Tecnologia

Advogada que foi representante do CGIbr contesta decisão de Toffoli sobre Marco Civil da Internet

Com autorização da advogada Flávia Lefèvre, da Lefèvre & Moraes Advogados e que foi representante do Terceiro Setor no Comitê Gestor da Internet, este Drops de Jogos a publica dois textos seus. Ela escreveu na rede X/Twitter sobre a decisão do ministro Dias Toffoli proferida hoje sobre o Marco Civil da Internet.

O ministro do Supremo Tribunal Federal quer mudar a lei 12965. E ela tem um texto de 2023 sobre o artigo 19 do Marco Civil que explicita o problema. Flávia não é contra a regulação das redes sociais, mas aponta risco de censura prévia na decisão de Toffoli.

Do X:

1 Voto baseado na premissa de q a culpa de todos os males q acontecem na Internet é do artigo 19 que estabeleceria uma imunidade genérica; o que, para mim, é insustentável.

2 O fato é q os Poderes Públicos passaram anos, desde a aprovação do MCI, ignorando o que está disposto no inc V do art 3° do MCI. Até que os Ministro Flavio Dino e Alexandre de Moraes enquadraram as plataformas.

3 Perder o artigo 19 no atual cenário político terá consequências pesadas para a liberdade de expressão e implicará em muitos mais poderes para as plataformas do que elas já têm no controle do fluxo de informações.

4 Estaremos empoderando empresas q representam interesses ultra neoliberais e reacionários. Veja-se Elon Musk e Zuckerberg agora de mãos dadas com Trump.

O texto de Flávia de 21 de março de 2023.

Os perigos de degeneração dos direitos – art. 19 do MCI

O Mobile Time publicou hoje este artigo por meio do qual analiso o art. 19 do Marco Civil da Internet e os riscos de reformá-lo com a justificativa de combate às fake news:

Há muito pouco tempo o país se deu conta do processo que se iniciou com os movimentos de 2013, com o uso do direito pelas forças neoliberais nos campos institucionais justamente para destruir garantias políticas e democráticas, que culminaram com o impeachment da Dilma, prisão do Lula, no contexto da Lavajato, eleição de Bolsonaro e de um aumento significativo no número de parlamentares dos mais reacionários, destruição de direitos fundamentais, ambientais entre outros.

Fomos vítimas do lawfare, que é o uso degenerado de leis e normas como instrumento de combate às conquistas civilizatórias, por meio de agentes políticos e do Poder Judiciário.

Essa introdução se justifica, pois acredito que, guardadas as devidas proporções, temos caído na armadilha muito bem armada pelas big techs, quando afirmam repetidamente, com a força de seu poder econômico inédito, que o art. 19 do Marco Civil da Internet se constitui como ferramenta jurídica que limita a responsabilidade dessas empresas apenas às hipóteses de resistência à remoção de conteúdos determinada por ordem judicial.

Essa é uma falácia revoltante, mas que parte do Poder Judiciário e uma parcela bastante significativa da nossa sociedade tem engolido, concluindo que os danos políticos e sociais decorrentes dos processos de desinformação e discursos de ódio na Internet se devem a suposta insuficiência dos dispositivos do Marco Civil da Internet (MCI) para enfrentar esses males, especialmente do art. 19.

Não é a primeira vez que o MCI é alvo dos oportunistas. Lembro aqui da CPI do cibercrime, em 2016, quando a Motion Picture Association, forte representante dos titulares de propriedade intelectual, mobilizou mais de 10 lobistas, que ocuparam os gabinetes dos parlamentares integrantes da comissão, para alterar o art. 19, com o objetivo de criminalizar a violação de direitos autorais e instituir o “notice and take down” como regra, de modo que as plataformas tivessem de derrubar conteúdos por simples notificação.

Felizmente, com a reação da sociedade civil e do Comitê Gestor da Internet no Brasil, que mobilizou seus conselheiros e conselheiras, entre eles esta que vos fala, conseguimos demonstrar por meio de uma importante Nota Pública, que afirmava a preocupação “com as propostas de flexibilização e modificação do regime jurídico adotado no Brasil com a Lei 12.965 em 23 de abril de 2014, desconsiderando todo o processo de construção colaborativa que a caracterizou e referenciada internacionalmente por manter a Internet livre, aberta e democrática”. Recomendo fortemente a leitura da nota que traz à tona os reais interesses que estavam por trás das iniciativas voltadas para “flexibilizar” o MCI; posso afirmar com a mais absoluta certeza que não eram evitar pedofilia e fraudes bancárias, como se anunciava, mas fortes interesses econômicos privados.

E posso afirmar o mesmo hoje, apesar de não estar tão claro se a intenção de alterar o MCI é só um erro de perspectiva ou estratégia política matreira para reduzir as garantias de liberdade de expressão e vedação de censura nas redes, aumentando o poder das plataformas.

De qualquer forma, alterar o MCI com base na justificativa de que a lei está defasada e que o art. 19 não oferece o suporte necessário para enfrentar a desinformação será um erro crasso, principalmente porque a finalidade deste dispositivo não era esta.

O MCI trouxe garantias de grande importância para o desenvolvimento e uso da Internet no Brasil; muitas delas estão funcionando e outras, como é o caso da neutralidade da rede, vêm sendo reiteradamente descumpridas, com impactos determinantes e deletérios constatados por pesquisas autorizadas, potencializando a desinformação e as práticas ilegais na Internet.

O MCI é lei principiológica, que veio estabelecer fundamentos, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, determinando as “diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”.

Estabeleceu fundamentos e princípios para a disciplina do uso da Internet, destacando a liberdade de expressão, os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania, pluralidade e diversidade, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor e a finalidade social da rede, proteção da privacidade e preservação da natureza participativa da rede, bem como liberdade dos modelos de negócios. Pergunto, então, desde quando esta lei está vencida diante da conjuntura que amargamos hoje?

Merece destaque a previsão expressa sobre a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei, conforme inc. VI, do art. 3º, do MCI, tendo deixado expresso que esses princípios não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Sendo assim, a interpretação do art. 19 deve ser feita de forma sistemática com estas disposições.

E, nesse sentido, é obrigatório reconhecer que os Poderes Públicos fizeram muito pouco ou nada para dar efetividade a esses direitos.

Além disso, o MCI estabeleceu obrigações de guarda de dados por parte tanto dos provedores de conexão quanto dos provedores de aplicação, protegendo o uso desses dados pelas autoridades, subordinando-as a ordem judicial para tanto, garantindo que os responsáveis por práticas ilegais na rede possam ser identificados, de acordo com o devido processo legal.

E, mais, subordinou as empresas estrangeiras ao ordenamento jurídico brasileiro, como ficou claro na ocasião dos impasses com o Telegram, que resistia em cumprir ordens judiciais brasileiras, e agora com o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº 51, julgada neste mês de março pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a jurisdição brasileira para obrigar as plataformas a apresentarem informações sobre comunicações privadas diante de ordem judicial, tendo como fundamento o art. 11, do MCI.

Há vários outros ganhos conquistados com muita luta no MCI, mas aqui me restringi a destacar aqueles mais diretamente relacionados à segurança e garantia da liberdade de expressão.

Se temos problemas graves hoje com a desinformação e a prática de crimes na rede, eles não são consequência da suposta defasagem da lei. Muito pelo contrário, temos muito mais problemas pela não aplicação de muitas garantias trazidas pelo MCI, do que pela inadequação do art. 19, como é o caso dos planos ilegais de acesso a Internet pela rede móvel, que submetem mais de 80 milhões de brasileiros – os mais pobres – a um acesso precário a Internet e a situação de enorme vulnerabilidade com relação às campanhas de desinformação, por prendê-los na bolha do Facebook e WhatsApp.

Nesse sentido é equivocada a premissa que tem sido apresentada por representantes do Governo quando tratam da alteração do MCI como panaceia para resolver os problemas decorrentes do uso ilegal da rede, ao afirmarem que as plataformas apenas “devem responder por conteúdos que lhes dão receita”. Essa afirmação suscita duas perguntas que revelam que o caminho que está sendo vislumbrado pelo Governo pode não trazer os efeitos pretendidos.

A primeira pergunta: qual atividade das plataformas não lhes rende receita? Todo o modelo de negócios é estruturado na coleta de dados pessoais, com retornos vultosos; não só a monetização, mas a recomendação, entre outras práticas algorítmicas de moderação de conteúdo, rendem lucros para as plataformas e estão imbricadas com a desinformação.

E por que o governo não se mobiliza para aplicar a legislação brasileira à qual estão constitucionalmente sujeitas as plataformas, para a responsabilização por atos ilícitos próprios que afrontam o Código do Consumidor, a Lei Eleitoral, o Estatuto da Criança e Adolescente, Código Penal, Código Civil, entre outras leis? Se a resposta for a de que o art. 19 do MCI impede, ela está muito errada, como bem explanaram os Ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes em evento promovido pela Fundação Getúlio Vargas há poucos dias, quando reconheceram que as instituições têm falhado em não aplicar as leis em vigor para responsabilização.

Ou seja, muitos dos nossos problemas se dão pela visão míope à qual parece que o governo está aderindo sobre o MCI e pela inércia em aplicar sobre as plataformas os regimes de responsabilidade em vigor, inclusive com a previsão de responsabilidade objetiva expressa tanto no CDC, quanto no Código Civil, quando trata da exploração das atividades que impliquem em risco.

No mais, é claro, e é consenso, que precisamos de uma lei específica que imponha regras e mais transparência e governança sobre as práticas algorítmicas utilizadas pelas plataformas, que privilegiam o lucro em detrimento do interesse público e que têm sido enviesadas em favor de conteúdos e financiadores ultraliberais e reacionários, com danos irreparáveis para o Brasil e o mundo, como se revelou na Conferência Internet for Trust, promovida pela UNESCO em fevereiro último em Paris.

O Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de colher argumentos para o julgamento dos Recursos Especiais RE 1037396 e RE 1057258, que serão processados em regime de repercussão geral, vai julgar a constitucionalidade do art. 19 do MCI, realizará no próximo dia 28 de março audiência pública.

Espero que o resultado venha na esteira do até hoje confirmado consenso internacional de governança da Internet, o princípio da inimputabilidade da rede, como um dos mais importantes instrumentos de manutenção da Internet como recurso aberto e democrático; e que o STF reconheça a constitucionalidade do art. 19 da Lei 12.965/2014, que tem sido fundamental para a efetividade, dentro do ecossistema da Internet, do direito fundamental expresso no art. 5º, incs. IV e IX, bem como no art. 220, da Constituição Federal, que garantem a livre manifestação do pensamento e impedem a censura.

O caminho a ser trilhado para a impedir as ameaças à democracia e a desinformação passa por reduzir o poder de mercado das big techs e a lógica dos seus modelos de negócios, impor transparência e governança sobre práticas algorítmicas, como está previsto no PL 2630/2020, sem prejuízo de ajustes imprescindíveis na proposta de lei, e aplicar os regimes de responsabilização já existentes, e não atacar o MCI degerenerando o art. 19. Caso contrário, vamos mesmo é ficar “enxugando gelo”, como disse o Ministro Alexandre de Moraes e, pior, comprometer a liberdade de expressão.

Marco Civil da Internet. Foto: Wikimedia Commons/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

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Pedro Zambarda

É jornalista, escritor e comunicador. Formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e em Filosofia pela FFLCH-USP. É editor-chefe do Drops de Jogos e editor do projeto Geração Gamer. Escreve sobre games, tecnologia, política, negócios, economia e sociedade. Email: dropsdejogos@gmail.com ou pedrozambarda@gmail.com.

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