Ontem, a notícia de que o NerdBunker (a parte de jornalismo de cultura geek do site Jovem Nerd) estava demitindo praticamente toda a redação pegou muita gente de surpresa. Ou, pelo menos surpreendeu quem não está tão por dentro do que acontece no mercado de jornalismo. Pra quem faz parte dele a notícia foi muito triste, mas acho que ninguém se surpreendeu.
São raros os casos quando o fechamento de uma redação inteira surpreende quem trabalha na área – o mais recente desses foi o caso da Polygon. No geral, todo jornalista hoje sabe que a maior surpresa é quando ainda tem uma redação para trabalhar.
Mas, mais do que mais um chute no cadáver patético que é o jornalismo de cultura no Brasil, o fim da NerdBunker é o sintoma de uma doença que está causando crise em praticamente todas as indústrias: o Capitalismo autoimune.
O que é o Capitalismo autoimune
Na medicina, chama-se de “autoimune” quando uma doença ou outro fator causa uma “desregulação” no sistema imunológico. O resultado disso é que o sistema que deveria proteger o corpo de invasores começa a atacar as próprias células e tecidos do organismo.
Este efeito é, de certa forma, parecido com a contradição inerente ao capitalismo que foi apontada por Marx. Para que acumulem riquezas, os donos do capital precisam explorar seus trabalhadores. Ao mesmo tempo, esses trabalhadores também são consumidores, e a exploração em demasia do valor gerado por essas pessoas acaba atrasando ou até impedindo que a acumulação de riquezas seja constante e infinita.
Em outras palavras: o valor que o “patrão” ganha é o lucro, que nada mais é a diferença do quanto ele obteve vendendo mercadorias ou serviços vs o quanto ele pagou pelo trabalho de seus funcionários e outras taxas para manter a empresa funcionando.
E há três formas claras de aumentar esse lucro: mais pessoas passarem a comprar o produto/serviço, diminuir o custo de manter a fábrica funcionando, e diminuir o custo dos trabalhadores. E no meio disso tudo que está a contradição do sistema: enquanto se prega que o lucro deva ser sempre algo em constante crescimento, quanto mais tempo uma empresa opera mais difícil é suprir essa expectativa.

Infelizmente, a única linha pra cima crescente de qualquer indústria é a de uso do PornHub no PS4 e PS5 (Créditos: Drops de Jogos)
Por exemplo, qualquer pessoa com um mínimo de noção sabe que o rol de clientes de uma empresa não é infinito. Uma hora ou outra ele não vai mais crescer, porque há sempre um limite de pessoas capazes de consumir qualquer produto. Então, se não é possível contar com um crescimento infinito do número de clientes, o aumento do lucro precisa sair de outras partes.
Uma das possibilidades é a diminuição de custos de operação, e nisso entra todos os lobbies que a gente conhece sobre isenções fiscais. E outra possibilidade é diminuir o valor pago pelo trabalho.
Diminuir o valor pago aos trabalhadores é algo até que bem fácil – principalmente quando os órgãos que deveriam fiscalizar contra isso estão no seu bolso. Mas, ao diminuir o valor pago pelo trabalho, você também diminui o pode de compra das pessoas, e isso diminui também a quantidade de pessoas que podem pagar pelo seu produto ou serviço.
E essa contradição funciona como uma doença autoimune, pois é o mesmo mecanismo que deveria justificar a existência de um sistema que está corroendo ele por dentro e escancarando as feridas que ele gostaria de esconder.
E se o capitalismo é uma doença autoimune, casos como a demissão de toda a redação do NerdBunker é aquela febre que não passa em uma pessoa antivax. Porque o problema não é que ninguém pode ajudar ela, mas é que a solução passa por algo que ela se recusa a acreditar que funciona e por assumir um problema que ela se recusa a aceitar que tem.
Nerdbunker, crise de games e fim do home office: tudo farinha do mesmo saco
Em 2020, durante a pandemia de COVID-19, o Magalu mostrava que tinha um plano de futuro ousado: querer se tornar no Brasil o que a Amazon é nos EUA.
Por isso, em agosto daquele ano o grupo anunciou as aquisições do Unilogic Media Group, da Inloco Media e do Canal Geek Internet (mais conhecido como o site Canaltech). E, como a própria varejista anunciou em um comunicado oficial, estas aquisições “marcam a entrada do Magalu no segmento de publicidade online, combinando a geração de conteúdo e audiência com a plataforma para comercialização de mídia digital”.
Em abril de 2021, o grupo deu mais um passo nessa estratégia e anunciou também a compra do Jovem Nerd, que já era um dos maiores sites geek do Brasil naquela época. Assim como muitas empresas, o Magalu tinha tido um boom de seus negócios online, e estava se preparando para o “novo normal” de um pós-pandemia: onde ela seria uma das principais plataformas online do país, misturando e-commerce, marketing online, pagamentos digitais e conteúdos que levariam a empresa para o topo da preferência do consumidor.
Mas, como mostra um levantamento do e-commerce brasileiro feito pela Conversion, esse sonho nunca ficou nem perto de se tornar realidade.

(Imagem: divulgação/Conversion)
Tudo indica que o erro do Magalu foi o mesmo cometido por diversas outras empresas nos últimos anos: a de achar que o boom digital causado pela pandemia era o “novo normal”, e não uma onda passageira que foi influenciada pelo fato de mais pessoas ficarem trancadas em casa e todo o consumo delas neste período ter se digitalizado.
Para quem não lembra, entre 2020 e 2022 diversas empresas da indústria de tecnologia, comércio digital e videogames fizeram milhares de contratações para suprir a demanda crescente por soluções virtuais.
Assim, não é de espantar que esses são os mesmos setores que hoje anunciam demissões em massa quase toda semana. Afinal, muitas contratações foram justificadas não pela demanda do momento, mas pela visão de que os picos de vendas da COVID eram um novo padrão, e não algo temporário.
E todas essas estratégias são baseadas no mesmo conceito: a de que o crescimento (e o lucro) de uma empresa e de seus acionistas deve ser sempre uma linha crescente constante. E todas as ações de uma empresa são para alcançar este objetivo. E é a busca incessante por este único objetivo inatingível que tem causado crises, demissões e o medo do futuro em trabalhadores de diferentes indústrias em todo o mundo.
O fim do NerdBunker não foi apenas uma tragédia anunciada, mas mais um sintoma da mesma doença que também causa as demissões em massa, a crise no mercado de videogames e o fim das políticas de trabalho remoto.
O mais trágico de tudo? Essa doença autoimune pode ser curada – ou ao menos causar muito menos problemas. Só que nosso sistema é aquele antivax que prefere morrer com uma convicção errada do que abrir a cabeça para novos comportamentos e aceitar a vacina que irá salvá-lo.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.
Já era um sinal que isso viria, visto que outros jornalistas foram demitidos anteriormente e mesmo com um publico fiel, o podcast Mau Acompanhado foi descontinuado por duas vezes, o que parece que se o programa não atrai anúncios ele não pode continuar.