Do Jornal da USP. Se você ainda não foi ao Youtube e pesquisou algo como “Beatles AI” ou “Remixing Beatles AI”, essa é uma boa hora para fazê-lo. Há uma variedade enorme de novas versões, comparações entre as canções lançadas décadas atrás e as retrabalhadas com as tecnologias atuais, além das brincadeiras emulando os Beatles interpretando Nirvana, Lô Borges, Radiohead e outros.
Alguns mais convincentes do que outros, mas todos esses vídeos e áudios têm em comum o uso de Inteligência Artificial. Então, nos lançamentos oficiais dos Beatles, que incluem uma composição inédita de John Lennon – a canção Now and Then -, o que foi feito, afinal?
Para começar, vamos voltar ao lançamento da caixa com a edição especial do álbum Revolver, lançada em 2022, contendo as faixas remixadas e mais alguns áudios inéditos. Calma, vamos falar sobre o que é remixagem logo adiante. Antes, é preciso dizer que esse mesmo trabalho foi feito anteriormente com as edições especiais de Sgt. Peppers, o White Album – como ficou conhecido -, Abbey Road e Let It Be.
Pronto, como prometido, vamos à remixagem. A remixagem, nesses casos, é o trabalho de pegar separadamente os elementos de uma gravação musical – cada uma das vozes, bateria, guitarra rítmica, guitarra solo, baixo e piano, por exemplo -, tratar esses áudios – aplicando mais intensidade, retirando ruídos indesejados, melhorando a equalização etc. – e depois reuni-los novamente numa versão que será utilizada nas reproduções. Essa versão final é chamada de master. Por isso, diferentemente da remixagem, a simples remasterização ocorre quando não se tratam os áudios separadamente, mas sim em conjunto.
Portanto, o grande lance com os álbuns que vinham ganhando edições especiais nos últimos anos era, além dos áudios extras, a remixagem dos novos e dos velhos e já conhecidos sons beatlemianos. Havia um personagem que unia esses relançamentos: Giles Martin, filho do antigo produtor George Martin (1926-2016), aquele que foi muitas vezes chamado de “o quinto Beatle”.
Com os discos lançados originalmente a partir de 1967, era mais fácil remixar, pois os canais por onde os instrumentos e vozes eram captados e armazenados foram se multiplicando. Mas até o ano em questão, os Beatles contavam com no máximo quatro canais. Ou seja, se houvesse mais do que quatro vozes e instrumentos, eles teriam que ser reunidos em canais onde já havia outro instrumento. A dificuldade da remixagem dos discos pré-1967 era a de não poder separar todos os sons para dar a cada um o tratamento de áudio específico e devido. Essa dificuldade acabou no relançamento do disco Revolver, que se resolveu por conta da série Get Back, que trouxe mais um personagem à história, e que contou com o uso de Inteligência Artificial. Agora vamos separar todos os elementos da frase anterior e remixá-los para tudo ficar compreensível e nítido, como as novas edições dos Beatles.
O novo personagem em questão é o cineasta Peter Jackson. Você deve conhecê-lo pela trilogia O Senhor dos Anéis, além dos filmes O Hobbit e King Kong. Foi ele que produziu e dirigiu a série documental The Beatles: Get Back. Essa série é exatamente o ponto que conecta todos os elementos da frase do parágrafo anterior, aquela frase que precisava de uma desmixagem seguida de remixagem. Sim, pois Giles Martin trabalhou na série de Peter Jackson. E foi aí que o uso de Inteligência Artificial permitiu um salto gigantesco.
Por meio de machine learning, um banco de dados com as imagens, as vozes e os instrumentos tocados por cada um dos Beatles abasteceu um sistema de Inteligência Artificial criado pela equipe de Peter Jackson. A partir de então, foi possível reconhecer e separar elementos que estavam reunidos pela eternidade. No caso do que interessa aqui, os áudios reunidos nos mesmos canais.
Giles Martin, em entrevista para a Variety, fez uma ótima analogia:
“Tínhamos todos os ingredientes para que eu pudesse misturar. Foi tão simples assim. A faixa Taxman, que estou usando como demo, que até agora tinha guitarra, baixo e bateria juntos; posso tirar a guitarra, posso tirar o baixo e posso até separar a caixa e o bumbo também. E eles soam como caixa e bumbo. Não há nenhum indício de guitarra ali (mesmo que elas tenham sido gravadas juntas nas fitas master). E não sei como isso é feito! É como se eu estivesse dando um bolo para eles e eles me dessem farinha, ovos, leite e um pouco de açúcar.”
“Eles”, no caso, era a equipe de Peter Jackson que desmixava os áudios com auxílio do software de inteligência artificial ali desenvolvido.
Ou seja, antes dessa tecnologia, se o bolo tinha farinha demais e estava seco, só era possível diminuir a farinha diminuindo o leite junto, pois eles estavam no mesmo canal. Ao final, o bolo continuaria tendo problemas semelhantes no equilíbrio entre secura e umidade. Com a inteligência artificial desenvolvida para a série Get Back, agora seria possível separar os ingredientes uns dos outros e dosá-los e melhorá-los individualmente. Assim, na hora de reunir tudo de novo, as correções e melhorias seriam para valer.
Dando um salto da reedição especial de Revolver para a recém-lançada canção inédita de John Lennon – Now and Then -, as doses de farinha e leite de um bolo podem ser comparadas com voz e piano. Quando Lennon acionou o play do gravador e começou a interpretar a música, em 1978, aquilo era um simples registro caseiro para ser um dia, quem sabe, produzida para um disco. Portanto, preocupação zero com toda a história de canais separados para cada som. Quando, pela primeira vez, em meados dos anos 90, os remanescentes dos Beatles tentaram aproveitar a interpretação de Lennon, o piano frequentemente se sobrepunha à voz – além de outros problemas no som. E não era possível aumentar seu volume sem aumentar o do piano junto. Já deu para perceber aonde chegaremos, certo? Sim, nos dias atuais tudo isso se tornou viável nas mãos de uma equipe que dispõe de tecnologia para fazer farinha e leite ficarem novamente livres um do outro antes de se unirem no novo velho bolo. Mas o que entrou no bolo – ou seja, na canção Now and Then -, afinal?
As notícias sobre a música inédita e seu processo de remixagem acenderam desconfiança por parte de muitos fãs. Afinal, até que ponto o software acrescentou ou alterou os registros originais?
Segundo Magaly Prado, que fez estágio pós-doutoral na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP sobre Inteligência Artificial, “ao que tudo indica, foram ajustes audiofônicos, não houve o uso de filtros vocais ou de voz sintética a partir do isolamento da voz de Lennon, apenas o tratamento dado pelos editores de áudio, deixando-a até mais clara. Tampouco geraram novo som artificial do acompanhamento ao piano”.
Embora nenhum de nós tenha acesso aos detalhes de bastidores de todo esse processo, Giles Martin já afirmou que foram respeitados os limites dessa interferência.
O mesmo se pode dizer dos demais discos remixados com uso de inteligência artificial, desde o Revolver até as mais recentes coletâneas dos álbuns azul e vermelho.
Paulo Assis é engenheiro de som, artista sonoro e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Sonologia (NuSom) da USP. Ele compara o retrabalho sobre as músicas dos Beatles com o restauro de uma pintura. “Não é porque você vai restaurar a Monalisa que você vai deixar ela azul. As pessoas reconhecem ela esverdeada. Você até poderia deixar ela mais azul, como era originalmente, mas não deve.” Ou seja, o cuidado com o núcleo reconhecível e o não acréscimo de materiais novos nas músicas são o limite ético que deve nortear essas produções.
Para Assis, os tratamentos de som e as remixagens se justificam como forma de tornar as músicas mais palatáveis aos ouvidos acostumados com a sonoridade atual. “O som de antigamente era gravado em péssimas condições. E era assim a primeira metade da discografia dos Beatles. Era a pré-história da gravação. E fica difícil você ouvir hoje em dia. Como um som de museu, um som a que a gente não está mais acostumado”, reflete.
Assis até compara o tipo de sonoridade dos primeiros discos dos Beatles com captações históricas de registro folclórico. “Se pensarmos naqueles cilindros de cera, como os arquivos das expedições de Mário de Andrade, é sempre um som de museu, um som muito ‘alienígena’. As gravações do começo dos Beatles estão beirando isso. Elas estão mais para o lado do Mário de Andrade do que para o lado da Billie Eilish”, resume Assis, referindo-se, numa ponta, à Missão de Pesquisas Folclóricas, coordenada por Mário de Andrade em 1938, e, na outra ponta, à cantora pop atual.
Como disse no começo desta matéria, se você for às plataformas de vídeo e procurar por “Remixing Beatles AI” ou “Beatles AI”, vai encontrar mais do que os álbuns oficiais com as remixagens auxiliadas por inteligência artificial. Também vão aparecer emulações que colocam os Beatles interpretando canções que eles nunca tocaram. E o mesmo se dá com outros artistas. Experimente fazer o mesmo com “Freddie Mercury”, por exemplo.
Tudo isso provoca reflexões sobre as fronteiras entre seres humanos e máquinas no campo criativo. Perguntada sobre a interferência na autoria, Magaly Prado diz que o uso de inteligência artifical interfere, sim. “Em alguns casos a criatividade pode ser desbloqueada e, em outros, limitada. A experimentação e a edição feitas em conjunto podem trazer resultados passíveis de serem usados. Amanhã, quando houver um aperfeiçoamento, não teremos como distinguir quem compôs, se foi um humano, a máquina sozinha ou os dois sintonizados”, diz Magaly.
Paulo Assis pondera sobre a formação crítica a partir dessa realidade. E usa um exemplo bem corriqueiro da interação entre atos humanos e recursos tecnológicos. “Todo mundo fotografa sem controle nenhum. Acham a foto bonita porque o celular é inteligente e faz tudo o que você deveria fazer e pensar. E assume o lugar que você deveria ter no controle dos elementos, como artista e criador. Ele enquadra, bota a luz certa, se estiver com a luz errada ele corrige. O que você está fazendo, então? A gente está gerando um monte de pessoas sem crítica nenhuma quanto ao ato criativo”, constata Assis. “Com relação às músicas dos Beatles, eu nem tenho problema com isso. Trata-se de um restauro, uma atualização sonora”, completa.
E se você é uma das pessoas que se incomodam, mesmo com o tratamento e a atualização sonora das antigas canções, e que não se dão por satisfeitas sem os chiados e ruídos, como os dos discos, saiba que não está sozinha. Há bastante discussão em torno disso. Não sei se é boa ou má notícia para você, mas até na textura sonora a inteligência artificial poderá ter um papel. “Os ruídos, a variação na intensidade dos instrumentos e até o chiadinho do vinil podem ser solicitados no prompt do software. São importantes na medida em que contextualizam a aura que se quer dar. Aliás, tudo o que o compositor pretende musicalmente – como incluir um tom de voz que transmita determinada emoção, por exemplo, de tristeza –, pode fazer parte da música que ele pensa criar com a máquina”, afirma Magaly Prado.
Ou seja, a fronteira entre humano e máquina vai se tornar mais difícil de decifrar. Para usar expressão cara aos meios atuais, #borapensar.
Ouça aqui a canção Now and Then.
*Bruno Torres Nogueira, estagiário do Jornal da USP, participou da entrevista com Paulo Assis.
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