Os videogames nunca foram uma mídia levada muito a sério pelo mercado, pela academia tradicional, e, sobretudo pela sociedade, âmbito com frequência bastante resistente a esta forma de expressão contemporânea.
Considerando tudo o que o game gera como produto, como elemento de transformação e como mídia cultural, me pergunto: o que acontece que os Jogos Digitais são sempre vistos como uma produção de menor importância e, não raro, como disseminadores da violência na humanidade? Neste artigo, tento vislumbrar algumas respostas.
Infelizmente, desde que a então ministra Marta Suplicy explicitou ignorância e preconceito com os jogos, afirmando que "Não são Cultura" (ouça aqui), as portas da estultícia de políticos e oportunidades parecem ter-se escancarado, com toda espécie de visões negativas a esta produção digital.
Do lamentável massacre de Suzano para cá, o vice-presidente soltou sua pérola, acusando os games de incitarem a violência, mas ele não está só: o Senado Federal está se mobilizando para "avaliar" a possível influência de games violentos no comportamento infanto-juvenil. A proposta para a realização de audiência pública é do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), na CDH, Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
As aspas acima, no termo "avaliar". são a expressão de uma opinião pessoal, já que tendo a acreditar que a tal "análise" dos distintos dignatários não será baseada em estudos e informação técnica e balizada, mas em seus preconceitos e achismos, que visam ganhar holofotes com a espetacularização do tema, sem o devido cuidado com as ponderações necessárias para uma reflexão apropriada, capaz de levar em conta o cerne da questão.
Minha descrença com a qualidade das possíveis avaliações dos nossos legisladores já se inicia na forma como a questão é abordada, ao relacionar a tragédia escolar com os tais "jogos violentos", como afirma o senador em entrevista disponível no portal do Senado: "É uma epidemia o que está acontecendo; nós tivemos aquela tragédia na escola em Suzano, onde a gente viu um pouco do impacto que isso causa. É um efeito potencializador, é a cultura da violência em ação".
A visão hostil contra a linguagem dos games já começa pela forma como o excelentíssimo representante do povo identifica os jogos como "cultura da violência em ação". O problema se agrava quando o político demonstra pleno desconhecimento sobre o tema, ao sugerir que os jogos "não têm controle, não têm regulamentação com relação a compra" e "idade para utilização".
O Ministério da Justiça , órgão responsável pela classificação indicativa de conteúdos eletrônicos no Brasil, lançou, em 24 de outubro de 2013, um Guia Prático para Classificação Indicativa, que propõe análise prévia e autoclassificação de obras audiovisuais (televisão, mercado de cinema e vídeo, jogos eletrônicos e jogos de interpretação – RPG). A proposta do MJ equivale à classificação indicativa dos jogos eletrônicos e de interpretação de personagens e aplicativos digitais, emitidas por entidades reguladoras estrangeiras, como o instituto americano Entertainment Software Rating Board (ESRB) e o europeu, Pan European Game Information (PEGI).
O olhar distorcido e despreparado do senador sobre o assunto já seria ruim o bastante por si só. Mas o problema se agrava com a recorrente vinculação da mídia interativa com a violência social. Não faltam pesquisas, como já indicadas nesse texto, que enfatizam as qualidades dos jogos digitais (mesmo os considerados "violentos"), sem que se confirme qualquer relação entre o comportamento violento de jovens e as narrativas dos games.
Há alguns anos, já escrevendo sobre a triste e recorrente associação entre games e a violência social, elenquei uma dúzia de pesquisas então disponíveis sobre os benefícios dos jogos digitais. Dizia o artigo da época: "Compilei algumas contribuições benéficas das mídias de entretenimento digital, retiradas de várias reportagens da BBC, tais como 'Videogame pode melhorar vida social de adolescentes, diz estudo', 'Videogame antes de cirurgia ajuda médicos', 'Jogador de games ‘é mais saudável’ que a média nos EUA, diz pesquisa' e 'Video game é parte da vida estudantil, diz estudo', entre outros."
Um estudo realizado há 10 anos pelo assistente social Peter Ducharme e pelos médicos Jason Kahn e José Gonzalez-Heydrich, propunha a motivação de crianças à pratica do controle emocional durante o tempo em que jogavam videogame. A intenção era fazê-las aplicar essa habilidade mais tarde, em situações da vida real. Diz o texto científico: "Realizada com crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, a pesquisa comparou pacientes que fazem tratamentos normais para o controle da raiva com os que jogaram o videogame, confirmando resultados positivos para o estudo. De acordo com os resultados publicados na revista Adolescent Psychiatry, o 'Rage Control' conseguiu reduzir os níveis de raiva entre os pacientes". (pesquisa completa – em inglês, aqui)
Um pouco antes destas constatações, o o estudo "Na rota da violência: crianças em contexto armado", realizado por Sergio Fernandes Senna Pires e Angela Uchoa Branco, em 2008, trazia uma evidência alarmante, destacando que "de acordo com os dados levantados por Dowdney (2003), cerca de 5 mil crianças armadas estão envolvidas nas disputas de facções do tráfico de drogas por controle de território no Rio de Janeiro, em condições muito semelhantes às de crianças que atuam como soldados em conflitos armados de variados graus de intensidade ao redor do mundo".
Me pergunto se, fruto dessa realidade (que dificilmente se reduziu na região o longo da última década), não seriam estas crianças e jovens muito mais suscetíveis à brutlidade e selvageria da miséria urbana do que aquelas expostas aos Fatalities de Mortal Kombat… Da mesma forma, não seriam as más condições de subsistência de grande parte da população no país (também presentes na combalida Suzano) igualmente responsáveis pela paranoia que leva jovens a agirem como Duro de Matar nas escolas? São perguntas incômodas que tocam em problemas sensíveis de nossa castigada nação.
Como resultado, temos a conveniente falácia trazida pelos políticos oportunistas e pelo escandaloso jornalísmo Mundo-Cão, que associa games às mazelas e à violência social. Da mesma forma com que governos falam em cortes de gastos, mas nunca em transparência com o uso dos recursos, ou defendem a condenação severa para menores infratores, sem apresentar qualquer oferta de programas capazes de modificar este panorama (entre dezenas de outras práticas não menos condenáveis na esfera político-social, diga-se), lançam-se acusaçõs e hipóteses que não precisam ser comprovadas por fatos ou atestados de forma acadêmica, que se convertem em verdades absolutas para quem não tem acesso (ou não quer) à informação.
Espero estar redondamente enganado.
Uma expressão cultural tão rica e com um potencial empreendedorístico tão transformador para o país merecia uma atenção mais respeitosa.
Vamos aguardar.
Câmbio
Vai passar o PS2?