É preciso uma aldeia. Por Lia Sérgia Marcondes - Drops de Jogos

É preciso uma aldeia. Por Lia Sérgia Marcondes

Sobre proibição de smartphone para criança

Smartphone. Foto: rawpixel.com/Freepik/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

Smartphone. Foto: rawpixel.com/Freepik/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

Por Lia Sérgia Marcondes, de Portugal, para o Drops de Jogos.

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. O antigo provérbio africano nunca esteve tão atual como nos tempos que vivemos; o tempo da tão falada e pouco compreendida “aldeia global”. Com o acesso à informação do mundo inteiro dentro bolso de cada pessoa, é necessário avaliar o quanto tudo isso está afetando nossas crianças e adolescentes.

Neste mês de Janeiro, entrou em vigor, no Brasil e em Portugal, a proibição do uso de smartphones nas escolas (salvo em casos específicos onde o uso é realmente necessário).

Com ela, as mesmas velhas discussões sobre os prejuízos que o tempo de tela podem causar nas crianças e adolescentes versus o uso de tecnologias como ferramenta para o aprendizado.

E foi por esta razão que decidi compartilhar minha experiência pessoal, de quem tem filhos nascidos entre 2005 e 2014 e pegou a evolução das telas com os smartphones e tablets da infância à adolescência deles, pois o primeiro filho chegou antes do iPhone ser uma realidade.

E ainda demorou algum tempo até que um destes surgisse em nossa casa, afinal até hoje é um artigo nada barato.

Nesta época, o tema era o excesso de tempo na frente da TV. Fui mãe aos 23 anos. Era estudante de Jornalismo e mãe solo, apaixonada por leitura de livros e histórias em quadrinhos, filmes e música. Então, o meu filho viveu até os seus 3 anos, em um ambiente onde os avós ouviam rádio para se informar, ouvíamos muita música, assistíamos filmes nos tempos livres, e ele sempre tinha brinquedos “analógicos” à disposição, além de gibis, DVDs de filmes infantis e “Xuxa só para baixinhos”.

Dentro daquela bolha, ele teve um ambiente propício para aprender a ler cedo, e a adquirir um vocabulário muito adiantado para a idade.

Avancemos para 2011, onde eu estava casada e era mãe de mais duas meninas. Os tablets surgiram em nossa casa, o rádio desapareceu, as músicas “de adulto” também diminuíram, mas continuavam lá os gibis, os livros e DVDs infantis. Só que um novo “personagem” chegou: o YouTube. Ainda com poucas ofertas para o público infantil, zero regulamentação pela plataforma, praticamente só podíamos contar com o filtro de conteúdo sensível e vigília constante, para controlar o conteúdo que consumiam. O tablet vivia “ligado” na Galinha Pintadinha e Palavra Cantada.

O uso do computador era praticamente vetado, graças ao Bill Gates. Sim, você não leu errado. Alguns anos antes, o então CEO da Microsoft, o pai do Windows, tinha dado uma declaração a dizer que não dava acesso ilimitado aos filhos para computadores e celulares. Até os 14 anos, nenhum de seus filhos teve um telefone próprio. Steve Jobs não deixava que seus filhos, ainda pequenos, usasse o iPad, que ele mesmo inventou. A mim e ao meu marido, isto não parecia algo a ser ignorado. E não ignoramos, pelo menos na maior parte do tempo.

Aqui neste ponto, o meu filho mais velho já era um ávido leitor e as pequenas eram completamente fanáticas por passeios em livrarias. Sei que pode soar estranho pra algumas pessoas, mas em São Paulo havia uma variedade de livrarias que ofereciam um espaço infantil, onde as crianças poderiam olhar os livros à vontade, comprando ou não, e contavam até mesmo uma cafeteria. Eventualmente, algum livro chamava mais a atenção e acabávamos por comprar (A tática deles funcionava). Com isto, chegamos a ter uma mini biblioteca no quarto das crianças. Mas e as telas? Sim, o tablet eventualmente era usado para ver clipes de músicas infantis. Mas a tela que usavam com mais frequência ainda era a da TV, mais especificamente para ver desenhos e filmes infantis.

Por volta de 2014, quando meu filho caçula nasceu, já fervilhavam entre os grupos maternos muitas notícias sobre como as crianças estavam ficando viciadas em tablets e telefones, crianças muito novas com celular na mão, e que eles começavam a querer de estar em parquinhos e brincando com outras crianças, para estar sempre de olho em uma tela. E na minha casa? A casa dos leitores ávidos e apaixonados por músicas infantis? O problema estava lá, em menor escala, mas dava sinais. Os meus filhos ainda preferiam estar no parquinho com outras crianças, fazer artes, desenhar e pintar, curtir seus brinquedos etc.

O uso de telas na hora das refeições sempre foi proibido. Quando sentávamos para comer, interagíamos uns com os outros. Mesmo que fosse uma refeição só entre as crianças, eles interagiam entre eles. Tablet e TV era absolutamente vetados. Mas quando estávamos em algum restaurante, começou a virar praticamente uma necessidade, colocar alguma música no tablet, para que meu filho conseguisse se acalmar e comer sua refeição o fim. Já mencionei que ele era hiperativo? Pois bem…

Tivemos dimensão real do problema que enfrentaríamos, apesar de termos sempre limitado o uso destes aparelhos, conforme o meu caçula crescia e, com ele, toda a sua hiperatividade e hiperfoco, mostrando que a gente precisava de regras mais claras sobre os usos das tecnologias em casa.

Comecei a carregar comigo um “kit restaurante” quando saíamos de casa. Em vez do tablet, material para desenhar e colorir. Começamos a escolher os restaurantes onde tinha espaço kids. Quando não era possível deixar eles brincando, revezávamo-nos para fazer as refeições: enquanto um vigiava as crianças, outro comia. Pequenas estratégias que íamos ajustando de acordo com o lugar, a necessidade, o grau de agitação deles naquele dia. Se com um filho já é desafio, calcule como foi fazer isto com quatro. Fomos nos moldando por eles e para eles, para evitar ao máximo que eles se tornam-se “zumbis”, escravos das telas.

Vamos avançar 10 anos agora, para 2025. Vivemos em Portugal desde 2018, e praticamente só tenho adolescentes em casa. Meu caçula é quase pré-adolescente e o hiperfoco dele está nos games (e isto fica para outro artigo). Diferentemente do Bill Gates não fui capaz de esperar até que eles tivessem 14 anos para que tivessem um celular. A “linha divisória” aqui foi a mudança de escola. Aqui, a escola primária vai até a 4ª série, e a partir do 5º ano eles mudam para uma escola grande, com alunos dos 10 aos 15 anos. Neste momento, entrou a minha necessidade de deixar com eles um meio extra de contacto, em caso de necessidade de falar conosco. Aquela velha história de que a gente sai do Brasil, mas o Brasil não sai da gente…

E como eu tenho lidado com a questão das telas? Com regras. Redes sociais não foram permitidas antes dos 13 anos. Mesmo depois disso, eu tenho acesso e senha, as redes são privadas e o TikTok nunca foi permitido. Instagram reels e shorts? Conversamos sobre os prejuízos que eles trazem, se consumidos em excesso, para a capacidade de raciocício e foco nos estudos. Converso com meus filhos com clareza, mostro as pesquisas, olhamos juntos as informações, compartilhamos ideias.

Eu os ouço e eles me ouvem. E nessa troca, eles próprios entendem que é preciso ter um limite no uso das redes sociais. O pequeno, obviamente, nem tem uma. O que eles mais consomem são plataformas de streaming para assistir animes e séries, e plataformas onde podem ler mangás. Porém, nada disso impediu que a proibição dos telefones nas escolas caísse como uma bomba por aqui.

Antes eu mencionei que o problema das telas existia aqui em casa, ainda que em menor escala. Pois foi quando saiu a normativa do Ministério da Educação português, que eu descobri que os meus filhos estavam passando os seus tempos livres (entre aulas, hora do almoço ou quando algum professor faltava), usando o celular para assistir desenho, série ou ler mangá.

Sei que é melhor do que ficar vendo TikTok, mas isso não significa que eles passam menos tempo socializando do que deveriam.

Pense no seu tempo de escola, nas amizades que fez, nas conversas com os melhores amigos, nos momentos ímpares que só foram possíveis porque vocês estavam presentes de corpo e alma naquele momento. Para mim, essa proibição dos telefones veio como uma chuva suave e refrescante em um dia quente, acalmando essa fúria e ansia pelos aparelhinhos que estão consumindo nossos jovens, em lugar de serem consumidos.

Não é um retrocesso quando olhamos para onde uma tecnologia nos levou, concluímos que não foi um bom lugar, e damos alguns passos atrás para reavaliar e pensar em novas estratégias. Ainda mais quando, no mesmo mês, temos CEO de Big Tech declarando que não mais fará verificação de fatos em suas plataformas.

Quando temos a pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) provando que o Brasil é o país mais vulnerável às fake news, em todo o mundo. Na América Latina, mais de 85% da população frequentemente ou ocasionalmente utiliza as redes sociais como fonte de notícias.

Será mesmo tão ruim assim tirar os telefones dos nossos filhos por algumas horas do dia? Ou seria essa uma excelente oportunidade para avançar na educação para as novas mídias? “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. E essa aldeia tem que se unir para brigar pelo bem estar das nossas crianças e adolescentes.

Precisamos começar a exigir o uso de políticas públicas e intervenções educacionais para promover um uso equilibrado da tecnologia desde a infância. É preciso retroceder para depois seguir em frente, por um novo caminho, porque obviamente pegamos uma curva errada lá atrás. E estamos mais de 10 anos atrasados neste debate.

x.x.x.x.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (2020), traz algumas direções no sentido de tentar reduzir o prejuízo psicológico e cognitivo em crianças e adolescentes, causados pelo uso excessivo de telas:

  • Crianças menores de dois anos, precisam evitar telas sem necessidade;
  • Limitar o tempo de telas em crianças com idade de 2 a 5 anos mantendo a supervisão de pais/cuidadores/responsáveis, permitindo uma hora por dia;
  • Permitir entre uma a duas horas por dia para crianças entre 6 a 10 anos (com supervisão);
  • Entre 11 a 18 anos, ter um controle de tempo de telas e jogos de videogames a 2-3 horas/dia, não permitir que virem à noite jogando;
  • Não permitir isolamento no quarto com televisão, computador, tablet, celular, smartphones ou com uso de webcam; estimular o uso nos locais comuns da casa;
  • É recomendado que, para todas as faixas etárias, o uso de telas durante as refeições seja proibido, e que haja uma desconexão de 1-2 horas antes de dormir.
  • Alternativas saudáveis, como atividades esportivas, exercícios ao ar livre ou interações diretas com a natureza, devem ser oferecidas, sempre sob supervisão responsável.
  • É aconselhável estabelecer regras saudáveis para o uso de equipamentos e aplicativos digitais, além de implementar medidas de segurança, como senhas e filtros apropriados para toda a família. É importante incluir momentos de desconexão e promover maior convivência familiar.
  • Recomenda-se identificar, avaliar e diagnosticar precocemente o uso inadequado, excessivo, prolongado, problemático ou tóxico de dispositivos eletrônicos por parte de crianças e adolescentes, visando a intervenção imediata e a prevenção de transtornos físicos, mentais e comportamentais associados ao uso problemático e à dependência digital.

Com informações da Revista Farol

Smartphone. Foto: rawpixel.com/Freepik/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

Smartphone. Foto: rawpixel.com/Freepik/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos

Lia Sérgia Marcondes

Mulher, mãe, cozinheira e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem. De esquerda até o último fio de cabelo. Vamos conversar sobre maternidade, cultura pop, arte, tecnologia, não necessariamente nessa mesma ordem. Afinal, no fim do dia tudo é política.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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