Comportamento

Felca e a geração que viu e não questionou. Por Lia Sérgia Marcondes

Por Lia Sérgia Marcondes, de Portugal.

Nos anos 90, eu vivi a transição da pré-adolescência para a adolescência. Naquela época, o termo “pré-adolescência” mal circulava fora dos textos acadêmicos. Para a maioria das pessoas, a vida se resumia a quatro etapas: infância, adolescência, vida adulta e velhice.

Nesta mesma época, a TV aberta brasileira exibia, sem pudor, crianças imitando danças erotizadas de grupos como “É o Tchan” (e ninguém parecia achar estranho). Nas tardes de domingo, mulheres quase nuas, fantasiadas como se tivessem saído de um sex shop, ocupavam a tela. Tiazinha, Feiticeira, concursos de camisetas brancas molhadas, disputas pela “maior bunda”, e até versões “mirim” de grupos de pagode cantando letras de duplo sentido impróprias para menores. 

Era uma época em que eu via tudo aquilo e me sentia absolutamente desconfortável. Não podia estar certo. Ao meu redor, os adultos riam e achavam “fofíssimo” ver uma criança de cinco anos “ralando na boquinha da garrafa”. Mas me faltavam compreensão e repertório para manifestar meu desconforto e estranheza.

Na real, as meninas da minha geração cresceram bombardeadas com revistas “teen” que exaltavam corpos esquálidos e entrevistas em que atrizes adolescentes falavam sobre como conquistar garotos, perder o “bv” (vulgo, “dar o primeiro beijo”) e a virgindade. Na TV, Silvio Santos perguntava a uma Maísa de seis anos se ela tinha namorado e ninguém via problema. Jornalistas questionavam uma Sandy adolescente sobre sua vida sexual, e isso passava impune. Antes disso, na geração de nossas mães e avós, meninas de 15 ou 16 anos já se casavam e, aos 30, uma mulher solteira tinha “ficado para titia” (ou seja, velha demais para o matrimônio).

Este é o pano de fundo, a herança cultural, que formou adultos incapazes de enxergar a violência simbólica da sexualização precoce de crianças e adolescentes. Aqueles que não desenvolveram senso crítico para perceber o absurdo daquele ambiente televisivo, agora não se incomodam ao ver meninas de 10 anos dançando funk, ouvindo MC Pipokinha ou consumindo vídeos como os de Hytalo Santos.

ADULTIZAÇÃO

Se você não  vive isolado na floresta ou sem acesso à internet, deve ter ouvido o nome “Felca” algumas vezes. Seu vídeo “Adultização”, publicado no último dia 7, até o momento em que escrevia este texto, conta com 27 MILHÕES de visualizações. (Se não viu, clica aqui e assiste. E compartilha. É importantíssimo.)

No vídeo, o Felca fez o que muita gente não teve coragem: chamou de ‘adultização’ o que muita gente ainda insiste em chamar de ‘conteúdo’. E o problema não está restrito aos personagens que ele usou como exemplo em seu vídeo, para criticar a erotização precoce de crianças e adolescentes. É sobre o padrão nojento, que já foi normalizado desde antes do surgimento das redes sociais, e que ganhou projeção e amplitude com o advento da internet: vestir criança como adulto, colocar adolescente pra performar sensualidade e vender isso como se fosse entretenimento inofensivo. Spoiler: não é.

Roubar etapas fundamentais da formação humana é irreversível. Curtidas não pagam terapia, tampouco devolvem a inocência perdida. Infância e adolescência não são versões beta da vida adulta. Quando forçamos um menor de idade a sustentar o olhar e o desejo de um público adulto, estamos jogando essa criança num campo de batalha emocional e psicológico sem armadura alguma.

Felca apenas acendeu a luz. E, como era de se esperar, o que se viu foi um verdadeiro “barata voa” nas redes sociais. Se o vídeo encerrar a “carreira” de certos influenciadores, não vejo motivo para lamento. Porque, sejamos honestos, talvez essa carreira nunca devesse ter existido.

Felca. Foto: Lia Sérgia Marcondes/Reprodução/Drops

Lia Sérgia Marcondes

Mulher, mãe, cozinheira e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem. De esquerda até o último fio de cabelo. Conversa sobre maternidade, cultura pop, arte, tecnologia, não necessariamente nessa mesma ordem. Afinal, no fim do dia tudo é política.

Drops

Drops é um site de notícias, games, entretenimento, cultura, ciência, tecnologia e inovação. Criado por Pedro Zambarda em 2015 como o site Drops de Jogos. Dedica-se a notícias curtas (os drops), reportagens exclusivas, em profundidade, pesquisas com o público e análises. É parceiro do Portal Uai, do jornal O Estado de Minas, dos Diários Associados.

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