Saiba interpretar um artigo científico, porque ler notícia já não basta - Drops de Jogos

Saiba interpretar um artigo científico, porque ler notícia já não basta

Entender um paper pode te salvar de cair em conteúdo sensacionalista fantasiado de ciência

como interpretar um artigo científico

(Créditos: rawpixel.com/Freepik)

Nos últimos anos, virou moda a imprensa cobrir temas científicos. Não me entenda mal, eu quero é que a ciência nunca fique fora de moda mesmo. O problema é como essa cobertura tem sido feita. O que deveria servir como uma firme ponte entre o artigo científico original e o leitor muitas vezes se mostra mais uma ‘ponte do rio que cai’ do que qualquer outra coisa.

Sim, estou falando do bombardeio de notícias pautadas em dados distorcidos, levando a conclusões erradas, atraindo cliques com títulos alarmistas e sendo assinadas por autores que aparentam ter zero arrependimentos de seus atos irresponsáveis. Enfim, todo esse sensacionalismo puro que estamos sempre criticando aqui no Drops.

Se você quer entender de fato o que está sendo pesquisado por aí — e separar descobertas legítimas de ruído midiático —, você vai precisar ir direto à fonte. Estamos falando dele mesmo: o famigerado artigo científico, também chamado de paper. E não, você não precisa ser cientista e destrinchar um paper de cabo a rabo para ficar bem informado. Mas você precisa aprender a navegar por ele, precisa aprender a interpretar um artigo científico mesmo sendo leigo no assunto.

Não dá para confiar cegamente na imprensa

Publicações jornalísticas sobre ciência costumam se basear em artigos científicos — ou pelo menos deveriam. O problema é que, entre o estudo original e a matéria publicada, muita coisa pode se perder (ou ser inventada).

Às vezes, o jornalista nem leu o artigo. Às vezes até leu, mas entendeu tudo errado. Outras vezes, traduziu mal e porcamente uma matéria gringa, ou simplesmente ‘mastigou’ tanto a informação que ela acabou virando outra coisa. Mas a verdade nua e crua é que em boa parte dos casos nem isso foi feito.

Eu afirmo com conhecimento de causa (e com muito pesar) que, em muitas notícias de ciência da atual imprensa brasileira, o redator só replicou o que outros sites publicaram, porque o tema está em alta e a pressa fala mais alto que a perfeição. Sem checagem alguma das informações, sem nem 1 minuto investido em validação de qualquer tipo.

Em 11 de novembro de 2024, apesar de um instituto de meteorologia declaradamente negar a ocorrência de um ciclone bomba no Brasil, a imprensa apressadinha saiu em peso afirmando que o fenômeno iria acontecer, mandando a responsabilidade às favas

Quando o objetivo é publicar rápido, a qualidade vai embora. E você, leitor, fica com uma ideia distorcida do que realmente está acontecendo. Por isso, saber ler o artigo original pode ser a diferença entre se informar de verdade e virar massa de manobra de desinformação disfarçada de conhecimento.

Há diferentes tipos de artigo científico

Nem todo artigo científico é igual. Existem tipos diferentes, sendo que os dois mais comuns são os artigos de revisão e os  artigos de pesquisa primária.

Os artigos de revisão funcionam como um panorama de um assunto. Seus autores analisam diversos estudos sobre aquele mesmo tema e apresentam uma visão geral do tema, uma síntese, uma… revisão. E mesmo com conclusões divergentes sobre aquilo, o que vale na ciência é o que se estabelece como consenso científico entre os especialistas daquele campo.

Por isso artigos de revisão são tão importantes. Ainda, eles são mais acessíveis para ‘o povão’, porque trazem explicações digeridas de dados já organizados — ou seja, são bons exemplos de artigos científicos para leigos.

Já os artigos de pesquisa primária são os que trazem os dados brutos do próprio experimento, além de análises e conclusões feitas pelos autores da pesquisa. São mais técnicos, mais detalhados e, por isso mesmo, mais úteis se você quer entender exatamente o que foi feito e o que os pesquisadores concluíram.

Anatomia de um artigo científico

Se você decidir ler um artigo de pesquisa primária, saiba que ele provavelmente será dividido em seis partes principais. E cada seção de um paper exige uma leitura diferente.

A estrutura padrão de um artigo científico costuma ter os seguintes blocos:

  • Resumo (abstract): Apresenta os objetivos, métodos e principais achados. Mas não se engane: o resumo não traz, sozinho, todas as respostas. O maior erro do leigo é ler apenas o resumo e achar que entendeu tudo.
  • Introdução: Mostra o tema, o problema investigado e o contexto. Se esta parte parecer ter sido escrita em um idioma alienígena pra você, talvez seja melhor procurar um artigo de revisão sobre o assunto antes de seguir com a leitura do artigo de pesquisa primária.
  • Materiais e métodos: Aqui ficam os detalhes técnicos da pesquisa. Esta parte permite entender como os dados foram gerados, de onde eles vieram.
  • Resultados: Seção densa, cheia de cálculos, gráficos e tabelas. Mas é aqui que a mágica (ou o fracasso) acontece.
  • Discussão e conclusão: Nesta parte, os autores interpretam os próprios achados. São opiniões embasadas, mas ainda assim são opiniões. Não são verdades absolutas e podem ser refutadas por outros cientistas, em outros papers.
  • Referências: Traz a bibliografia usada. Útil pra quem quiser checar as fontes ou se aprofundar ainda mais no assunto.

Dicas para ler um artigo científico sendo leigo

Um artigo científico ‘raiz’ pode parecer intimidador à primeira vista para uma pessoa leiga. E é mesmo, tá tudo bem. Mas com algumas dicas de ouro, dá para encarar essa missão — que de impossível não tem nada.

Para interpretar um artigo científico com maestria, mesmo sendo leigo, faça o seguinte:

  1. Comece pela introdução, não pelo resumo. O resumo pode ser raso e tendencioso. A introdução dá a base que você precisa pra entender todo o resto.
  2. Descubra qual é o problema central do estudo. Em vez de pensar “sobre o que é?” o artigo, pergunte-se “qual problema este artigo tenta resolver?”.
  3. Analise os resultados com calma. Gráficos e tabelas dignos do meme da Nazaré Confusa podem ser mais honestos do que manchetes for dummies.
  4. Veja se os resultados respondem às perguntas da introdução. Isso ajuda a avaliar a coerência do estudo.
  5. Não pule a discussão/conclusão. Mesmo com possíveis vieses, é útil entender como os autores interpretam seus dados.
  6. Só depois disso leia o resumo. Se já tiver ‘queimado a largada’ e lido o resumo antes de tudo, beleza, mas volte a ele depois de ter passado pela introdução, pelos resultados e pela discussão. Com todo o contexto em mente, ele vai fazer bem mais sentido.
  7. Pesquise sobre os autores e sobre o periódico onde o paper foi publicado. Nem toda revista científica é confiável, e nem todo pesquisador é isento.

Ser leigo não é sinônimo de ser burro

Você não precisa virar cientista para ler sobre ciência, para buscar entender a ciência. Mas precisa ter o mínimo de senso crítico e de pé atrás quando se depara com manchetes chamativas sobre descobertas da ciência.

Lembre-se da máxima popularizada por Carl Sagan, lendário cientista e um dos maiores divulgadores científicos da história: “Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”. Afinal, estamos na era das fake news — e ignorar este fato é, por si só, estar desinformado.

Aprender a ler artigos científicos é uma ferramenta poderosa pra navegar em segurança num mar de informações (e desinformações), e quem sabe até pra formar uma opinião que seja, de fato, sua. É uma maneira trabalhosa, mas gratificante, de escapar da avalanche de notícias científicas erradas que pipocam quase que todos os dias por aí.

No fim das contas, ler um paper é como decifrar um mapa: ele mostra os caminhos, os atalhos e também os buracos. Cabe a você escolher se vai seguir pela estrada certa ou se prefere tropeçar em todo clickbait sem-vergonha que aparecer na sua frente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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