O esforço global para controle do tabagismo e seus danos à saúde continua diminuindo a quantidade de fumantes. Dados divulgados este ano pela Organização Mundial da Saúde mostram que, no Brasil, esse decréscimo foi de cerca de 35% desde 2010.
Essa conquista, porém, está ameaçada. A indústria do tabaco deu um jeito de reinventar e continuar lucrando. Nos dias atuais, o vício em nicotina não está mais restrito ao cigarro convencional ou artesanal. Agora ele também está presente em vapes/cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido, o que representa uma grave ameaça à saúde individual e coletiva.
O grande desafio da atualidade é barrar o crescimento do consumo desses dispositivos eletrônicos de fumar, que se disseminam com rapidez especialmente entre os jovens. A variedade de opções inclui produtos descartáveis, modelos recarregáveis e novas formas químicas de entrega de nicotina, como sais de nicotina e versões sintéticas. Esses formatos são apresentados de forma atrativa, com design moderno e sabores variados.
Dados da pesquisa Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) apontam que o uso de cigarros eletrônicos no Brasil aumentou em 600% entre 2018 e 2023. Progrediu apesar do revês ocorrido em 2019, quando foram registrados cerca de 2.800 casos de EVALI (sigla em inglês para E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury) nos Estados Unidos, uma doença pulmonar grave ligada ao uso de dispositivos eletrônicos contendo acetato de vitamina E e quantidades impressionantes de nicotina, resultando em 68 mortes confirmadas nos Estados Unidos.
Em resposta a essa crise, os negociantes do setor reformularam a forma de entrega da nicotina. A solução dada foi eliminar o acetato de vitamina E e substituir a nicotina freebase por sais de nicotina. A nicotina freebase é uma forma mais pura e instável da substância, permitindo uma absorção mais lenta e irritação na garganta. Os sais de nicotina, por sua vez, são quimicamente mais estáveis e proporcionam uma absorção muito mais rápida e suave. Isso ocasiona picos plasmáticos de nicotina em segundos, reforçando o comportamento viciante. Essa realidade tem levado a comunidade médica a falar em uma nova epidemia: o “nicotinismo” – um termo que descreve a dependência da nicotina em seus novos formatos.
No Brasil, embora a venda de dispositivos eletrônicos para fumar seja proibida desde 2009, esses dispositivos continuam sendo vendidos ilegalmente. Em mais uma tentativa de regrar o mercado, em abril deste ano a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução que proíbe a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar, incluindo cigarros eletrônicos, vapes e produtos de tabaco aquecido. A proibição também inclui o ingresso desses produtos no país trazidos por viajantes, independentemente da forma de importação. A diretoria da Anvisa baseou sua decisão em pareceres de associações científicas e em recomendações internacionais, reafirmando a restrição que já estava em vigor desde 2009.
A medida da Anvisa reforça a necessidade de uma regulamentação rigorosa e ações de conscientização para frear essa tendência crescente. Os representantes da indústria do tabaco, porém, se opuseram a ela, alegando que favorece o mercado ilícito e não permite o controle adequado dos produtos.
Ação inovadora contra o nicotinismo
Atenta ao problema, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) deu início a um projeto inovador para investigar os hábitos de consumo de nicotina entre os seus alunos. Em 2023, a instituição conduziu uma pesquisa que revelou que 20% dos estudantes entrevistados haviam usado cigarros eletrônicos nos últimos 30 dias. Além disso, 11% relataram o uso combinado de cigarros tradicionais e eletrônicos, aumentando os riscos à saúde. A faixa etária predominante desses usuários varia de 18 a 23 anos, o que evidencia a vulnerabilidade dos jovens diante desse tipo de produto. Esses dados são alarmantes porque mostram que os jovens estão sendo levados a um caminho de dependência por produtos que julgam inofensivos.
A partir desses dados, a Unesp lançou um programa de prevenção e conscientização sobre o uso de dispositivos eletrônicos de fumar que associa pesquisa acadêmica, educação e mobilização de estudantes para criar um ambiente universitário mais saudável. O programa envolve 34 estudantes bolsistas que realizam ensaios e experiências com método científico, produzem materiais informativos e campanhas educativas.
Entre as atividades desenvolvidas pelo programa, estão a criação de maquetes que mostram os danos causados pelos dispositivos eletrônicos nos pulmões, a produção de vídeos e folhetos sobre os riscos do tabagismo e o impacto ambiental dos resíduos de cigarro. A ideia é que esses materiais sejam utilizados na própria universidade e em outras instituições e comunidades, criando uma rede de conscientização e prevenção. Os jovens precisam dessas informações de forma acessível e em linguagem que lhes seja atraente. Trabalhar com eles é fundamental para que se sintam parte do processo e não apenas um alvo de campanhas.
A iniciativa da Unesp, que envolve o engajamento comunitário, é uma parceria entre a Coordenadoria de Saúde da Unesp, liderada pela Dra. Ludmila de Cândida Braga, e o Programa Estadual de Controle do Tabaco da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, coordenado pela Dra. Sandra Marques.
A expectativa é que esse modelo possa ser replicado por outras instituições, contribuindo para frear a tendência de aumento do consumo de nicotina entre os jovens. O cigarro não é apenas um problema de saúde individual, mas uma questão de saúde pública com forte impacto ambiental, reforçando a necessidade de manter a luta contra o tabagismo em todas as suas frentes.
*por Irma de Godoy, Pneumologista, professora da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Universidade Estadual Paulista (Unesp) | The Conversation
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.