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A mídia de games precisa ser muito mais radical — e para ontem

por Rafael Silva*

Uma frustração: ver quais são as últimas notícias envolvendo videogames. Enquanto parte dos criadores de conteúdo insiste em agir como algumas das pessoas mais desprezíveis do mundo, as empresas se parecem com aquele estereótipo do pai asiático: nada é bom o suficiente e a culpa é sempre nossa.

E o pior? Nós — e nesse “nós” eu incluo a mídia especializada como um todo, dos grandes portais aos pequenos canais do YouTube — deixamos as pessoas em posições de poder dominar tanto o discurso que até o público começou a repetir as mesmas posições que só fazem sentido se você for o CEO ou um acionista de uma grande empresa do mercado. Não à toa, o símbolo dessa geração midiática é um macaco sem graça…

Defensores de números e de “passaralhos”

Um caso recente foi  quando a Ubisoft resolver dissolver a equipe que trabalhou no jogo Prince of Persia: The Lost Crown e cancelou os planos de uma sequência para o jogo. E isso pegou meio que todo mundo de surpresa, porque não apenas este foi o jogo com maior média no Metacritic que a Ubi lançou este ano, como também foi o único que não saiu em meio a um monte de polêmicas e reclamações: o consenso era que The Lost Crown não apenas era bom pra caramba, como talvez fosse o melhor lançamento da Ubisoft em anos.

Então, qual o motivo do cancelamento? Money. Ou melhor, número de vendas: de acordo com a Ubisoft, o jogo vendeu abaixo das expectativas, e por isso a empresa resolveu cancelar todo o projeto que tinha com ele. Mas apesar de esse ser um discurso que teoricamente faz sentido – afinal, não vale a pena continuar investindo em algo que dá prejuízo – isso já meio que virou uma muleta da indústria pra justificar layoffs, inclusive quando jogos vendem dezenas de milhares de cópias. E no caso do Prince of Persia fica ainda mais estranho, porque não houve uma transparência de qual era a expectativa de cópias vendidas e quanto ele realmente vendeu.

O sucesso é uma linha para cima

De certa forma, o problema por trás de muitas decisões absurdas que acontecem no setor de games é o mesmo que está por trás dos problemas na produção cinematográfica, na área de tecnologia geral, e até em coisas como criptomoedas, NFTs e blockchains: tudo precisa fazer a linha subir. E essa “linha” que precisa sempre subir é o valor das ações de uma empresa.

Esse é talvez o grande problema do nosso atual momento do capitalismo: ter lucro já não é mais o principal objetivo das empresas, mas sim ter um crescimento contínuo e infinito. Hoje, pouco importa se o novo iPhone deu um lucro X% maior do que o modelo passado; se ele não vendeu mais unidades do que o anterior, isso é um problema pros acionistas e faz a sua empresa perder dinheiro. Sim, o nosso momento atual do capitalismo parece aquelas brincadeiras de criança que vai inventando novas regras durante o jogo porque ela não aceita perder: não importa se você teve lucro na sua operação ou não; na real, você pode até operar ANOS no prejuízo que os donos do capital vão continuar te bancando se você conseguir mostrar que não para de crescer (como aconteceu com a Netflix e a Uber).

E, se você não viu o problema desse tipo de mentalidade, eu te explico: como você vai criar todo um sistema econômico baseado no crescimento infinito se vivemos em um mundo onde os recursos não são infinitos? Digamos que a Apple conseguiu fazer o impossível, e todas as pessoas do mundo compraram o novo iPhone. Com a mentalidade de gestão de negócios atual, o pensamento não será “beleza, dominamos 100% do mercado, agora é só colher os frutos”. Não não não não não não. O pensamento será “agora a gente precisa convencer todas as pessoas do mundo a comprar 2 unidades do nosso novo iPhone, senão as ações da empresa caem e a gente perde a confiança dos acionistas.” Percebe o absurdo?

E é este tipo de desconexão entre o cenário ideal de Wall Street e as realidades do mundo que a gente percebe claramente em muitas das pessoas que estão em posições de comando. Elas sabem “fazer dinheiro”. Elas sabem “fazer a linha ir pra cima”. E, muitas vezes, forçam a aplicação de convicções que aprenderam nas faculdades e palestras sem tentar entender se elas se aplicam para o tipo de produto que estão tentando vender.

Porque esse é um outro problema de uma boa parte dessas pessoas que estão no topo de tudo: elas são meio que psicopatas do capital. Elas não jogam videogames, assistem filmes, ou consomem produtos culturais que não “tenham valor” – e o único “valor” que elas acreditam existir é se algo existe para te ajudar a fazer mais dinheiro. Então, essa galera apenas lê livros sobre pessoas que tiveram sucesso fazendo a linha ir pra cima, participam de palestras que ensinam essa linha continuar subindo, e consomem apenas filmes e documentários que exaltam os grandes heróis que usaram toda sua força de vontade super-humana para garantir que a linha continuasse subindo. 

E aí, quando tudo o que eles aprenderam sobre o que é necessário fazer para que a linha continue a subir não funciona, ao invés de se questionar se o que estão fazendo é realmente sinônimo de sucesso, eles resolvem jogar a culpa em nós, os consumidores. Porque é exatamente isso que justificativas como “estamos dissolvendo a equipe porque o jogo não vendeu o esperado” faz: coloca a culpa da falha de um projeto não nas pessoas que gerenciaram ele, mas em quem não saiu correndo pra comprar assim que ele chegou às lojas.

Yves Guillemot, CEO da Ubisoft (Créditos: Divulgação/Ubisoft)

Faces de um “fracasso”

Prince of Persia: The Lost Crown lançou no dia 18 de janeiro de 2024, e em 23 de outubro ele foi oficialmente considerado como um “fracasso” após vender cerca de 1 milhão de cópias. Vamos combinar: há algo muito errado em considerar um jogo “fracassado” apenas 1 ano após o lançamento. E essa velocidade de “cancelar” coisas rapidamente só serve para tirar a responsabilidade de quem realmente tem culpa e colocá-la no lombo do consumidor.

“Compre o jogo na pré-order, no máximo no lançamento, ou então a gente nunca mais vai lançar nada dessa franquia que você ama”; “Assista a série inteira 3 vezes na semana que ela lançou, ou a gente vai cancelar ela e você nunca mais vai saber se o seu ship favorito vai acontecer”; “faça o primeiro lote de ingressos pro show da sua banda preferida esgotar em segundos, ou então a gente nunca mais vai trazer ela pro país”. Esse tipo de pensamento de urgência que só tem um único objetivo – fazer a linha subir – está acabando aos poucos com tudo o que a gente ama. E de uma forma muito perversa: fazendo com que a gente se sinta culpado pelo fim.

Mas a gente não pode aceitar levar a culpa pelas decisões absurdas de quem não consegue enxergar além do próprio mundinho de cifrões pulando na tela. E para isso nós – a imprensa – precisamos parar de lavar as mãos e aceitar a nossa responsabilidade nisso tudo.

Temos que radicalizar o discurso

É por isso que eu defendo que a imprensa – principalmente aquela que não é hegemônica e não tem entre seus donos pessoas que fazem parte daquela turma que só se interessa pela linha que sobe – precisa urgente radicalizar o discurso para o lado do consumidor. Agora você me pergunta, como fazer isso?

O primeiro passo é parar de dar voz para os interesses do capital e dos seus defensores. Por exemplo, notícias sobre tal jogo vendeu não sei quantas milhões de cópias: isso realmente é uma notícia? Ela de verdade pode ser: se for um jogo desenvolvido por uma empresa independente e que conseguiu vender milhões de cópias sem precisar investir milhões de reais em publicidade, e chegar a este número é uma forma de mostrar a força das comunidades em torno de um jogo, é de verdade algo interessante.

Agora, pra quem interessa falar que um jogo desenvolvido por uma empresa que pode contratar milhares de funcionários e investir milhares de dólares em publicidade atingiu a marca de não sei quantas milhões de cópias? Literalmente só a dois tipos de pessoas: acionistas da empresa que desenvolveu o jogo, e a parte do público que gosta de pegar esses números pra fazer guerra de console, enchendo as redes sociais de comentários e argumentos tão maduros quanto“nãnãnãnã, o meu é melhor que o seu 😛”. 

Pra todo mundo que foi bombardeado com propagandas do jogo em qualquer site que acessou, qualquer vídeo do YouTube que tentou assistir ou qualquer streaming no Twitch que tentou acompanhar, o tal jogo vender não sei quanto milhões de cópias não só não é nada interessante, como parece que ele não fez mais do que a obrigação.

Concord, o atual detentor do recorde de speedrun flop any% (Créditos: Divulgação/Firewalk)

Outra coisa que podemos fazer é parar de levar as palavras de CEOs e diretores de empresas como se fossem lei. Não é um problema fazer manchetes do tipo “CEO da Sony diz que o futuro dos jogos está na IA”, mas é um problema simplesmente publicar isso como se fosse lei. O cara pode falar o que ele quiser, mas nosso papel na mídia não deveria ser apenas publicar o que ele disse, mas contextualizar: por que ele disse isso? Existe algum interesse por trás (por exemplo, a empresa estar investindo numa iniciativa de IA e se ele estiver errado serão milhões jogados no lixo)? Nós não podemos culpar o público por considerar esse tipo de declaração como fonte de sabedoria se nem os jornalistas, que na teoria são pagos para fazer essas perguntas, estão fazendo-as. 

Radicalizar para não canibalizar

Mas acredito que o mais importante de tudo é: parar de escrever histórias apenas pela visão do lucro. Uma das coisas mais comuns em qualquer discussão sobre jogos hoje é se um jogo é um sucesso ou um flop (fracasso), e meio que a única coisa que levamos em conta pra definir isso é quanto dinheiro ele fez. Quantas cópias vendeu, se deu lucro pra desenvolvedora ou não, e muitas vezes justificamos esse tipo de abordagem com a desculpa de que “ah, se um jogo vendeu bem está ajudando a galera que trabalhou nele.”

Nada mais longe da verdade: quando falamos do contexto das grandes desenvolvedoras, todo mundo já foi pago a hora que um jogo foi lançado. Se ele vende bem ou não, pouco importa pra galera que fez o jogo: as únicas pessoas que ganham bônus por causa do número de cópias vendidas são acionistas da empresa e os diretores do mais alto escalão – ou seja, aquela galera que só lia relatórios e não participou ativamente do desenvolvimento real.

Por isso, já passou da hora de sermos radicais quando falamos de videogames, olhar menos para o lado “dinheiro & negócios” da coisa e mais para os interesses reais de quem consome esses jogos. Nós estamos aos poucos ensinando para as pessoas que a única forma de se viver que vale a pena é sob a filosofia de se preocupar apenas com o fato da linha estar ou não subindo, e isso vai aos poucos canibalizar não apenas a indústria de jogos, mas tudo aquilo que amamos no mundo.

*Rafael Silva é jornalista desde 2017. Cresceu lendo revistinhas de videogame, entrou numa noia quando percebeu que o “jornagames” ainda era feito para adolescentes que só tinham interesse de discutir qual console era melhor, e agora está numa missão de vingança para resolver isso com as próprias mãos.

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