“Nós precisamos de menos pesquisas, pesquisas melhores e pesquisas feitas pelas razões certas”.
Embora continuemos a precisar de mais pesquisa, a frase acima, dita há mais de 30 anos pelo célebre professor de estatísticas em Medicina Douglas Altman, já expressava uma preocupação que permanece e se intensificou nos últimos anos.
Hoje, temos mais ferramentas para produzir artigos rapidamente, e a pressão do “publique ou pereça” (jargão referente à pressão que pesquisadores sofrem para publicar cada vez mais artigos), gera uma produção cada vez maior de artigos de má qualidade. Isso pode ser visto no aumento recente do número de artigos que sofreram retratação, isto é, que foram considerados com falha metodológica ou má conduta científica: eles saltaram de 2.000 em 2013 para 10.000 em 2023:um crescimento da ordem de 500%.
Embora muitos desses artigos de baixa qualidade não afetem diretamente a academia ou o cotidiano das pessoas, eles representam um desperdício de investimento de tempo e recursos que poderiam ser melhor aplicados. Contudo, alguns desses artigos podem causar grandes estragos na sociedade, gerando desconfiança sobre a ciência.
Um exemplo marcante é o artigo do ativista Andrew Wakefield e equipe, publicado em 1998 e retirado em 2010, mas que ainda hoje alimenta o movimento antivacina e estimula oposições cientificamente injustificáveis àquela que é sabidamente a ferramenta de promoção de saúde pública mais eficaz já criada.
“Pesquisas” de má qualidade técnica como a de Wakefield podem minar a confiança pública nas vacinas, resultando em uma queda na cobertura vacinal e no retorno de doenças antes controladas.
Atualmente, artigos que ligam as vacinas contra a COVID-19 ao desenvolvimento de várias doenças também podem afetar a confiança pública nas vacinas, já abalada pela grande quantidade de desinformação intencional presente nas redes sociais. Os resultados destes estudos não são confiáveis, pois sofrem de diversos problemas metodológicos que comprometem a qualidade dos resultados.
Três artigos recentes ilustram essa questão. O primeiro , de março de 2024, sugere aumento de risco de vitiligo (doença caracterizada pela perda da coloração da pele) após a vacinação contra COVID-19.
O segundo artigo, de maio de 2024, avalia o desenvolvimento de doenças neurológicas após a vacinação, sugerindo um aumento de risco de déficit cognitivo leve e doença de Alzheimer após a vacinação.
Já o terceiro, de junho de 2024, avaliou o desenvolvimento de doenças psiquiátricas após a vacinação. Nesse estudo, os autores sugerem que a vacina aumenta o risco de depressão, distúrbios de sono e ansiedade, e diminui o risco de esquizofrenia e distúrbio bipolar.
Todos os três artigos apenas acompanham os pacientes por três meses. Em todos estes artigos há um problema de amostragem evidenciado pela diferença entre a população de vacinados e não vacinados. O grupo não vacinado variou entre 9% e 15%, o percentual é bastante reduzido comparado à população vacinada, o que pode refletir diferenças importantes nas características dos indivíduos, como diferença no acesso a serviços de saúde.
Se há diferenças no acesso a serviços de saúde, o grupo sem acesso além de não ser vacinado também não será diagnosticado com as doenças de interesse. Dessa forma, vai parecer que a vacinação aumenta o risco de desenvolver a doença: no grupo vacinado a doença é diagnosticada porque há acesso a serviço de saúde, o que não ocorre entre não vacinados. Esse tipo de problema é claro no terceiro artigo, que sugere um aumento de risco para depressão uma semana após a segunda dose da vacina, um período muito curto para desenvolver a resposta imunológica à vacina.
É importante nesses estudos, comparando vacinados e não vacinados, também comparar o desenvolvimento de uma doença que sabidamente não tem relação com a vacinação para avaliar a possibilidade de achados espúrios. Um estudo na Dinamarca, avaliou a realização de vários exames como biópsia de próstata, cirurgia de catarata e mamografia entre o grupo vacinado e não vacinado. Os autores encontraram que os vacinados apresentavam maior risco para todos os desfechos analisados. Destacando a importância de se considerar as diferenças de acesso ao serviço de saúde entre os dois grupos.
Os três estudos citados também falham em clareza metodológica e métodos estatísticos aplicados, o que impede o julgamento da existência de outros vieses. Adicionalmente, nenhum dos artigos discutem sobre os possíveis problemas oriundos da incapacidade de controlar devidamente as diferenças entre os grupos vacinados e não vacinados, e nem o potencial dos resultados serem afetados por vieses.
Durante a pandemia de COVID-19, outros exemplos de má ciência nutriram o movimento antivacina e espalharam desinformação. Um artigo com clara má interpretação de dados, associando a vacinação ao aumento de risco de óbito e outro artigo, com numerosos problemas metodológicos, associando o uso de máscaras a efeitos adversos em crianças. Embora esses artigos tenham sido rapidamente retratados, o dano já estava feito.
Um aspecto crucial na avaliação de artigos científicos, é o que chamamos de plausibilidade biológica: a coerência dessa conclusão em relação ao conhecimento existente. Nos três artigos citados, essa plausibilidade biológica é mínima, já que acompanhamentos de apenas três meses são insuficientes para conclusões sobre o desenvolvimento de condições crônicas que levam anos para o aparecimento.
Em resumo, o potencial de estudos de má qualidade em causar impacto sobre a saúde pública e propagar preconceitos reflete a necessidade urgente de reformar o panorama das publicações de pesquisa científica. É preciso estimular análises da qualidade metodológica, integridade e transparência, além de incentivar e valorizar a replicação de estudos para validar descobertas.
Além disso, é importante ressaltar, tanto para profissionais de saúde quanto para o público em geral, que evidências científicas robustas são baseadas em múltiplos estudos replicados e validados. Um estudo pode fornecer ideias iniciais valiosas, mas suas conclusões precisam ser verificadas por pesquisas subsequentes para garantir precisão e generalização dos resultados. A evidência científica robusta surge da consistência de achados através de múltiplos estudos, realizados em diferentes contextos e populações, e utilizando metodologias variadas.
Valorizar a pesquisa de melhor qualidade e conduzida com o intuito de melhorar a saúde do individuo e da sociedade é um fator fundamental para que os estudos científicos embasem intervenções fundamentadas em evidências sólidas, aumentando assim a probabilidade de promover avanços e melhorias na saúde da população.
*por Thiago Cerqueira-Silva, Pesquisador da Fiocruz Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA); Manoel Barral-Netto, Presidente da ACB, Academia de Ciências da Bahia (ACB); Viviane Boaventura, Pesquisadora da Fiocruz e Professora da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA) | publicado no The Conversation
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