Comportamento

Concierge da degradação feminina. Por Lia Sérgia Marcondes

Por Lia Sérgia Marcondes, de Portugal, para o Drops de Jogos.

A perseguição online às mulheres existe desde o início da internet. A todo momento, os homens pensam em novas formas de invadir a privacidade das mulheres. Surgiu uma nova plataforma que parece “facilitar” a vida de stalkers e abusadores na internet. É URGENTE discutir a responsabilidade masculina nesse cenário.

Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos

Voltemos no tempo para entender onde começa essa história. Desde o Paleolítico, o registro de forma sexualizada da figura humana desperta o interesse das pessoas. O interesse em registrar, em toda forma de arte, tudo que fosse relacionado ao sexo, é algo que trespassou a Grécia Antiga, o Império Romano, a Índia, atravessando o tempo e os continentes, esbarrando na “muralha” da Santa Inquisição. O interesse sexual tornou-se então algo obsceno, pecaminoso. Como Freud já explicitou em seus estudos, da repressão nasce a perversão.

Colocar na sexualidade humana o carimbo de “proibido” fez aumentar o interesse das pessoas em tudo que se relaciona com o corpo, com o sexo. O crescimento e enraizamento do patriarcado ao redor do mundo, contaminaram o homem por um sentimento de “posse” sobre os corpos das mulheres. A mulher, que outrora era amante e parceira, passa a ser propriedade e subserviente.

Uma vez que o interesse pelas representações sexuais e pelos corpos nús nunca deixou de existir, a partir da evolução tecnológica que popularizou as fotografias, a literatura erótica ganhou força e fãs pelo mundo. E o resto da história todos sabemos, da Playboy ao PornTube.

Na Era Digital, os homens deixaram de se restringir apenas aos conteúdos eróticos que encontravam online. Tornou-se um lugar comum que muitos deles se sentissem confiantes pelo falso anonimato da internet, para pedir fotos e vídeos íntimos de mulheres que, na maioria das vezes, eles sequer conheciam. Porém, esse ato pode ser interpretado como assédio sexual, que é crime. 

Ainda são minoria os homens que compreendem que o ato pedir ou comprar imagens íntimas (sem consentimento ou em condições questionáveis), pode ser um flerte com o código penal. Em muitos países, a simples solicitação de conteúdo íntimo pode ser interpretada como assédio virtual, passível de investigação policial e, em casos mais graves, condenação criminal.

Em um mundo onde a tecnologia avança rapidamente, surgem práticas que desafiam os limites da ética e da legalidade. No mês passado, surgiu nas redes uma plataforma que oferece uma especie de serviço de “concierge” de fotos e videos íntimos. Nela, os homens pagam, sob anonimato, para que a empresa se aproxime de uma mulher e peça fotos, vídeos ou objetos pessoais em seu nome.

A escritora Sheylli Caleffi, ativista pela erradicação da violência sexual e online, recebeu de uma seguidora prints de um contato inusitado, feito por uma  suposta intermediária (que se autodenomina “Jú”) da plataforma Joopter. No reels, Sheylli nos conta como a “Jú”, de forma simpática, avisa à tal moça que ela tinha um fã disposto a oferecer a módica quantia de R$127 (já sem a taxa moderadora da Joopter), por um video dela. O vídeo deveria ter cerca de um minuto de duração, no qual a mulher deveria tirar o sutiã e se mover com os seios à mostra. “Jú” faz questão de ressaltar de que a seguidora só deveria aceitar a proposta se estivesse “confortável” com o pedido.

Curiosa, a seguidora de Sheylli foi dando corda na conversa. Perguntou se seria possível informar a ela quem havia solicitado o tal video, e quais garantias a Joopter daria de que o conteúdo não vazaria na internet. Com um discurso ensaiado e escorregadio, “Jú” diz que a plataforma é perfeitamente segura, mas que se a mulher não se sentisse bem com o pedido, deveria recusá-lo. Traduzindo: faz se quiser e não damos garantias.

A PROPOSTA

Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos

Se você tem o hábito de pedir fotos íntimas a mulheres desconhecidas nas redes sociais, talvez esteja achando essa ideia revolucionária. Nos “becos” da internet, o pedido aparentemente inofensivo pode se transformar em um verdadeiro pesadelo, para ambas as partes. O ato de solicitar fotos ou vídeos íntimos a uma mulher, sob a ilusão do anonimato, não apenas expõe a vítima, mas pode colocar o próprio solicitante em um perigoso campo minado legal e social.

Em conversa com ex-procurador de justiça Roberto Tardelli, especialista em Direito Penal e membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB-SP, avaliamos que essa plataforma não apenas propicia um ambiente de altíssimo risco para as mulheres, como pode levar a possíveis golpes ou até mesmo crimes digitais. De acordo com a ONG Safernet, cerca de 70% das vítimas de exposição de conteúdo sexual na internet são as mulheres. E e este tipo de crime ainda é totalmente subnotificado.

Segundo Tardelli, desde que a situação não envolva menores de idade, a oferta do serviço pela plataforma não fere necessariamente as leis brasileiras: “Não vi crime, porque todas as situações são consensuais e não há teoricamente ilegalidade alguma em receber por atender a fetiches. Se essas imagens vão ganhar o mundo virtual depois, é uma questão entre os contratantes.”, declarou. Embora a atividade não seja tipificada como crime diretamente, a ausência de controle pode facilitar a prática de crimes (como aliciamento de menores).

Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos

No entanto, ainda que não existam denúncias de que a empresa tenha incorrido em alguma ilegalidade, até o momento, também não encontramos garantias nos “Termos de Uso” e na “Política de Privacidade” do site de que contratante e contratados estão livres de problemas legais ou de golpes, ao utilizar o serviço.

De acordo com o ex-procurador, seria preciso fazer uso da plataforma para perceber de que forma a Joopter garante o anônimato do cliente, bem como a segurança de quem vai “vender” sua imagem para satisfazer aos desejos de um desconhecido. E de que forma eles garantem que uma pessoa, menor de idade, não estará envolvida na “transação comercial”. Então, nós testamos.

TESTANDO A PLATAFORMA

Solicitamos o serviço da Joopter, usando um nome falso, data de nascimento falsa, um endereço qualquer e uma conta de e-mail criada apenas para este uso. Pedimos uma foto singela, do nosso editor abraçando seu cachorro. Nesse ponto, descobrimos que o valor mínimo exigido é de R$150. A plataforma fica com 15% deste valor, e o que sobra é o valor que será oferecido ao “alvo”.

Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos

No bate-papo com o assistente virtual, a empresa diz as informações do cliente não serão repassadas para ninguém. A plataforma pede que o comprador concorde com os Termos de Uso e com a Política de Privacidade do site, sem apresentar um link para os textos sejam lidos. Os links estão no rodapé do site.

No texto da política de privacidade, a Joopter diz que o prazo de armazenamento dos dados do usuário é  indeterminado, mas não apresenta uma justificativa para tanto. Além disso, nos termos de uso citam que o usuário que adquirir as mídias não pode divulgá-las ou compartilha-las com terceiros. Porém, a plataforma se isenta de responsabilidade, colocando-se como mera intermediária.

Uma vez colocadas as especificações do pedido, o pagamento é realizado por cartão de crédito. Neste momento, foi utilizado um cartão de crédito cuja titularidade é completamente diferente do nome de cliente fornecido anteriormente. O pagamento é feito por uma plataforma externa de pagamentos chamada Stripe.

Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos

Pedido concluído. De acordo com eles, o cliente receberá em seu e-mail o retorno informando se o pedido foi ou não aceite em até 10 dias. E garantem que o valor será extornado, em caso de recusa. O único contato possível é por um endereço de e-mail.

Note que, em momento algum, a Joopter valida a identidade de quem está fazendo o pedido. Nenhum documento foi solicitado, embora os Termos de Uso indiquem que apenas maiores de 18 anos podem usar a plataforma. Poderia ter sido uma criança, um pré-adolescente, usando o cartão de crédito dos pais, tentando conseguir uma foto sensual de uma colega, vizinha, professora etc. Nenhuma verificação. Nenhuma garantia.

E por falar em garantia, para além do e-mail com o recibo que foi enviado para o “cliente”, a plataforma não forneceu mais nenhum outro dado, que não o e-mail de contato, para o caso do cliente ter problemas com o reembolso. O que está completamente em desacordo com a legislação vigente no Brasil.

Na manhã de sexta-feira (08/03), enviamos um e-mail para o endereço indicado, pedindo à Joopter que dissesse suas informações como CNPJ, Razão Social etc. Mais de 24h depois, até momento da publicação deste artigo, o e-mail não foi respondido. Nem mesmo uma resposta automática.

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

De acordo com os termos de uso da plataforma, “Qualquer disputa será resolvida no foro da cidade onde está localizada a sede do Joopter.”. Contudo, em nenhum lugar do texto ou do site há indicação do endereço da sede da empresa. 

Segundo o advogado Guilherme Belmudes, especialista na área de Direito Empresarial e Tecnologia, o simples fato da Joopter não deixar estas informações claras em seu site, à disposição dos clientes, viola a LGPD, CDC e o próprio Código Civil. Ele disse ainda que a empresa pode ser responsabilizada judicialmente pelas infrações cometidas. “O Marco Cívil da Internet pode ajudar na identificação do usuário, pois a plataforma precisa guardar informações de IP dos visitantes, ou seja, judicialmente pode ser obrigada a fornecer informações do cliente”,  declarou.

Belmudes explicou ainda que a política de privacidade apresentada pela empresa está voltada apenas para os usuários visitantes do site, mas não contempla os possíveis criadores do conteúdo que será vendido, e nem mesmo os usuários que adquirem os serviços da plataforma. “Ela não informa todos os dados que são coletados, citando até “outras informações necessárias”, de uma forma genérica. Ela também não atende às novas resoluções da ANPD, sem falar sobre o compartilhamento internacional de dados e não informa os dados do encarregado (DPO).”, informou o advogado.

Para ele, a forma como a plataforma se diz isenta de responsabilidade pode ser legalmente questionável, uma vez que a atividade envolve uma transação financeira na qual ela é a intermediária. A Joopter também não oferece mecanismos que dêem garantia de que o conteúdo adquirido pelo cliente não seja vazado, podendo dar margem a pedidos de indenização à plataforma.

NA BEIRA DA ILEGALIDADE

O falso anonimato de plataformas intermediárias pode dar coragem a muitas pessoas de fazer algo que não fariam pessoalmente. Pode parecer tentadora a possibilidade de, sob anonimato, pagar para que uma empresa entre em contato com uma mulher indicada e solicite fotos, vídeos ou até objetos pessoais. Embora esses serviços prometam total sigilo ao usuário, a realidade é que nenhuma plataforma está acima da lei.

Outro aspecto a observar, é que este tipo de site é alvo frequente de investigações policiais, já que facilitam a prática de atos ilegais. Qualquer denúncia feita por uma possível vítima pode desencadear uma apuração que, eventualmente, revelará a identidade do contratante, expondo-o a processos judiciais que podem provocar impacto devastadores em sua vida pessoal e profissional, como a perda de emprego, danos à reputação e até mesmo o afastamento de amigos e familiares.

CONCIERGE DA DEGRADAÇÃO FEMININA

Por mais absurdo que pareça para muitas pessoas, a oferta financeira para obtenção de imagens íntimas em um Brasil onde a desigualdade social é tão intensa, pode ser um fator motivador para que mulheres em condição de vulnerabilidade social aceitem se expor. Pior, adolescentes podem ser induzidas a vender imagens de seu corpo, uma vez que a plataforma não faz qualquer verificação de idade.

A prática de solicitar imagens íntimas de uma mulher esbarra de forma inquestionável na Ética. Pagar para que uma empresa invada a privacidade de uma mulher é desumanizá-la, tratando-a como um objeto a ser conquistado, independentemente de sua vontade. Isso não só degrada a dignidade dela, mas também revela a total falta de caráter e respeito por parte de quem contrata este tipo de serviço.

O anonimato não é um escudo contra as consequências das nossas ações. A internet pode parecer um espaço sem regras, mas a lei está cada vez mais atenta a práticas que violam direitos individuais e coletivos. A privacidade é um direito inviolável. E a justiça sempre vai encontrar um caminho para punir os crimes, mesmo aqueles cometidos no suposto anonimato.

Lia Sérgia Marcondes

Mulher, mãe, cozinheira e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem. De esquerda até o último fio de cabelo. Vamos conversar sobre maternidade, cultura pop, arte, tecnologia, não necessariamente nessa mesma ordem. Afinal, no fim do dia tudo é política.

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