Astronauta brasileira da NASA? Quem lançou isso foi a mídia. Pois é: a imprensa criou a manchete. Mas a garota se calou ao ver o circo armado. Então todo mundo fez m*rda nessa história. Quer dizer, quase todo mundo — o youtuber Pedro Pallotta, do canal Space Orbit, e a redação do G1 foram os primeiros que sentiram cheiro de falcatrua no ar, e fizeram questão de trazer a verdade aos holofotes.
Nas últimas semanas, o Brasil acreditou estar diante de um marco histórico: uma jovem mineira de apenas 21 anos teria sido aprovada pela NASA e, portanto, se tornaria a primeira astronauta brasileira. A história viralizou com força: manchetes escandalosas, reportagens em rede nacional, perfis emocionados exaltando a conquista. E quase ninguém desconfiando de que ‘algo de errado não estava certo’.
O nome que entraria para as páginas da história é Laysa Peixoto. Mas, em vez de este ser o livro “História do Brasil”, seu nome vai acabar indo para as páginas do livro “As mais incríveis fake news da história brasileira”. É que ela não foi aprovada pela NASA para se tornar astronauta. Mas o buraco é mais embaixo: a imprensa sequer tentou confirmar a informação antes de publicá-la. E deixando este buraco ainda mais fundo: a brasileira não ficou de inocente neste causo, já que, ao ver a desinformação se espalhar, Laysa permaneceu em silêncio, colhendo os louros da narrativa mentirosa.
Então a origem da confusão — mais uma vez — foi a pressa irresponsável da imprensa brasileira, que confundiu turismo espacial com missão científica da NASA, confundiu Google Tradutor com apuração de verdade, e em alguns casos ainda ‘confundiu’ furo de reportagem de terceiros com fonte exclusiva. Um verdadeiro show de horror.
A imprensa errou, mas Laysa se calou (e se beneficiou da confusão)
O estopim do circo midiático foi um post feito por Laysa Peixoto no dia 5 de junho, em seu perfil pessoal no Instagram.
Entre outras coisas, a publicação diz o seguinte:
“Fui selecionada para me tornar astronauta de carreira […] Sou oficialmente astronauta da turma de 2025 […] comandado pelo astronauta veterano da NASA, Bill McArthur.”
Nenhuma menção direta à NASA como contratante. Nenhuma afirmação objetiva de que teria sido aceita por um programa oficial da agência. Mas uma escolha extremamente calculada de palavras, capaz de induzir leitores mais ignorantes sobre o assunto — ou jornalistas apressadinhos — a concluir exatamente isso, que isso teria algo a ver com uma seleção de astronautas por parte da NASA.
Claro que foi isso o que aconteceu. A imprensa, sempre ávida por manchetes bombásticas, viu a palavra “astronauta” no mesmo parágrafo da palavra “NASA” e correu gritando aos quatro ventos: conheça Laysa Peixoto, a nova astronauta brasileira da agência espacial americana; ela é de Minas Gerais e tem apenas 21 anos, uau que incrível!
Mas não pense que Laysa é inocente nessa história. Ela viu o delírio se espalhar e não fez nada. Sabe aquela expressão “quem cala, consente”? Pois bem. A garota viu seu nome nos principais veículos do país, sendo chamada de astronauta da NASA e não desmentiu. Laysa poderia (deveria, né) ter feito um segundo post dizendo algo como: “Gente, não confundam: fui selecionada por uma empresa privada, não pela NASA”.
Mas ela não fez nada. E enquanto o alcance crescia, seus seguidores aumentavam, sua imagem se consolidava como “astronauta brasileira da NASA” e ela seguia colhendo os frutos dessa mentirada, mesmo sem ter sido a autora direta da fake news do momento.
Resumo da ópera: a imprensa mais uma vez errou feio, errou rude e obteve receita imediata com uma explosão de audiência e engajamento. Laysa deixou tudo isso acontecer porque também estava lucrando com isso. Quem perde, novamente, é a sociedade, que continua sendo ‘emburrecida’ ao depender desta mídia fanfarrona para se informar no dia a dia.
Não é a primeira vez que isso acontece. Infelizmente, não será a última…
No jornalismo, não existe “isso parece verdade, então vou dizer que é verdade”. Ou você confirma, ou você não publica. Se decidir publicar, você deixa claro que não se sabe se aquilo é a verdade. Você explica por que aquilo parece verdade, e por que não se confirmou ser a verdade. Você aborda todos os lados da história. Você mostra ao leitor os “o quê”, “como”, “quando”, “quem”, “por quê”. Isso é jornalismo básico, que a gente aprende logo que entra na faculdade.
Só que o que aconteceu aqui foi o contrário: a jovem postou nas redes que foi aprovada para participar de uma missão espacial da Titans Space Industries, empresa privada dos Estados Unidos, contando que o comandante da missão, chamando Bill McArthur, é um astronauta veterano da NASA. E essa foi a senha para a mídia transformar uma viagem turística comercial prevista para 2029 em uma “aprovação oficial da NASA”.
E assim, a manchete se escreveu sozinha: sem checagem, sem apuração, sem contato com a própria NASA e com a própria Laysa para se confirmar qualquer coisa. O lead jornalístico ficou lá nas aulas do primeiro período da graduação em jornalismo, não chegando à prática jornalística de fato.
Drops vem cobrindo a palhaçada da imprensa brasileira na divulgação científica
Eu venho apontando os meus dedos para esse problema recorrente sempre que acontece algum caso grotesco como este aqui. Na lista abaixo, você pode ler todas as reportagens que eu já publiquei aqui no Drops trazendo análises críticas e afiadas de recentes fiascos homéricos do jornalismo brasileiro em pautas científicas:
- “NASA confirma”: a imprensa brasileira desistiu do jornalismo
- Ciclone bomba é a bola da vez no sensacionalismo da imprensa
- Alerta de terremoto no Brasil: ataque hacker ou falha técnica?
- O que é ciência? Entenda o método científico e fuja das fake news
- Saiba interpretar um artigo científico, porque ler notícia já não basta
Também recomendo a leitura do meu artigo de estreia no Drops, Não deixe o jornalismo morrer, não deixe o jornalismo acabar, que acabou se tornando um verdadeiro manifesto, um doloroso desabafo, uma súplica, um soco na cara desta vergonhosa situação do jornalismo brasileiro atual.
Por que não dá pra ser astronauta da NASA aos 21 anos?
Os critérios da NASA para aceitar candidatos a astronauta são públicos, claros e exigentes. Se alguém dessas redações tivesse parado dois minutos (ou menos) para pesquisar, teria visto que não há como uma brasileira de 21 anos sem mestrado, sem cidadania americana e sem mil horas de voo se tornar astronauta da NASA.
Quais são os requisitos da NASA para se tornar astronauta? São muitos e bastante criteriosos. Veja os principais:
- Ser cidadão dos Estados Unidos
- Ter mestrado em alguma área STEM (ciência, tecnologia, engenharia ou matemática)
- Ter pelo menos dois anos de experiência profissional ou 1.000 horas de voo em aeronave a jato
- Passar por testes físicos rigorosos para missões espaciais
- Ser aprovado em entrevistas de processos seletivos oficiais e treinar por dois anos nos centros oficiais da NASA nos EUA
E mesmo entre quem cumpre todos os critérios, poucos são selecionados. Apenas uma ‘elite’ passa. E não se vira astronauta da NASA por ser uma espécie de’ influencer espacial’ nas redes sociais.
Space Orbit investigou e desmontou a farsa da astronauta da NASA
Diante da repercussão, o canal Space Orbit — especializado em temas aeroespaciais — decidiu fazer o que ninguém nos grandes veículos tinha feito: investigar.
O relatório publicado pelo canal revela:
- A descoberta de um asteroide feita por Laysa em 2021 é legítima, mas foi parte de um programa educacional com estudantes do mundo todo.
- Sua participação no Advanced Space Academy em 2022 é real, mas se trata de uma experiência educacional para jovens — não é treinamento oficial da NASA.
- Os projetos que ela alega ter liderado na NASA (como MADSS e AquaMoon) não constam em registros oficiais da agência.
- A empresa privada que faria a missão de 2029 sequer menciona Laysa em seu site oficial.
- A Elliptica Foundation, organização que ela diz ter fundado, não tem presença institucional real além de um perfil no LinkedIn.
A conclusão: há elementos verdadeiros nessa história toda, mas todas as alegações ficam misturadas com exageros, lacunas e distorções. O conjunto sustenta uma narrativa que não se confirma em qualquer apuração de informações feita de maneira séria e responsável.
G1 confirma que a NASA nega qualquer vínculo com a jovem
No dia 11 de junho, o G1 publicou uma reportagem apurando a história diretamente com a NASA, que foi categórica sobre Laysa: “Ela não está em nenhuma lista de seleção de astronautas da NASA.”
A matéria esclarece que a missão em questão é privada, e que o único vínculo com a NASA é o fato de o comandante de tal missão privada ter feito parte da agência no passado. Ou seja: a jovem não foi aprovada pela NASA. A NASA não participa da missão. Não existe ainda uma astronauta brasileira na NASA.
O G1 fez o que os outros deveriam ter feito antes de publicar qualquer coisa: checar com a fonte primária.
O silêncio também é parte da história
A jovem Laysa poderia — e deveria — ter esclarecido a confusão. Mas escolheu não desmentir, não corrigir, não contextualizar. Ao permanecer em silêncio, validou a versão falsa que a colocava como pioneira na NASA. E se há um erro aí, também há um consentimento calculado.
Ainda assim, a origem do problema segue a mesma: foi a imprensa quem plantou a confusão. Com o perdão da baixaria: uma parte cagou, e a outra sentou em cima.
O que aprendemos com essa história da falsa astronauta da NASA?
O “caso Laysa Peixoto” é uma aula de tudo o que não se deve fazer no jornalismo:
- Transformar um post de rede social em matéria sem apuração
- Usar a credibilidade de uma instituição como isca de clique
- Repetir uma mentira conveniente até ela parecer verdade
- Se esconder atrás de uma assinatura “equipe de redação” quando a verdade vem à tona
E talvez a lição mais importante seja: ser jornalista exige mais do que pressa e criatividade. Ser jornalista exige precisão e responsabilidade. Além de uma boa dose de vergonha na cara.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.
Esse texto foi tão cirúrgico que pode se considerar de utilidade pública nos dias atuais.
Lamentável como o oportunismo e a desinformação andam juntas com a acessibilidade jornalística.
Eu fiz uma thread no Bluesky com a apuração que fiz da empresa Titan. E pra mim está bem claro que aquilo ali é um golpe também. O projeto é de um avião enorme capaz de decolar de aeroporto normal com propulsão normal e chegar à órbita baixa sem foguete. Só que esse avião só existe no Autocad e, ainda assim, eles prometem voo inaugural em apenas 4 anos. Além disso, o modelo de negócios da empresa é baseado em que os ~astronautas (turistas espaciais, na verdade) são na verdade investidores, entre US$ 25 a 30 milhões em troca de plano vitalício e 0.1% de ação na própria Titan.
Quando até parte da imprensa dita séria, se rende a espalhar fake news é pra desaminar e, infelizmente, constatar que as tais “redes antisociais” estão vencendo a batalha da verdadeira informação…. Triste, muito triste!!!!!