Da cartilha “O MTST e a luta pela soberania digital a partir dos movimentos sociais“, criada em parceria com a Universidade de Toronto e que busca consolidar ação no “desenvolvimento tecnológico emancipador”.
Pode soar estranho que um movimento de moradia tenha um setor de tecnologia. Já nos perguntaram se o nosso papel era invadir computadores, assim como o do movimento seria de invadir terras. Entendemos o paralelo, mas ele não faz nenhum sentido. Definitivamente não, pelo contrário: nosso objetivo é, também, combater esse tipo de desinformação
no ambiente digital.
Durante o processo eleitoral de 2018 já circulavam ideias que atribuíam às redes sociais toda a responsabilidade pela disseminação do discurso conservador, do ódio e da desinformação. As redes têm o seu papel, mas não agem sozinhas. Embora hoje esteja mais claro, na época havia quem acreditasse que não existiam apoiadores de verdade do bolsonarismo, apenas robôs sob controle do imperialismo norte-americano.
Para nós, a ideia nunca colou. O enraizamento do MTST é muito forte nas periferias, convivemos com eleitores do Bolsonaro – o que, embora não seja agradável, nos possibilitou entender a sua lógica – e essas pessoas não são robôs. No MTST existem muitos profissionais de tecnologia.
Nós sabemos como funcionam os robôs, trabalhamos programando-os todos os dias. E a ideia de que robôs, sozinhos, estivessem fazendo aquela bagunça toda, embora possível, não era plausível. O processo era mais complicado.
Então, de repente, nos pegamos falando sobre temas de nosso cotidiano profissional em encontros de discussão política do movimento. A partir desse momento, criar o primeiro curso para desenvolvedores foi um passo natural.
Somado a esse esforço de ensino, já existiam outras solicitações internas do MTST para a automação de algumas tarefas cotidianas do movimento. Esse é o caso vivido por trabalhadores e por trabalhadoras que, há algum tempo, prestavam serviços sob demanda – vulgo “bicos” – para simpatizantes do movimento, sobretudo como serventes de pedreiro, diaristas, eletricistas, encanadores, babás, etc.
Diagnosticou-se que seria possível conectar os simpatizantes com os trabalhadores e trabalhadoras do movimento por meio de um celular, com um militante intermediário indicando pessoas de confiança para realizar um trabalho avulso. Com o passar do tempo, tão grande foi o sucesso da propaganda boca a boca, elogiando a qualidade dos serviços prestados, que a demanda por esses profissionais aumentou consideravelmente. Então, o Núcleo de Tecnologia tomou para si a tarefa de automatizar esse processo, dando origem ao Contrate Quem Luta (CQL), um chatbot de WhatsApp que interage com o usuário que deseja contratar serviços de indivíduos na base do MTST.
O CQL foi desenvolvido pensando na realidade concreta dos trabalhadores e das trabalhadoras que se disponibilizam a trabalhar por meio da plataforma. Dada sua condição socioeconômica, alguns obstáculos precisam ser considerados.
Muitas dessas pessoas possuem aparelhos smartphones com pouco espaço de armazenamento, além de não terem acesso significativo à internet, exceto pela gratuidade de tráfego de dados do aplicativo WhatsApp, comumente oferecido pelas empresas de telefonia brasileiras por meio do chamado zero rating. Optou-se pela solução via WhatsApp para superar esses obstáculos de forma simultânea, dado que não há necessidade de instalar nenhum aplicativo extra e nem de ter acesso à
internet para além dos pacotes de dados mais limitados.
O Núcleo de Tecnologia do MTST se insere no desenvolvimento de ferramentas e na apropriação de técnicas para a construção do trabalho de base através da tecnologia. Esse processo acontece por meio da organização da luta no território com o objetivo de melhorar a capacidade dos trabalhadores de construir seu futuro de forma autônoma enquanto coletivo.
Entendemos essa disputa como uma maneira de pautar a nossa soberania, uma capacidade de apontarmos nós mesmos quais caminhos são efetivamente emancipatórios para o nosso povo. É por meio da forma como usamos a tecnologia a nosso favor que promovemos a construção do poder popular.
No atual estágio do capitalismo, os setores estratégicos da sociedade estão cada vez mais dependentes de tecnologias pertencentes a grandes conglomerados de empresas privadas multinacionais. Nós compreendemos que a ideologia neoliberal
dominante, dirigida pelos interesses de acumulação de riqueza por parte de uma burguesia financeira internacional, vai diretamente contra os interesses dos movimentos populares no Brasil e no mundo. O determinante central para o avanço dessa política é o desenvolvimento da técnica. Ao contrário do que o liberalismo quer nos fazer acreditar, a técnica não é neutra. Na verdade, a técnica serve aos interesses de quem a constrói.
A soberania digital é um conceito que tem ganhado força nos debates políticos e acadêmicos. O debate geralmente é abordado por dois enfoques distintos, a saber: o do Estado e o do indivíduo. A questão da soberania estatal envolve
pautas sobre segurança nacional e desenvolvimento científico e tecnológico. Já a questão individual dos cidadãos diz respeito à agência e à autonomia sobre os dados gerados, levando às seguintes perguntas: quem é o dono dos meus dados? E como garantir a minha privacidade?
Pouco se fala, no entanto, da soberania digital focada não só no interesse coletivo, mas gerada para e apropriada pelo próprio coletivo. Levando isso em consideração, dada a atual conjuntura da emergência dos debates sobre soberania digital ao redor do mundo, o Núcleo de Tecnologia do MTST reivindica uma soberania digital que seja realmente pautada no fortalecimento da luta pelo poder popular na era da sociedade da informação.
Queremos não só acesso significativo às tecnologias, à Internet, à educação digital e midiática, mas também direcionar o rumo tecnológico para quem verdadeiramente realiza a transformação social nos territórios.
O debate sobre o avanço neoliberal da tecnologia em nossas vidas e na sociedade civil como um todo é, também, um debate sobre soberania. Se dependemos cada vez mais de tecnologia para as nossas atividades, e se essas tecnologias vão contra vários dos nossos interesses enquanto sociedade do sul global, então cabe a nós criarmos formas de atuar em contraponto a essa dependência tecnológica. Precisamos ser capazes de construir e manter ferramentas que atendam as necessidades do nosso povo sem ficarmos à mercê das regras e termos de uso de agentes estrangeiros. A questão da soberania digital se torna, assim, um ponto central na construção da cidadania do povo brasileiro.
No MTST, tomamos como tarefa a construção da soberania digital a partir do uso e do desenvolvimento de tecnologias por quem faz as lutas sociais para quem faz as lutas sociais. Quando treinamos os nossos militantes para se tornarem proficientes em tecnologia, quando recrutamos voluntários de fora do movimento para nos ajudar a construir ferramentas que melhorem e ampliem nossa capacidade de luta, e quando tomamos parte no debate público para desmistificar a narrativa liberal hegemônica sobre a neutralidade da tecnologia, estamos criando uma agenda de mobilização popular para articular formas de promover a soberania digital para quem precisa.
Leia o documento completo deles aqui. O movimento tem entre suas lideranças o deputado federal Guilherme Boulos, do PSOL.
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