Publicado originalmente no site da Game e Arte
POR JADERSON SOUZA, desenvolvedor de jogos negro
Todas as quintas-feiras, acordo por volta das 10 horas e vou ao supermercado. Pego duas ou três sacolas, boto no carro e vou às compras.
Escolho pelo supermercado mais em conta. As coisas estão ficando muito caras, então também opto por ir aos “atacarejos”.
De manhã, sou bastante desligado. Meu cérebro leva algumas horas pra acordar de fato. Chegando ao mercado, percebo que esqueci a carteira. Puta merda. Ainda bem que ele fica há 2 ou 3 quilômetros de casa. Fiquei bravo, claro, pois ninguém gosta de perder tempo. Volto pra casa, pego a carteira e sigo rumo à missão da semana.
No caminho, fiquei pensando que as coisas acontecem porquê elas precisam acontecer. E que eu não deveria ficar tão bravo por algo tão simples.
Cheguei ao estacionamento acelerado. Sem prestar muita atenção, amassei a frente do carro ao bater num daqueles carrinhos jogados no estacionamento. Que saco. Na tentativa de recuperar os 15 minutos perdidos, acabei acelerando demais e não prestando atenção nos benditos carrinhos. Fazer o quê.
Nos corredores do supermercado, sou bastante prático. Pego rapidinho as mesmas coisas de sempre. Não saio andando por todos os lugares com o carrinho. Estaciono ele nas esquinas, bem no cantinho pra não atrapalhar ninguém. Como uma espécie de sonda espacial, desacoplo meu corpo do recipiente de comidas e vou buscar o que preciso das gôndolas.
De vez em quando, até me arrumo um pouquinho melhor. Em épocas de pandemia, ir ao supermercado se torna um passeio. É legal, pois algumas gurias até dão uma olhadinha. Assim, bem de lado. Nada muito indiscreto.
Acontece que, na maioria da vezes, não é assim. Coloco uma camiseta de casa, um short velho e um tênis. Máscara também, claro. Meus cabelos crespos, que estou deixando crescer pela primeira vez na vida, nem ligo de passar o pente.
Eis a fórmula perfeita pra chamar a atenção. Não das mulheres, mas dos seguranças.
Entro na fila do caixa. Uma segurança, que estava passando, me acha interessante. Ela para há 3 metros de mim. Cruza os braços. Espera a minha vez chegar. Super gentil. Enquanto coloco tudo na esteira, ela olha atentamente para minha apurada técnica de “tira e põe”: tira do carrinho, põe na esteira. De fato, tem gente que realmente sabe apreciar a boa arte.
Tira a cerveja. Põe o iogurte. Tira o chocolate. Põe o pão-de-queijo. Quantas coisas gostosas! O suspense só aumenta. Será que o preto conseguirá pagar essas compras?
Ops! Ainda tenho as sacolas. Melhor abri-las, uma à uma, e dar uma chacoalhada. A audiência agradece, pois agora tem certeza de que não esqueci, assim por engano, uma ou duas lâmina de barbear de 15 conto lá dentro.
Quanta pressão. Assim, eu não consigo respirar.
Ao final da cena, resolvo quebrar a quarta parede. Olho pra ela, mas ela finge que não me vê. Nosso amor não é recíproco. Compras registradas, cartão na máquina. Finalmente, o terceiro ato está consumado. Satisfeita, a plateia vai embora. Como uma estrela de um musical, pego agora as “minhas” compras, e também saio de cena.
Sabe, ir ao supermercado às vezes se torna um ato performático. Melhor ainda é quando o jogo acaba bem. Sem revistas. Sem pedir pra ver a tua nota fiscal na saída. Sem agressões ou sufocamentos.
Infelizmente, nem sempre acaba.
Texto em memória de João Alberto Silveira Freitas, assassinado na véspera do Dia da Consciência Negra, em 2020.
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