Cultura

Novo Universo Absolute cala velhas críticas e revoluciona os heróis da DC com sucesso meteórico

Se você já lê quadrinhos há algum tempo deve saber que uma das maiores críticas aos super-heróis é que, se você colocá-los em um cenário geopolítico real sem as ambientações narrativas e décadas de atualizações em seus conceitos, provavelmente vai se deparar com fortes traços de fascismo e comportamento reacionário. E, graças à inventividade e bons roteiros do roteirista Scott Snyder, o novo universo recorrente de narrativa canônica Universo Absolute tem reparado essa imagem.

Essa é a maior bronca de Alan Moore, e não há como negar que as missões da Liga da Justiça e dos Vingadores giram, basicamente, em torno da negação das mudanças impostas por opositores considerados vilões “culpados” por uma situação que é combatida de forma autoritária por líderes idolatrados como símbolos de suas nações. Pois bem, o Universo Absolute vem justamente para inverter os papéis e colocar os heróis em missões que lutam por mudanças.

Darkseid cadeliza todos os heróis

A primeira impressão que se tem ao olhar para o Absolute Universe é que ele parece um espelho rachado da DC clássica. Darkseid, no comando dos bastidores cósmicos, não apenas manipula eventos: ele reconstrói uma realidade inteira à sua imagem, criando uma espécie de incubadora narrativa em que heróis surgem deslocados, limitados, feridos — e forçados a reagir ao mundo em vez de dominá-lo.

A DC até tentou vender esse universo como uma de suas edições limitadas de contos do Multiverso, como um Elseworld, mas o resultado tem peso próprio: uma continuidade alternativa completa, tratada como laboratório de reinvenção permanente.

Os três pilares iniciais do Absolute UniverseAbsolute Batman, Absolute Wonder Woman e Absolute Superman — seguiram essa cartilha de forma quase cirúrgica. Snyder, Kelly Thompson e Jason Aaron, com liberdade criativa e editoria disposta a correr riscos, deslocaram os personagens para cotidianos que não os favorecem. 

O Bruce Wayne daqui não é o garoto herdando fortuna e trauma; é um sobrevivente urbano marcado por perdas sem o colchão financeiro que o transformaria em playboy justiceiro. Diana surge como forasteira de um misticismo duro e pouco glamouroso, lutando para se afirmar num mundo que não a entende.

E Kal-El, em vez do semideus escoteiro, nasce em condições sociais mais apertadas, com uma Krypton que não o prepara para ser o paladino da ordem, mas para sobreviver à desigualdade. Vale comentar que o Superman do Universo Absolute é brasileiro: isso mesmo, quando ele de desembarca na Terra, ele não cai em solo estadunidense, e sim aqui no nosso país.

Chega de respostas, queremos novas perguntas

Essa virada conceitual não foi só estética. Nos bastidores, havia um consenso entre editores: os heróis da Era de Ouro foram criados numa lógica em que as respostas importavam mais que as perguntas. Bons moços, missões claras e inimigos que quase vinham com etiqueta explicando por que deviam apanhar.

Esse pacote funcionava num mundo que ainda acreditava que instituições, símbolos e narrativas heroicas. Veja bem, o conceito de herói na Gotham City dos anos 1930 era um playboy fumando cachimbo de pantufas se intrometendo no trabalho da polícia para depois se fantasiar de morcego para bater nos criminosos por conta própria. 

Só que as tramas, mesmo naquela época com conceitos sobre heróis da mitologia moderna em plena construção, ficava difícil compreender quem deu a esse riquinho mimado e folgado o poder de interferir deliberadamente como um “protetor da cidade”.  E isso ficava cada vez mais evidente quando os criminosos não eram simplesmente um ladrão surrupiando coisas ou assaltando nas ruas.

Qualquer figura que aparecesse para mudar o cotidiano da cidade em qualquer situação passou a ser considerado “vilão”. Embora a grosso modo isso ainda continue envernizando as histórias, enredos mais complexos conseguem diluir a perspectiva fascista e reacionária desses heróis em diversas camadas, de forma que outros elementos sejam muito mais importantes.

E daí as perguntas ganham importância, principalmente quando são justamente essas “respostas inoxidáveis” do passado são questionadas em reflexões sobre as limitações que precisam ser superadas, em meio a arcos dramáticos, rivais que se tornam melhores amigos, crianças traumatizadas que transforma vingança em justiça para aplacar suas mente perturbadas, entre outras coisas — e a verossimilhanças nos aproxima de seres que estão presos em um sistema que, por si próprio, resiste a qualquer mudança.

Hoje, as perguntas são maiores que os dogmas. “Quem vigia os vigilantes?” deixou de ser provocação intelectual e virou questão cotidiana. Os leitores passaram a desconfiar de figuras moralmente incontestáveis, e a própria noção de “status quo” ganhou tons suspeitos. Em outras palavras: aquele cenário inocente da Era de Ouro, recheado de certezas reconfortantes, ficou datado demais. Ele não representava mais os outsiders, as minorias, os vulneráveis — justamente aqueles que mais se identificam com a ficção heroica.

O Absolute Universe nasce dessa corrosão das certezas. E é justamente esse atrito que o torna interessante.

Um soco na boca da imagem fascista e reacionária dos heróis clássicos

A crítica mais comum — de que super-heróis são “fantasias autoritárias” — ganha um redirecionamento elegante aqui. O fascismo narrativo não está sendo negado; está sendo autopsiado. Quando Batman falha, quando Superman sangra, quando Diana hesita, a história deixa claro que não existe salvador infalível. 

Eles não são campeões do status quo; são sobreviventes tentando melhorar um mundo que insiste em esmagá-los. Essa mudança de perspectiva, por sinal, torna a suposta “retórica fascista” dos super-heróis muito menos sedutora — porque, pela primeira vez em muito tempo, esses personagens estão em desvantagem estrutural.

E quando o herói não é o centro do poder, mas a ponta frágil dele, tudo muda: o leitor não acompanha um policial cósmico mantendo a ordem, mas alguém tentando quebrar uma imposição injusta. A luta não é para preservar o mundo, e sim para transformá-lo.

Em Absolute Superman, a versão de Kal-El rompe com a imagem tradicional de “alien com moral perfeita”. A reconstrução de sua origem e circunstâncias (infância diferente, adversidades mais realistas) traz dilemas, tensões sociais e existenciais. Isso reaproveita seu status de outsider de forma mais relevante: menos símbolo de esperança platônica, mais personagem inserido em um mundo que pode rejeitá-lo e forçá-lo a escolher entre poder e humanidade.

É aqui que o Universo Absolute se torna não apenas uma resposta criativa, e sim uma reinvenção política da fórmula.

Por que o Universo Absolute pisa muito?

A recepção do público e da crítica seguiu o padrão dos grandes acertos: barulho inicial, curiosidade colecionista, medo de repetição — e um alívio geral ao descobrir que havia substância. Os números de vendas foram astronômicos para uma linha nova, e o boca a boca consolidou a percepção de que a DC, pela primeira vez em muitos anos, encontrou um jeito de repensar seus mitos sem depender de megaeventos ou promessas de “agora vai”.

No lado crítico, o que conquistou os resenhistas não foi apenas a brutalidade gráfica ou o redesign agressivo dos personagens, mas a forma como essas obras conversam com o presente. Ao desnaturalizar o heroísmo e colocá-lo num ambiente hostil, o Absolute Universe devolve aos quadrinhos algo que sempre fez falta: a sensação de que o conflito importa não porque é épico, mas porque é humano.

No fim das contas, o Universo Absolute não tenta salvar a imagem dos super-heróis; ele tenta complexificá-la. Em vez de deuses zelando pela ordem, temos figuras frágeis tentando sobreviver a sistemas que as esmagam. Em vez de fantasia de exceção, temos alegorias de desigualdade, trauma e resistência. É menos sobre ingenuidade heroica e mais sobre como o poder — qualquer poder — se manifesta e se questiona.

E talvez seja por isso que essa nova realidade criada por Darkseid, ironicamente, tenha se tornado uma das versões mais honestas que a DC já apresentou. Quando os heróis deixam de ser muralhas do sistema e passam a ser rachaduras nele, o mito cresce, o drama aprofunda e a leitura fica muito mais interessante. O Absolute Universe, no fim, não destrói a velha imagem dos super-heróis — ele a reconstrói do zero, com as perguntas que o século XXI exige.

*Claudio Yuge é jornalista cultural veterano, especializado em quadrinhos. Também quadrinista, foi premiado em Portugal por sua publicação em formato de zine chamada “Tequila Shots”. Conheça mais sobre o autor no vídeo abaixo, quando convidamos Claudinho para a live semanal Dropando a Real, transmitida toda segunda-feira no YouTube do Drops: 

claudioyuge

Jornalista veterano especializado em histórias em quadrinhos.

Thank you for trying AMP!

We have no ad to show to you!