Progressistas precisam parar de falar para quem não quer ouvir - Drops de Jogos

Progressistas precisam parar de falar para quem não quer ouvir

Furar a bolha é ótimo e necessário. Mas esse “furo” só acontece quando do outro lado tem alguém disposto a ouvir o que você está falando.

(Imagem: Freepik)

A assinatura de uma carta por diversos veículos preocupados com o fortalecimento da mídia progressista levantou um debate válido: se temos tantos veículos progressistas, por que os “influenciadores” e figuras políticas de esquerda só vão em programas que naturalizam discursos da extrema direita?

E essa história toda me fez lembrar de uma experiência que tive há algumas semanas, quando fui em um evento da minha família. Lá eu me encontrei com dois parentes que tinham as mesmas características: vinham de famílias com pais conservadores, tinham muitos irmãos e irmãs, acreditam que conceitos como patriotismo, família e Deus são muito importantes. Ambos tem entre seus 60 e 70 anos de idade e se dizem conservadores mas, ao mesmo tempo, não são o que se pode dizer como “extrema direita” nas crenças: ambos entendem que a miscigenação de culturas é importantíssima para o desenvolvimento, não enxergam a China como um “bicho papão comunista” que deve ser combatido a qualquer preço e, apesar de fazerem algumas piadinhas ou comentários preconceituosos, no geral não possuem preconceito com negros, gays ou qualquer outra minoria (concordam que essas pessoas são seres humanos e merecem viver). Ou seja, o eleitor brasileiro médio.

E, assim como o eleitor médio, nos últimos anos ambos foram seduzidos pela retórica do bolsonarismo. Nenhum deles foi ainda radicalizado totalmente, mas fazem parte daquela parcela que de repente tá defendendo algo que sempre acharam errado quase que como um papagaio, repetindo ideias e conceitos sem pensar cinco minutos que seja sobre o que estão falando.

Um deles eu encontro quase sempre, e já desisti de ter qualquer discussão política porque a única coisa que elas resultam é em dor de cabeça para mim. O segundo eu vejo mais raramente, e a última vez que conversei foi no último ano do mandato do Bolsonaro.

Em um domingo de manhã, o parente que eu vejo mais raramente veio comentar comigo sobre um “absurdo” que o Lula tinha falado, de como ele tava se achando demais por barrar os EUA de participar de uma reunião sobre democracia em NY. E aí eu, que tinha acabado de acordar e estava com paciência, resolvi explicar pra ele todo o contexto dos EUA naquela semana – que foi justamente quando o governo Trump pressionou a ABC para a suspensão de Jimmy Kimmel e ameaçou revogar a concessão de qualquer emissora que fosse muito crítica ao presidente Trump.

Pra minha surpresa, esse meu parente ouviu tudo e respondeu “É, aí não dá né? Se é isso que tá rolando nem tem como mesmo o EUA querer vir falar de democracia.”

Um pouco depois, aquele meu outro parente – o que eu vejo com mais frequência – ouviu minha cunhada falando sobre o fato dela ter o dobro da idade da filha e começou a querer zoar ela de que isso não fazia sentido. No caso, ela tinha comentado que, no ano que vem, terá o dobro da idade da filha dela, e ele entendeu que ela havia dito que “sempre” tinha o dobro da idade da filha.

Ele claramente entendeu errado o que ela falou, e a “explicação” dele sobre o porquê ela estava errada era exatamente o que ela tinha dito desde o começo. Outras duas pessoas pararam para defender a menina e tentar explicar que ele que tinha ouvido errado, e a discussão só chegou ao fim a hora que esse meu parente resolveu falar um “então tá” e ficar de bico o resto da manhã porque foi contrariado – e continuou sem assumir que toda a discussão surgiu porque ele entendeu algo de forma errada.

Tá, mas o que isso tem a ver com os progressistas?

Há uma preocupação de figuras progressistas influentes de querer sempre “furar a bolha”, e isso é algo necessário e louvável. Mas, ao mesmo tempo, parece haver também uma recusa em entender que, às vezes, essas bolhas são de aço temperado.

Sim, é necessário explicar para as pessoas contextos, conceitos e ideias que muitas vezes elas apenas não concordam porque não entendem. Mas também não adianta ficar gastando tempo, esforço e saliva com quem simplesmente não quer escutar.

Muitas vezes, a raiz do problema não são ideologias políticas – são pessoas. Pessoas que acham que sabem de tudo, e que possuem uma visão de mundo tão endurecida que simplesmente não aceitam nada que coloque em xeque essas concepções. O problema é sempre o outro, que “um dia vai crescer e entender como eu estou certo”. E nunca que, talvez, ela possa estar errada.

Acredito que é muito disso que falta nessas “visitas” de figuras progressistas a certos programas e veículos de mídia. Será que você está mesmo “furando a bolha”, ou está apenas perdendo tempo ao tentar conversar com quem não está disposto a ouvir? Porque quando é o segundo caso, você não apenas perdeu tempo, mas ajudou a normalizar os discursos mais extremos dessa galera, já que se dispôs a “discutir” conceitos como expulsão de todos os imigrantes do país com a mesma naturalidade com que se discute um aumento para o orçamento da educação.

Não vou mentir: furar a bolha é ótimo! Quando você consegue fazer isso – igual aconteceu comigo e aquele parente que eu não via há alguns anos – você se sente útil para a sociedade e que pode mudar o mundo. Mas a gente também não pode esquecer nunca que também existem muitas pessoas que são como o meu outro parente, que acham que sempre “estão certas” e, se acreditam que não está chovendo, não é chegar em casa ensopadas de tanta chuva que vão fazer elas mudarem de ideia.

Então a questão não é que os progressistas não precisam furar a bolha. A questão é se perguntar: a gente tá falando pra um público disposto a ouvir ou pra uma porta?

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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