Ciência

De revolução farmacológica à abortivo ilegal, mídia estigmatizou misoprostol e difundiu desinformação, conclui pesquisa

Da Agência Bori. De revolução farmacêutica capaz de tratar úlceras gástricas a “droga mortal e abortiva”, a vida pública da medicação misoprostol, comercialmente conhecida como Cytotec, foi retratada de forma estigmatizada pela imprensa no Brasil. Isso é o que conclui pesquisa da Universidade Federal de Goiás, publicada na Revista Brasileira de Ciências Sociais, após análise da cobertura jornalística no país, ao longo de quatro décadas.

A medicação, desenvolvida na década de 1970 como uma inovação científica capaz de tratar a úlcera gástrica, mal que atinge uma a cada dez pessoas no mundo, levou menos de uma década para ocupar as manchetes de jornais brasileiros de grande circulação como um risco à saúde pública, por seu efeito abortivo.

Em 1988, o jornal O Globo já relatava o “mau uso” do Cytotec como abortivo por mulheres brasileiras e também a indicação médica para indução do aborto, em casos de fetos sem vida, no sistema público de saúde.

Nas décadas que se seguiram, a medicação passou a ocupar as páginas do jornais na grande maioria das vezes com referências a supostos riscos à saúde da mulher, ao aumento do consumo ilegal, à restrição do acesso à medicação por órgãos de controle, além de manchetes policiais, com flagrantes de venda ilegal, inclusive na internet.

Segundo a pesquisa da UFG, de 1980 a 2019, mais de 200 matérias jornalísticas fizeram referência ao medicamento nos jornais Folha de S.Paulo (105), O Estado de S. Paulo (58) e O Globo (40).

O ápice das publicações ocorreu entre os anos de 2000 e 2009. Só nessa década, com a escassez de acesso ao remédio diante das restrições impostas pela Anvisa no fim dos anos 1990, é que a mídia passou a pautar temas como desafios ao acesso a aborto nos casos previstos em lei, problemas decorrentes da criminalização do aborto e perfil das mulheres que mais recorriam à prática no país.

Com título “Maioria das brasileiras que abortam são católicas”, a Folha de S. Paulo trazia este perfil levantado por pesquisa da Universidade de Brasília e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nessa matéria de 2008, segundo a pesquisa, o tema foi tratado de forma equilibrada, e a medicação foi tratada como um método seguro para a saúde da mulher, em caso de aborto.

Para Mariana Prandini Assis, uma das autoras do artigo, apesar da extensa cobertura midiática, não houve empenho em discutir como a medicação transformou o aborto clandestino em um procedimento mais seguro, tanto do ponto de vista biomédico quanto legal.

“Essa cobertura jornalística, centrada em temas como apreensões policiais, ‘uso ilegal’ e ‘mau uso’, reforçou o estigma e a criminalização do aborto, contribuindo para manter um marco regulatório punitivo e um imaginário social que trata o medicamento como ameaça, e não como um recurso essencial de saúde pública e para a vida reprodutiva de milhões de brasileiras”, diz.

Assis diz que a mídia é um ator central na construção social dos fármacos — ajudando a definir quem tem acesso a eles, sob quais condições e com quais significados morais e políticos.

“O artigo oferece subsídios importantes para as políticas públicas de saúde, ao evidenciar que a desinformação midiática tem impacto direto sobre a regulação e, portanto, o acesso a medicamentos essenciais, perpetuando desigualdades e riscos à saúde reprodutiva das mulheres e outras pessoas que gestam”, conclui a pesquisadora.

Drops

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