Pense.
Imagine a seguinte cena: Você e outra pessoa dentro de uma sala de espera (do dentista por exemplo). A pessoa passa mal. Imediatamente você a socorre. É natural. É o instinto de sobrevivência e a sensação de que, por não ter mais ninguém na sala, a responsabilidade é sua.
Noutra situação, você está numa rua muito movimentada. Alguém passa mal e cai no chão. As pessoas passam perto e ninguém socorre a pobre coitada. É natural. Até mesmo você não demonstra o mesmo grau de solidariedade. É o efeito chamado difusão de responsabilidade, ou seja, cada pessoa ali presente tende a achar que tem alguém mais próximo e portanto a responsabilidade é dele em socorrer a pessoa. Demora um pouco até que alguém acuda, mas alguém sempre acaba se apresentando.
É mais ou menos isso que acontece na indústria brasileira de games. Todo o conjunto de atividades que representam o mercado produtor se comporta como se a responsabilidade por elevar os conceitos e difundir os jogos produzidos por aqui, fosse do outro, do vizinho. Neste bolo entram os desenvolvedores, os empresários, jornalistas, investidores e organizadores de eventos. Cada um acreditando que já está fazendo a sua parte (só por existir), quando na verdade é do esforço comum, direcionado para a divulgação, que resulta uma boa aceitação do produto nacional.
Todo mundo é responsável.
A difusão de responsabilidade, no mercado, causa um resultado comportamental bem estranho. Em certa medida, o desenvolvedor acredita que basta fazer o jogo que, sendo ele “bom”, automaticamente o público diz amém. O empresário acredita que, por estar colocando seu dinheiro no projeto, isso já é prova suficiente de que o produto merece todos os louvores do público consumidor, como se fosse uma quase obrigação dele consumir tal produto.
Os jornalistas, investidores e organizadores de eventos acreditam que já cumpriram a sua missão apenas existindo: Estou aqui, então venham, inscrevam seus produtos, obedeçam as regras e o mundo seguirá fluindo normalmente. Infelizmente as coisas não funcionam bem assim.
Em primeiro lugar, você existir (seja lá em que categoria for) não é uma dádiva dos deuses mas uma decisão pessoal sua. Além disso, o mercado ou público consumidor não é como o gado que, ao som do berrante, se encaminha para onde foi treinado ir. Bem, pra falar a verdade… Mas pelo menos você sabe tocar o berrante?
Um evento é, em sua essência maior, uma apresentação qualificada de algo (ou “algos”) que precisa ou deve receber um destaque extra para que chame a atenção do público alvo, num determinado espaço de tempo. É a confluência otimizada entre o que se produz, com a eventual necessidade de ser consumido. Essa é a matéria prima do evento e todo o esforço da organização deve ser no sentido de reunir (sob o mesmo teto) a maior quantidade possível de bons produtos. O resto é afinação e detalhamento. Um erro comum é acreditar que, tendo conseguido o aval de dois ou três grandes produtores, todos os demais estarão automaticamente inseridos no processo, meio que no vácuo dos mais significativos e portanto dispensados de uma atenção mais cuidadosa.
Algo parecido acontece com os jornalistas ou meios especializados em divulgação – todo meio de comunicação tem sua sobrevivência dependente da matéria prima básica do jornalismo: Notícia ou informação. E nesse processo valem as regras conhecidas há séculos: A boa notícia, aquela que destaca e promove o veículo, é a notícia precisa, original e de preferência impactante. Um erro comum aqui é algo parecido com “enviem” seus produtos, que faremos uma divulgação, avaliação, análise, etc. Ou seja, o mecanismo que deveria ser pró ativo, é colocado em modo de funcionamento passivo, dependente do esforço (e da sorte) de elementos externos a ele.
No âmbito da produção (desenvolvedores, artistas, empresários, etc) a sobrevivência de um produto depende de duas coisas essenciais: Existir enquanto produto e estar disponível para ser consumido. Porém, estar disponível não significa que a existência se basta. Muito pelo contrário, é necessário um esforço tão ou maior que o despendido na realização e concretização da ideia ou projeto, para tornar o produto visível à maior faixa de possíveis consumidores. E esse esforço (ainda que variável) precisa ser constante.
E o que tudo isso tem a ver com a difusão de responsabilidade mencionada no começo desta matéria? Simples: Para que tudo isso funcione como uma máquina, perfeitamente, é preciso que todos assumam a sua cota de responsabilidade nos processos envolvidos. Como?
Os desenvolvedores devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, enviar material e participar de todo e qualquer evento que, de uma forma mais intensa ou não, promova e divulgue o seu jogo.
Os jornalistas devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, buscar a notícia, pesquisar, se envolver com as produções e formar relações de mútuo interesse entre os demais participantes do processo de produção do mercado.
Os organizadores devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, promover e facilitar a participação do maior número possível de produtos, em seus respectivos eventos.
Tudo aquilo que fazemos no âmbito da atividade profissional pode ser formatado em dois modelos distintos: 1) Sentamos e esperamos os céus descerem até nós ou 2) Construímos uma escada bem alta para tentar atingi-lo.
Escolher o modelo 2 não implica necessariamente em acertar. Escolher o modelo 1 implica necessariamente em – não dando certo – não ficar se lamentando caso ninguém goste de você.
Renato Degiovani é o primeiro game designer de jogos digitais, desde 1981. É colunista do site Drops de Jogos no espaço DEV.LOG, com textos regulares sobre sua experiência de décadas. Foi o desenvolvedor do jogo Amazônia, é conhecido na comunidade nacional do aparelho MSX, editou a revista Micro Sistemas e é responsável pelo espaço TILT Online.
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