A dinâmica das histórias de heróis que precisam lutar contra monstros e enfrentar povos considerados selvagens já é bem conhecida, representada em livros, filmes e, especialmente, histórias em quadrinhos. Uma pesquisa de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP estudou a forma como pessoas não brancas foram representadas nos quadrinhos das revistas infantojuvenis O Tico-Tico e A Gazetinha, entre 1934 e 1942. Lucas Neiva, historiador e autor da pesquisa, apresentou o estudo em 2022, sob orientação da professora e historiadora Solange Ferraz de Lima, no Programa de Pós-Graduação em História Social.
A pesquisa intitulada Deuses brancos, exploradores e selvagens: histórias em quadrinhos e imaginário racial no Brasil (anos 1930 e 1940) compreende o período de transformação do mercado editorial, com o início e popularização das histórias de aventura em 1934, e o declínio do Tico-Tico na década de 1940. Para analisar as imagens publicadas, Neiva usou o acervo digital da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). O historiador avaliou diversas imagens, principalmente quadrinhos de aventuras na selva, ilustrações com caráter educativo, histórias cômicas e fotografias de leitores fantasiados, publicadas nos periódicos.
Tanto O Tico-Tico como A Gazetinha fazem caracterizações opostas dos heróis e povos nativos. Enquanto os homens brancos foram representados, muitas vezes, como deuses, de forma glorificada, os personagens indígenas e negros foram retratados de maneiras estereotipadas, como povos inferiores.
As histórias na selva mostram os homens brancos exploradores como heróis que vão se aventurar no continente americano e nas selvas africanas e asiáticas para encontrar tesouros e levar civilização aos povos caracterizados como selvagens. O pesquisador explica que “nessas aventuras, eles enfrentam diversos obstáculos, enfrentam animais selvagens, monstros e os próprios povos dessas regiões, que são, na maior parte das vezes, povos negros e indígenas caracterizados como selvagens, ignorantes, violentos, supersticiosos, primitivos e carentes de civilização”.
Já os homens brancos são apresentados como deuses e ideais civilizatórios. “Os heróis brancos são representados como símbolos do bem, da moral e da integridade. Eles são desenhados conforme o modelo do herói grego, que é o símbolo da beleza”, complementa.
Os personagens não brancos são ilustrados de forma caricata, com olhos esbugalhados e lábios grossos, sem nenhuma individualidade. “É como se eles propusessem que esses personagens seriam essencialmente negros e selvagens, como se essas fossem as características principais na caracterização visual deles, que determinam qual é a identidade deles. Os personagens brancos são caracterizados de uma forma mais humana, com detalhes, com características que dão individualidade e personalidade para eles”, afirma Neiva.
Além dos estereótipos, outra forma de inferiorização dos povos não brancos nas revistas era a comparação com animais. Em algumas histórias, eles eram desenhados como macacos e monstros que deveriam ser combatidos pelo explorador branco.
“Também existe a convenção do selvagem submetido, em que o personagem selvagem é representado de joelhos diante do personagem branco, venerando ele, às vezes, como um deus ou em uma posição de submissão, reconhecendo a sua superioridade”, completa.
Essas imagens foram interpretadas como evidências do processo de naturalização do racismo e de reafirmação da crença de hierarquização das raças humanas, com o homem branco sendo considerado como superior. “As histórias em quadrinhos tinham potencial para reforçar hierarquias experienciadas no cotidiano. A criança branca, por exemplo, ao ler uma história em quadrinhos que apresentava de uma forma tão nítida a hierarquia entre brancos poderosos e personagens negros, poderia enxergar isso como um reforço das experiências cotidianas”, pontua o pesquisador.
Publicada pela empresa O Malho, a revista O Tico-Tico surgiu em 1905, voltada para o público infantil. Na década de 1930, houve uma transformação no mercado de histórias em quadrinhos brasileiro, com a publicação de suplementos de jornal voltados também para o público juvenil, como O Suplemento Juvenil, lançado em 1934. A revista trouxe as histórias de aventura estado-unidenses para o Brasil e, para disputar com a concorrência, O Tico-Tico e A Gazetinha passaram a publicar os quadrinhos de aventura. A Gazetinha surgiu em 1928 e, no ano seguinte, tornou-se suplemento do jornal A Gazeta, editado por Cásper Líbero.
As duas revistas também publicaram conteúdos educativos que continham temas racistas. “São conteúdos publicados com intenção de entreter e de educar as crianças. Não se considera contraditório que estejam ensinando racismo, inclusive os conteúdos didáticos publicados nesses periódicos ensinavam de uma forma muito direta”, comenta Neiva. No Tico-Tico, a Série Educação Escolar – Geografia Humana apresenta as características raciais dos povos de diversos continentes, seguindo convenções racistas.
Outro tipo de quadrinho eram as narrativas cômicas, que faziam piadas com personagens não brancos, reforçando preconceitos. Isso é visto em O Sonho de Lamparina, publicada na capa de O Tico-Tico em 1930. Na história, uma menina negra sonha que é uma macaca pendurada pela cauda no tronco de uma árvore. Quando ela acorda, percebe que, na verdade, estava pendurada pela sua roupa.
“Esse quadrinho é muito simbólico para se ter noção do quanto era naturalizado o racismo e a ideia de superioridade branca porque é publicado na capa da revista, sem qualquer constrangimento. Nas histórias em quadrinhos cômicas, os artistas propõem aos leitores que deem risada do quão absurda é a racialidade não branca, dialogando com a noção de que o branco é o ideal de ser humano”, destaca Neiva.
*por Gabriela Varão | supervisão de Antonio Carlos Quinto | Jornal da USP
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