começo de um governo nazista e a Itália, há mais de uma década, convivia com o fascismo de Mussolini. A França era uma democracia e, por isso, muito das disciplinas de humanidades foram direcionadas principalmente a professores daquele país. Já as de ciências exatas e naturais, que se acreditavam menos voltadas para a formação reflexiva e ideológica do estudante, foram entregues a alemães e italianos.

É nesse caldo geopolítico-acadêmico que também chegam à FFCL nomes como o físico russo naturalizado italiano Gleb Wataghin, o botânico e pesquisador alemão Felix Rawitscher e o químico alemão Heinrich Rheinboldt.

E antes que alguém pergunte, sim: as aulas eram dadas nos idiomas nativos dos professores estrangeiros. O crítico e professor Antonio Candido costumava afirmar que a USP “era uma universidade francesa. Se falava francês pelos corredores, mesmo entre os alunos”. “Usavam avental branco, com a ideia de que eles eram cientistas. Sabe-se que notas muito altas não eram comuns”, comentou, no Jornal da USP, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda.

Formação e transformação – vias de mão dupla

Na verdade, a vinda dos professores estrangeiros para a USP proporcionou não só a formação, mas a transformação acadêmica de todos os envolvidos. Todos, ressalte-se. Tanto jovens alunos e um pouco menos jovens professores se aproveitaram dessa via de mão dupla e pavimentaram sua trajetória intelectual, muitos deles ganhando reconhecimento mundial. Braudel, por exemplo, quando veio para São Paulo, ainda não tinha publicado sua tese, apenas uma ou outra resenha. Ele chegou a escrever em um de seus últimos trabalhos que sua passagem pelo Brasil foi uma das épocas mais felizes de sua vida. Alguns brasileiros citam exaustivamente uma outra afirmação feita por ele – a de que “se tornou inteligente no Brasil, em São Paulo especialmente”.

Já a obra de Roger Bastide se beneficia das pesquisas realizadas no Brasil sobre folclore, artes, religiões e relações raciais, assim como de distintas tradições intelectuais nacionais, que ele lê e comenta. As religiões afro-brasileiras, um de seus principais temas de interesse, foram trabalhadas tanto do ponto de vista sociológico quanto etnográfico.

A curiosidade pela compreensão das relações entre negros e brancos, precocemente despertada, vai ganhar novo fôlego nos anos 1950, quando ele coordena com Florestan Fernandes uma pesquisa em São Paulo, patrocinada pela Unesco. É a partir dessa experiência que ele vai escrever diversos artigos, refletindo sobre a inserção do negro na estrutura social e o racismo.

Mas a via é de mão dupla, certo? Antonio Candido relembrou a passagens de seus mestres gauleses por terras tropicais: “Vivíamos tão impregnados de cultura francesa, na classe média brasileira, que às vezes conhecíamos melhor as coisas da França e da Europa do que as coisas do Brasil.

Eles levaram seus estudantes a se interessar por temas como o problema do negro, o problema do caboclo, o crescimento das cidades brasileiras, o pobre em São Paulo, as zonas de colonização do Paraná e as formas de ocupação de terras nos empreendimentos agrícolas, por exemplo”. Ou seja, foram os professores estrangeiros os responsáveis por proporcionar a seus alunos um olhar mais atento sobre as coisas brasileiras.

Sem exagerar, com extrema sinceridade e percepção, o professor Antonio Candido resumiu dessa forma uma das principais lições de seus mestres – e que, no final das contas, acabou por ser tornar uma das grandes missões da FFCL/FFLCH: “Devemos a alguns desses professores franceses a descoberta do Brasil”, afirmou Candido. 

FFLCH oferece mais de 1.600 vagas em 22 cursos gratuitos em março; veja lista – Juliana Brocanelli/Jornal do Campus/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

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Pedro Zambarda

É jornalista, escritor e comunicador. Formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e em Filosofia pela FFLCH-USP. É editor-chefe do Drops de Jogos e editor do projeto Geração Gamer. Escreve sobre games, tecnologia, política, negócios, economia e sociedade. Email: dropsdejogos@gmail.com ou pedrozambarda@gmail.com.

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