Ainda que tenha um dos programas mais bem-sucedidos de controle do HIV e da Aids no mundo, o Brasil ainda precisa vencer os desafios impostos pela desigualdade social e pela dificuldade de acesso ao tratamento pelas populações mais vulneráveis.
O número de mortes no Brasil vem caindo nos últimos dez anos, mas cerca de 30 pessoas por dia ainda morrem acometidas pela Aids. Segundo dados do Ministério da Saúde, quase 62% dos óbitos ocorrem na população negra. Um milhão de pessoas vivem com o vírus no país.
Os desafios ainda impostos pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) foram tema do seminário “Aids em perspectiva: estratégias de diagnóstico, tratamento e prevenção”, realizado no dia 2 de dezembro na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), com transmissão on-line.
O evento é parte do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação, uma parceria da FAPESP com o Instituto do Legislativo Paulista (ILP).
“Este é um assunto extremamente relevante, que ficou de fora da atenção geral por alguns anos, mas é permanentemente um enorme desafio de saúde pública no Brasil e no mundo”, disse Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, durante a abertura do evento.
Rosa de Alencar Souza, diretora técnica-adjunta do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde, lembrou que HIV/Aids continua a ser um dos principais problemas de saúde pública global.
Atualmente, existem quase 40 milhões de pessoas vivendo com HIV ou Aids no mundo. Destes, 2,3 milhões estão na América Latina e 1 milhão no Brasil. Outros números incluem ainda 1,3 milhão de novas infecções no mundo, sendo 120 mil na América Latina e 43.400 no Brasil. Em 2023, 630 mil pessoas morreram com Aids, sendo 30 mil na América Latina e quase 11 mil no Brasil.
“No Estado de São Paulo temos cerca de 200 mil pessoas vivendo com HIV/Aids. Foram 7.617 novas infecções em 2023, sendo que 1.562 morreram com Aids no Estado em 2023, o que dá quatro pessoas por dia, demonstrando a magnitude dessa pandemia”, contou.
A gestora ressaltou ainda que, nos últimos 40 anos, a luta contra o HIV teve inúmeros avanços, graça ao desenvolvimento tecnológico, à produção científica, à construção e implementação de políticas públicas efetivas e eficazes no país e no Estado. Como resultado, nos últimos dez anos houve uma redução do número de casos de Aids, sendo de 40% no Estado de São Paulo.
No entanto, alertou Souza, é preciso compreender e atuar em relação às pessoas que não estão acessando as estratégias e tecnologia disponíveis. Enquanto todas as faixas etárias tiveram uma queda na taxa de infecção, aquela entre 25 e 29 anos teve uma leve ascensão. “Não dá pra dizer que vai continuar subindo, mas é um alerta”, explicou.
Da mesma forma, quando se olha a distribuição dos casos por cor autodefinida da pele, a queda é muito maior entre brancos do que entre negros e pardos.
“Não estamos chegando a essas pessoas, que ainda são muito vulnerabilizadas, seja por questões sociais, seja pelo racismo, seja pelo estigma. Não estão acessando tecnologias que estão disponíveis de forma gratuita e universal no sistema de saúde. Esse é um dos grandes desafios”, apontou.
Souza ressaltou que a profilaxia pré-exposição sexual (PrEP) é a mais potente estratégia para combater o vírus, com dados mostrando que, quanto mais pessoas usam, menor é o número de novas infecções.
Ainda assim, também pode ser visto que as pessoas que mais acessam a PrEP são homens cisgênero, brancos, jovens adultos, com alta escolaridade, deixando pessoas trans, não binárias e mulheres cisgênero para trás. “É um campo muito importante em que vamos precisar avançar nos próximos anos”, disse.
Lúcia Yasuko Izumi Nichiata, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), falou sobre o projeto “Implementação de políticas públicas de prevenção das infecções sexualmente transmissíveis/HIV – #PartiuPrevPerifa”, coordenado pela pesquisadora e apoiado pela FAPESP na modalidade Pesquisa em Políticas Públicas. O projeto vai atuar em 25 municípios do Estado, com foco na prevenção.
“Não havia muitas alternativas em termos de prevenção quando comecei como professora na universidade nos anos 1980, apenas preservativo externo. Hoje existem várias tecnologias com evidência de efetividade e temos a possibilidade de oferecê-las para as pessoas”, contou.
Além da PrEP, ela citou o tratamento prévio de gestantes, durante o trabalho de parto e a amamentação, que impede que o vírus seja transmitido para os filhos de mulheres HIV positivas.
“O próprio tratamento das pessoas que vivem com o vírus é uma forma de prevenir, uma vez que aquelas com carga viral indetectável não transmitem”, esclareceu.
Os planos até 2027, quando o projeto se encerra, incluem ampliar o acesso de prevenção combinada entre populações mais vulneráveis, incluindo a incorporação de tecnologias como a PrEP. Isso se dará por meio da ampliação dos chamados Grupos de Vigilância Epidemiológica no Estado.
“Essas ações dizem respeito ao acolhimento das pessoas para tirar dúvidas sobre as questões que são importantes para a prevenção de HIV, sífilis e hepatites B e C, além da realização de testes, incluindo os autotestes”, contou.
Ricardo Sobhie Diaz, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) lembrou que, quando surgiu a Aids, a expectativa de vida era muito pequena. “Nós, médicos, éramos espectadores da catástrofe”, contou.
Conforme as pesquisas avançaram, foram desenvolvidos medicamentos de forma inovadora, sendo que hoje as pessoas que vivem com HIV recuperam a imunidade e têm expectativa de vida igual ou maior do que a da população em geral. “Uma vez que precisam de acompanhamento por conta do vírus, essas pessoas vão mais ao médico e, com isso, tratam outras doenças que podem surgir em qualquer pessoa”, disse.
Apesar disso, ainda se trabalha em pesquisas para a cura. Um dos motivos é o envelhecimento desproporcional dos portadores do vírus, que produz proteínas que desgastam os órgãos de forma mais acelerada do que aqueles que não têm o HIV. Conter isso é uma das frentes de pesquisa hoje no mundo.
O médico lembrou ainda que, as pesquisas com HIV possibilitaram desenvolver antivirais e até as vacinas para a COVID-19. “Os cientistas se aproveitaram dos erros e dos acertos na tentativa de tratar e prevenir o HIV”, disse.
O pesquisador foi responsável por um tratamento experimental que controlou o HIV por seis meses em dois pacientes, mesmo após a suspensão dos antirretrovirais (leia mais em: Tratamento experimental controlou o HIV por seis meses após suspensão de antirretrovirais).
Para Diaz, é preciso continuar as pesquisas com tratamentos, novamente citando a PrEP como grande responsável por mudar a incidência do HIV no mundo. “A redução das infecções não aconteceu mudando o comportamento das pessoas, mas dando remédio”, enfatizou.
“Se juntar tudo: tratamento como prevenção, medicamento para não se infectar, tratar as mães portadoras do vírus, ficamos próximos do nosso objetivo, que é viver num mundo sem HIV e Aids”, encerrou.
O evento contou ainda com a presença de Brígida Pires dos Reis, diretora-executiva do ILP.
O seminário pode ser visto na íntegra em:
*por André Julião | Agência FAPESP
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