Por Sullivan Martinelli, Sullz Player, produtor de conteúdo e YouTuber.
A cultura pop é feita de inúmeros encontros improváveis, e entre eles há um particularmente simbólico e singular: a interseção entre o legado do “camaleão” David Bowie e o universo complexo de Metal Gear Solid, criado pelo lendário Hideo Kojima.
Ambos os artistas utilizaram suas mídias para questionar o status quo, desestabilizar noções rígidas de identidade e provocar o público com temas como guerra, manipulação da verdade e vigilância. Ou seja, temas progressistas que nos interessam e que envelheceram como vinho, pois são mais atuais do que nunca!
E nesse artigo buscaremos não apenas destacar as homenagens diretas feitas pela série de jogos furtivos ao icônico artista britânico, mas especular sobre como suas ideias, estéticas e posicionamentos políticos podem ter descambado na construção da narrativa dos videogames.
Descubra mais a seguir:
Quem foi David Bowie
David Bowie foi mais do que um astro do rock (e do pop): ele se identificava com a contracultura dos anos 1960 e 1970, explorando temas como a androginia e a sexualidade fluida. Reinventando-se a cada fase da carreira, Bowie desafiou normas de gênero, identidade e comportamento.
Sua obra, marcada por personagens como Ziggy Stardust, e pelo experimentalismo sonoro, também trouxe à tona críticas sociais e políticas, como no álbum Diamond Dogs, influenciado por 1984 de George Orwell, ou nas letras melancólicas e introspectivas de Blackstar, lançado pouco antes de sua morte.
O que é Metal Gear Solid
A série Metal Gear, iniciada em 1987 e transformada em cult com Metal Gear Solid (1998) de PS1, vai muito além do rótulo “jogo de espionagem”. Kojima, seu criador, teceu uma narrativa filosófica sobre guerra, propaganda, manipulação genética e identidade.
Com diálogos densos, personagens ambíguos e rupturas com as convenções do gameplay tradicional, Metal Gear sempre foi uma obra política ~de esquerda~ e profundamente humana.
Hideo Kojima e a cultura pop ocidental
Hideo Kojima é um diretor que nunca escondeu sua paixão pelo cinema, pela música e pela cultura pop do Ocidente. De 2001: Uma Odisseia no Espaço a Escape from New York, suas referências são abundantes e evidentes.
Mas entre todas elas, uma parece se destacar: David Bowie. E isso não apenas por camisetas ou trilhas sonoras, mas por ecos conceituais que aparecem nos jogos com frequência surpreendente.
Saiba mais a seguir:
Referências diretas a David Bowie nos jogos
Camisa estampada:
Hideo Kojima no palco da E3 2013, acenando para o público enquanto veste uma camiseta preta com o rosto de David Bowie estampado, por baixo de um blazer escuro.

Foto: Reprodução/YouTube/Montagem Pedro Zambarda/Drops de Jogos
Durante a E3 de 2013, após a apresentação do trailer de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain, Kojima-San (como foi chamado) falou brevemente sobre o jogo enquanto utilizava por baixo do seu blazer uma camisa estampada com o rosto de David Bowie. Essa é uma ótima forma de homenagear um de seus artistas favoritos, não é mesmo?
Homenagem Póstuma, “Ouvindo ★ Olhando para ★:
Listening to ★
And looking at ★ pic.twitter.com/BGdjO7JL9V— HIDEO_KOJIMA (@HIDEO_KOJIMA_EN) January 11, 2016
Foto publicada por Hideo Kojima em 11 de janeiro de 2016, mostrando o álbum “Blackstar” de David Bowie em homenagem ao artista após seu falecimento.
Esse foi um post de Kojima no antigo Twitter após a morte do cantor aos 69 anos, depois de uma luta de 18 meses contra o câncer. Isso mostra o quanto o diretor de jogos sentiu a sua perda.
- A música “The Man Who Sold the World”, composta por Bowie, é um dos temas mais latentes em Metal Gear Solid V: The Phantom Pain. E o próprio Kojima já chegou a dizer em um post que a letra da canção é a chave para compreender a estrutura do game!
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At the beginning of MGSV, "THE MAN WHO SOLD THE WORLD", a cover of David Bowie's famous song by Midge Ure, is played in the hospital in Cypros. If you listen deeply to the lyrics here, you can understand the structure of MGSV. pic.twitter.com/wQks4gCmgG— HIDEO_KOJIMA (@HIDEO_KOJIMA_EN) March 2, 2022
- O codinome “Major Tom”, usado por Zero em Metal Gear Solid 3: Snake Eater, é uma referência direta à música “Space Oddity”, de Bowie. E em determinado momento do jogo há um diálogo entre o protagonista Naked Snake e Zero em que a canção é parafraseada, conforme você pode conferir na seguinte imagem:
Questões Políticas em Comum
O olhar crítico de Bowie
Ao longo de sua enorme carreira e discografia, Bowie se destacou não apenas pela sua musicalidade inovadora e estética camaleônica, mas também pelo seu olhar crítico sobre o mundo, camuflado em harmonias e acordes apoteóticos.
Embora nem sempre fosse diretamente panfletário, ele utilizava suas personas e letras para provocar, questionar e desconstruir narrativas de poder. Ou seja, um gênio ~ou Jean Genie~.
Nesse contexto, vale a pena destacar:
- Oposição à guerra e à opressão: em músicas como “I’m Afraid of Americans”, Bowie expressa uma inquietação com a expansão imperialista e o domínio cultural dos EUA. um tema que ressoa com debates contemporâneos sobre globalização, consumo e militarismo.
- Críticas veladas a governos autoritários: o álbum Diamond Dogs foi inspirado em 1984, de George Orwell, e trata diretamente de temas como vigilância, repressão e distopias totalitárias. O próprio Bowie tentou adaptar o livro em formato musical antes de ser barrado pelos detentores dos direitos autorais.
- Desconstrução de normas de gênero como resistência cultural: ao dar vida aos seus personagens autorais como Ziggy Stardust e Aladdin Sane, Bowie desafiava não apenas padrões estéticos e de moda, mas também a rigidez do sistema de gênero binário, propondo um corpo fluido, um estilo híbrido e uma sexualidade livre. Ou seja, atitudes que funcionaram como respostas culturais à normatividade e ao conservadorismo moral… mas isso há muitas décadas, o que torna tudo muito mais icônico.
A visão política de Kojima
Mesmo que não se declare explicitamente como militante, Kojima constantemente usa a linguagem dos videogames para expor e criticar estruturas políticas e militares de poder.
A série Metal Gear é, em grande parte, uma denúncia amarga das consequências da guerra, do avanço da tecnologia bélica e da manipulação ideológica.
Nesse sentido, alguns pontos de destaque incluem:
- Crítica ao imperialismo e ao complexo industrial-militar: jogos como Metal Gear Solid e Peace Walker expõem como nações poderosas mantêm sua influência através da guerra perpétua, das armas nucleares e do domínio econômico. Solid Snake, o protagonista e clone soldado geneticamente modificado, é usado como peça de tabuleiro a serviço de interesses ocultos.
- Desconstrução da figura do herói de guerra: ao longo da saga, especialmente em The Phantom Pain, Kojima desfaz o mito do herói militar. Big Boss, outrora símbolo de resistência, é revelado como produto de manipulação e violência sistemática, e sua figura é fragmentada entre múltiplas personas, como Venom Snake, que é literalmente um “herói fabricado” para servir de distração.
- Enfoque na manipulação da verdade, propaganda e fake news: Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty já antecipava debates contemporâneos sobre desinformação, controle algorítmico e o colapso da verdade compartilhada. Os Patriots, inteligência artificial que governa o mundo nos bastidores, editam e censuram a informação disponível às massas. Ou seja, antecipando a era da pós-verdade e das guerras culturais mediadas por algoritmos e interesses ideológicos ~ou o Gabinete do Ódio mesmo, também conhecidos como “Patriotas”~.
Exemplos nos jogos:
- Metal Gear Solid 2 (2001) – Monólogo do AI “Colonel” sobre o controle da informação:
“We will decide what is necessary to be recorded, what will be erased. The world will be run by our digital memories.” - MGS: Peace Walker (2010) – Big Boss critica os EUA por interferirem em governos latino-americanos, representando uma clara crítica ao intervencionismo estadunidense durante a Guerra Fria. Isso não te lembra o golpe de 1964?.
- The Phantom Pain (2015) – O processo de lavagem cerebral de Skull Face e a instrumentalização de línguas como armas coloniais (literalmente, no caso do Parasite Unit), revelam o papel da linguagem e cultura na dominação imperialista.
“Diálogo” entre ambos os artistas
Apesar de trabalharem em diferentes formas de arte, Bowie com a música, a atuação e as suas performances; Kojima com os videogames e o cinema interativo, ambos os artistas convergem politicamente em suas obras.
Em comum, carregam:
- A crítica ao autoritarismo;
- A recusa do militarismo como valor absoluto;
- A desconfiança em relação à verdade oficial;
- O questionamento de normas sociais como gênero, nacionalidade e identidade.
Cada um à sua maneira, Bowie e Kojima provocam seu público a sair da zona de conforto, a duvidar das verdades estabelecidas e a imaginar um futuro menos conformista.
Se Bowie fez isso com riffs, sintetizadores e maquiagem, Kojima o faz com longas cutscenes, diálogos densos e mecânicas narrativas inovadoras.
Juntos, ainda que indiretamente, eles constroem uma ponte entre o entretenimento e a crítica social. Uma ponte onde o artista é também um ativista, e onde a cultura pop pode (e deve) servir como trincheira contra o autoritarismo e o vazio moral da guerra.
E sabe qual é a melhor parte nisso tudo? A qualidade absurda de ambas as obras e seu valor artístico são absolutamente inquestionáveis!
Algo que diverge da problemática protagonizada pelo bilionário Elon Musk afirmando que a DEI (diversidade, equidade e inclusão) mata a arte.
Enquanto Elon Musk acusa a diversidade de “matar a arte”, Bowie e Kojima provam justamente o contrário: é na pluralidade, na ousadia e na quebra de normas que a arte vive, respira e transforma.
Referência: https://br.ign.com/assassins-creed-shadows/125551/news/produtor-de-assassins-creed-shadows-diz-que-elon-musk-alimentou-odio-contra-o-jogo
Um Olhar Progressista sobre a Obra
É inegável que Metal Gear, assim como a obra de Bowie, não está imune a contradições e críticas. A série de Hideo Kojima, por exemplo, já foi apontada, com razão, por:
- A representação de personagens femininas em Metal Gear ainda carrega uma sexualização excessiva, como no caso da personagem Quiet em The Phantom Pain. A justificativa narrativa proposta por Kojima não convenceu parte do público e reforçou críticas à objetificação no design de personagens femininas.;
- Ter uma representação ainda tímida de personagens LGBTQIAPN+, especialmente considerando a fluidez de identidade tão presente em outras áreas da obra.
No entanto, é preciso reconhecer também o quanto Metal Gear foi ousado ao introduzir temas densos, filosóficos e politicamente relevantes dentro de uma mídia que ainda enfrentava, nos anos 2000, um forte estigma de “produto infantil ou escapista”.
Avanços narrativos e existenciais
Enquanto boa parte da indústria focava em temas simples ou genéricos como ação desenfreada, Kojima desenvolveu seus games destrinchando dilemas como:
- O que é ser um soldado?
- O que define uma nação?
- Como distinguir verdade de manipulação?
- O que é identidade se ela pode ser fabricada?
Em Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty, por exemplo, o protagonista Raiden descobre que ele mesmo é apenas uma peça descartável em um experimento de controle. Um questionamento que ecoa discussões sobre livre-arbítrio, alienação e o papel do indivíduo frente às estruturas de poder.
Identidade como jogo
Assim como Bowie revolucionou o imaginário da masculinidade ao assumir personas como Ziggy Stardust ou The Thin White Duke, Metal Gear brinca com identidades falsas, trocadas, roubadas ou forjadas. De Naked Snake a Big Boss, de Raiden a Venom Snake. Todos eles são, de alguma forma, corpos em disputa: seja sendo dominados por nações, ideologias ou por memórias implantadas.
Essas narrativas colocam em xeque noções conservadoras de sujeito fixo, de protagonista unilateral, de pátria inquestionável.
Videogames como mídia crítica
Ao propor esses temas, Kojima contribuiu para uma virada nos videogames enquanto arte: uma arte que também é capaz de fazer pensar, de criticar o status quo, de provocar incômodo e reflexão.
Conclusão
Ambos os autores, um vindo da música, outro dos videogames, criaram mundos onde identidade, poder, memória e liberdade são temas vivos, sensíveis e urgentes. E talvez seja justamente por isso que suas obras continuam ressoando com tanta força, mesmo décadas depois.
Mais do que uma curiosidade entre fãs, essa ponte entre Bowie e Kojima nos convida a olhar para os games e para a cultura pop como ferramentas de transformação social. Seja questionando a guerra, os governos autoritários ou as normas de gênero, essas obras mostram que é possível expressar resistência por meio da arte através do tempo.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.