“O artista apanha a mensagem do desafio cultural e tecnológico décadas antes que ocorra seu impacto transformador” – Marshall McLuhan [1]
Eis que chegamos à continuação de nossas especulações acerca da Game-Art como fenômeno artístico. Em nosso último texto, vimos como o renomado historiador de arte Ernst H. Gombrich destituía da ‘Arte’ a sua condição de materialização de uma esfera supra-humana ou conectada com o panteão divino, reduzindo-a a um ‘fetiche’ da contemporaneidade.
No mesmo texto, apresentamos as palavras de Brody Condon, um dos criadores da Game-Art Velvet-Strike – produzida a partir de um mod do FPS da Valve – enfatizando o ativismo político e social presente em sua obra, desenvolvida com a parceira Anne-Marie Schleiner, que se manifesta, segundo Condon, na forma de uma contra-propaganda ao belicismo implícito nos jogos de tiro.
Essas inquietações nos mostram que não há consenso sobre a arte ou o fazer artístico e que, de Aristóteles até aqui, quaisquer meios podem servir de recurso para essa produção, seja ela reconhecida como ‘Arte’ à época de sua realização, somente séculos depois ou em tempo algum. No texto de hoje, buscamos impressões de acadêmicos e artistas que reforcem as características artísticas resultantes da produção de obras, instalações e projetos que se utilizam dos jogos digitais em alguma medida para suas realizações.
“Se toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes midiáticas representam a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem do início do terceiro milênio”, escreveu Arlindo Machado em seu ensaio Arte e Mídia, de 2007. [2]
Emprestando o pensamento de Walter Benjamin sobre a fotografia e o cinema como recursos capazes de sintetizar a arte, Machado complementa: “o problema não é saber se ainda cabe considerarmos ‘artísticos’ objetos eventuais […mas] perceber que a existência mesma desses produtos […] coloca em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo formulações mais adequadas à nova sensibilidade que agora emerge”.
(Paro aqui, um momento, para lhe perguntar, leitor: Como podemos não estar falando de games como substrato para o fazer artístico contemporâneo? Reflita.)
É exatamente essa a ideia que vimos sustentando ao longo desses textos, agora tão bem colocado por Benjamin: avaliar os fenômenos contemporâneos e, por extensão, a Game-Art, a partir de “formulações mais adequadas à nova sensibilidade”. Isso significa que, com um olhar estanque para o significado da Arte até então vigente (qualquer que seja ele), não seremos capazes de refletir sobre as novas vertentes do fazer artístico, incluindo aí a arte produzida com (e por) videogames.
No entanto, em uma reunião do Conselho Nacional de Política Cultural, do Ministério da Cultura, em 2013, essas novas nomenclaturas da arte de nosso tempo já estavam sendo chanceladas pelo Grupo de Trabalho de Arte Digital, como registrado em ata: “A arte digital compreende a Produção Artística envolvendo Arte, Tecnologia e Ciência em diálogo com outras áreas como Ciência da Computação, Robótica, Mecatrônica, Genética, Comunicação. A produção em Arte Digital pode envolver outras linguagens artísticas como fotografia, videoarte, instalação, performance, dança, música, considerando diferentes interfaces áudio-tátil-motoras-visuais. No contexto mais abrangente da arte tecnologia, a arte digital pode compreender as produções denominadas webarte, netarte, ciberarte, bioarte, gamearte, instalações interativas, mídias locativas e outras atividades relacionadas.” [3]
Suzete Venturelli e Mario Luiz Maciel já enfatizavam, ainda antes, a relevância da arte concebida a partir de jogos de consoles e computador como segmento das arte digitais, ao enunciar que a “Gamearte é uma pesquisa que procura na linguagem do game eletrônico desenvolver uma poética artística digital interativa […] marcada por uma reflexão onde o lúdico simula situações ou testa ruptura na desconstrução de outros modelos sociais”. A afirmação evidencia, como visto, o papel provocador da arte, independente do meio a ser utilizado. [4]
As ponderações de Venturelli e Maciel parecem se espelhar nas palavras de Couchot, para quem “toda obra de arte busca provocar a percepção” [5] e na forma como Machado designa a artemídia como “metalinguagem da sociedade midiática, na medida que possibilita praticar, no interior da própria mídia […] alternativas críticas aos modelos atuais de normatização e controle da sociedade”.
É nesse contexto que a Game-Art se propõe como mensagem para além da ludicidade, muitas vezes subvertendo-a, explicitando a emergência de um questionamento sobre os hábitos e comportamentos midiáticos da sociedade atual. “A denominação gamearte se refere a projetos de caráter estético que se apropriam dos games de modo crítico e questionador, propondo reflexões inusitadas. Assim, quando se fala em gamearte, podemos encontrar projetos que criam novos contextos para games conhecidos [que] propõe sentidos diversos e subverte plataformas habituais da cultura gamer”, elucida Lucia Leão, no ensaio Da ciberarte à gamearte (ou da cibercultura à gamecultura), elaborado em 2005. [6]
Mesmo com esse conjunto de reflexões e evidências acerca da Game-Art como fenomenologia da contemporaneidade, parece não faltarem detratores quanto ao aspecto crítico, reflexivo e questionador dessa vertente da inovação artística. Porque observamos ainda hoje uma resistência tão inquebrantável dessa expressão?
A articulista Vera Mevorah parece ter matado a charada, em 2017, conjecturando que “o problema é que, embora as peças de arte dos videogames sejam, na maioria dos casos, criadas e apresentadas no mundo da arte e suas instituições, os videogames ainda persistem em sua reputação de entretenimento inferior”.
Mevorah é precisa em sua análise e os games padecem, até aqui, da síndrome de impostor, tentando ocupar um espaço na crítica social que não lhes cabe. No entanto, é preciso reciclar as ideias, libertar-se dos antigos conceitos e paradigmas e expandir nossas percepções para, como disse Benjamin, “formulações mais adequadas” para interpretar a arte conceitual atual e, entre suas ramificações, a própria Game-Art. [7]
Gombrich encerra nossas reflexões de hoje, afirmando que “não existe maior obstáculo à fruição de grandes obras de arte do que a nossa relutância em descartar hábitos e preconceitos”.
Hora de dar chance à Game-Art, meu povo!
Semana que vem, tem nova leva de projetos artísticos inspirados em games ou que o utilizam como base conceitual nas concretizações artísticas. Até lá.
[1] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem: Understanding Media. São Paulo: Cultrix, 1969 [2] MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. [3] Ata de reunião do GT de Arte Digital do CNPCDá para jogar no navegador
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