Game Over: Como a Direita Zerou o Jogo. Por Reynaldo Aragon - Drops de Jogos

Game Over: Como a Direita Zerou o Jogo. Por Reynaldo Aragon

Esquerda, extrema direita, política e, sim, videogames

Controle de videogame. Foto: Reprodução/Nadine Shaabana (via Unsplash)/Montagem Pedro Zambarda/Drops

Controle de videogame. Foto: Reprodução/Nadine Shaabana (via Unsplash)/Montagem Pedro Zambarda/Drops

POR REYNALDO ARAGON. É jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC) e do INCT em Disputas e Soberania Informacional.

Enquanto a esquerda tropeçava no fio do controle, a extrema-direita já tinha formado seu time, escolhido o campo de batalha, ocupado os espaços digitais e começado a ganhar terreno com estratégia e estética. Esse jogo começou faz tempo. Eles atuam em rede, dominam a linguagem da internet e entenderam que política também se vence com imagem, repetição e narrativa. Do outro lado, seguimos esperando na tela inicial, como quem ainda não percebeu que a partida já está em andamento.

Você piscou, foi tomar um café, abriu o WhatsApp da família e, quando voltou, seu primo gamer estava postando vídeo de coach libertário e defendendo o Elon Musk como se fosse um cavaleiro templário da liberdade digital. Não foi magia. Foi estratégia.

Enquanto a esquerda ainda discutia se o Orkut era alienante ou se o Twitter era espaço de debate qualificado, a extrema-direita já tinha entendido tudo. Sabia que os fóruns, os chats, os streamings e principalmente os games não eram só lazer. Eram terrenos férteis, fértil demais. Ali moravam milhões de jovens conectados, competitivos, desiludidos com a política tradicional, prontos para ouvir quem soubesse falar a língua deles. E a nova direita aprendeu rápido a linguagem das batalhas, dos avatares, dos memes, dos clãs, da virilidade digitalizada.

O resultado foi um fenômeno que hoje parece óbvio, mas que pouca gente viu nascer. Um exército digital formado a partir de headsets, consoles e servidores. Jovens que entraram no jogo buscando XP e saíram marchando com discursos tecnoliberários, antifeministas e paranoicos sobre o “globalismo comunista”. Se você achava que os games eram apenas diversão, talvez tenha perdido a primeira fase da guerra cultural.

Como tudo começou — o flerte com a tecnologia.

Muito antes de virar moda citar algoritmos e falar em IA com cara de quem entende do assunto, a nova direita já rondava os becos da internet com faro aguçado. Não foram os intelectuais da USP, nem os colunistas do New York Times, que enxergaram primeiro o potencial político do digital. Foi Steve Bannon, ainda em 2006, quando investiu na empresa de comércio de bens virtuais em jogos como World of Warcraft, que percebeu algo maior do que simples entretenimento. Ex-banqueiro, operador de fundos e futuro estrategista da campanha de Trump, Bannon olhou para os fóruns de jogadores e viu ali um exército dormindo.

Bannon não via adolescentes isolados jogando por horas. Via homens brancos jovens, frustrados, mal pagos, cheios de raiva e com tempo de sobra. Em outras palavras, via um perfil politicamente mobilizável. Ele investiu em empresas de jogos, frequentou fóruns como o World of Warcraft e identificou ali o que chamou de “os virgens furiosos de 15 anos”. Não foi com desprezo, mas com cálculo. Sabia que esse grupo podia ser ativado, não com panfletos, mas com narrativas de força, vingança e identidade.

A tecnologia não era o tema. Era o meio. O objetivo era construir, dentro do ecossistema digital, uma cultura política de ressentimento armado. Com memes no lugar de discursos, com ironia no lugar da empatia, com masculinidade tóxica no lugar de qualquer projeto coletivo. E funcionou. Enquanto as redações discutiam ética na web, a nova direita dominava o território. 

A fase gamer — o joystick da radicalização.

Tudo mudou em 2014, com um evento que muita gente de fora do mundo dos games ignorou, mas que se tornaria um marco da radicalização digital contemporânea: o Gamergate. O estopim foi uma acusação sem provas contra uma desenvolvedora independente de jogos, Zoe Quinn, feita por um ex-namorado ressentido. Em poucas horas, a denúncia virou combustível para uma avalanche de ataques misóginos, campanhas de difamação, doxxing e ameaças de estupro e morte, tudo organizado por usuários de fóruns como 4chan e Reddit.

O que parecia uma briga de casal somada a uma crise na crítica de videogames rapidamente se revelou algo muito mais profundo. O Gamergate virou o primeiro campo de batalha explícito entre a cultura gamer e os valores progressistas. A retórica era de defesa da liberdade de expressão, mas o alvo era claro: mulheres, pessoas LGBTQIA+, jornalistas críticos e qualquer tentativa de tornar a cultura gamer mais inclusiva. A lógica era simples. A comunidade gamer era “deles”. E qualquer tentativa de questionar o machismo, o racismo ou a toxicidade do ambiente seria respondida com guerra.

Foi aí que a extrema-direita entrou de cabeça. O Breitbart News, sob comando de Steve Bannon, começou a publicar artigos em defesa do movimento. O jornalista Milo Yiannopoulos  virou o porta-voz midiático da cruzada gamer contra o que chamavam de esquerdismo cultural. O Gamergate não só normalizou a violência digital, como também inaugurou uma nova estratégia de mobilização política online. A comunidade gamer virou campo fértil para memes, narrativas de guerra, códigos internos e identificação coletiva.

A partir dali, a política passou a ser vivida como um jogo. Havia inimigos, aliados, recompensas e “chefões” a serem derrotados. A esquerda virou NPC. O feminismo virou vilão. O ressentimento virou missão. E figuras como Trump e Bolsonaro passaram a ser vistos por muitos desses jovens como personagens jogáveis de uma cruzada maior. Não era mais sobre videogames. Era sobre a sensação de pertencimento, de força e de revanche.

O que eles construíram — do clã à cruzada digital.

Depois do Gamergate, a máquina estava montada. O que começou como uma reação a críticas no jornalismo gamer se transformou em um ecossistema político-cultural inteiro. A radicalização deixou de ser um acidente de percurso e passou a ser projeto. O objetivo não era apenas defender os jogos de supostos ataques progressistas. Era criar uma identidade de guerra. Uma forma de estar no mundo baseada na lógica do conflito constante, da polarização absoluta e do ódio performado com ironia.

O gamer radicalizado não se via mais como parte da política tradicional. Ele era parte de algo maior. Um clã, uma guilda, uma comunidade com inimigos bem definidos. O feminismo era ameaça. A diversidade era ameaça. A mídia era ameaça. A universidade, então, era o castelo do inimigo. E, como em todo jogo bem construído, era preciso defender sua base e atacar a do outro, sempre em missão permanente.

Nasceu ali um novo tipo de militante digital. Ele não usa camiseta de partido nem frequenta sindicato. Ele tem canal no YouTube, faz live na Twitch, cita Jordan Peterson como se fosse um NPC lendário e fala em liberdade com a paixão de quem acabou de decorar um livro de autoajuda libertária. É tecnoliberário, masculinista, paranoico e fanático por qualquer narrativa que envolva um grande plano maligno que só ele conseguiu enxergar.

A estética do combate está por toda parte. Os memes viram dogmas. Os emojis substituem argumentos. O riso é sempre arma. Se alguém questiona, é lacrador. Se tenta dialogar, é fraco. Se rebate, é censura. O jogo é esse. E eles jogam como se estivessem vencendo.

Foi nesse ambiente que nasceram muitos dos influenciadores que, vindos da cultura gamer e do entretenimento digital, se alinharam sem hesitação à nova extrema-direita. Monark, Nando Moura, Arthur do Val (o “Mamãe Falei”) e outros nomes do panteão do YouTube brasileiro foram forjados nessa lógica de guerrilha simbólica, onde o capital político se constrói com visual despojado, muita certeza, memes prontos e ódio polido em ironia. Eles não surgiram em partidos ou em jornais. Vieram dos jogos, dos fóruns, das lives e das tretas digitais. E quando viram a janela ideológica se abrir, entraram com o pé na porta.

E a esquerda? Nem jogou.

Sabe aquele meme clássico em que o irmão mais novo fica segurando um joystick desligado achando que está jogando, enquanto os mais velhos dominam a partida de verdade? Pois é. Durante boa parte da última década, foi mais ou menos assim que a esquerda se comportou diante da cultura digital. Falava em inclusão, cidadania, educação crítica e outras pautas legítimas, mas tudo isso com o controle desconectado, de fora da arena principal onde o jogo real acontecia.

Enquanto isso, a extrema-direita já fazia live, meme, raid, vídeo de três horas com fundo preto e discurso épico contra o marxismo cultural. A esquerda insistia em se comunicar com linguagem de edital, como se o Instagram fosse um mural de centro acadêmico. Perdeu tempo subestimando os memes, ridicularizando os games, ignorando os streamers e fingindo que a internet era uma distração e não o novo campo de batalha cognitiva.

Claro que existem exceções e muita gente boa fazendo resistência. Mas o grosso da estratégia digital progressista chegou tarde, quando o mapa já estava dominado, os servidores ocupados e os algoritmos treinados para amplificar o ruído. Enquanto alguns ainda discutiam se Fortnite era alienação, o adversário já tinha virado influencer, criador de teoria conspiratória e líder de culto digital com canal monetizado.

Faltou presença. Faltou estética. Faltou jogo. E o preço está sendo pago em desinformação, votos, ressentimento e trincheiras digitais que não se desconstroem com artigo acadêmico.

Ainda dá para jogar, mas o inimigo já está com o mouse na mão.

A cultura gamer virou campo de batalha, e a extrema-direita não apenas entrou no jogo como decorou o mapa, dominou os atalhos e virou líder do ranking. O erro da esquerda não foi só o atraso, foi achar que o jogo era outro. Enquanto escrevíamos artigos sérios sobre ética na rede, a outra ponta já estava montando trincheiras em servidores, plantando ressentimento com skin de liberdade e vendendo teoria da conspiração como se fosse DLC.

A boa notícia é que o jogo não acabou. Ainda dá para jogar, montar time e entrar na disputa. Mas isso exige mais do que ocupar redes sociais com conteúdo informativo. Exige entender estética, narrativa, humor, linguagem, ritmo, pertencimento. Exige tratar os games, os fóruns, os memes, os streamings e os youtubers como parte real da disputa política, e não como fenômenos colaterais.

Não se trata de invadir o espaço dos gamers com panfleto de ONG. Trata-se de disputar imaginação, linguagem e comunidade com inteligência estratégica e projeto de mundo. Porque, sim, a política virou um jogo. Mas ainda dá pra virar a partida. Só não dá pra continuar com o controle desligado.

Controle de videogame. Foto: Reprodução/Nadine Shaabana (via Unsplash)/Montagem Pedro Zambarda/Drops

Controle de videogame. Foto: Reprodução/Nadine Shaabana (via Unsplash)/Montagem Pedro Zambarda/Drops

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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