Da Agência FAPESP. Foi lançado nesta terça-feira (20/05), com investimento de R$ 14,5 milhões da FAPESP, o Centro de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas do Brasil. A iniciativa é fruto de uma parceria entre o Museu da Língua Portuguesa e o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e busca pesquisar, documentar e difundir a diversidade linguística e cultural dos povos originários do Brasil.
Durante o evento, representantes da FAPESP e do Ministério dos Povos Indígenas assinaram um Protocolo de Intenções para fortalecer a cooperação em pesquisas e a difusão de conhecimento sobre os povos indígenas do Brasil. Na ocasião, a ministra Sônia Guajajara ressaltou que o centro representa resistência e reconhecimento da importância dos povos indígenas, destacando que suas línguas são “bibliotecas vivas”, uma cosmovisão, e que seu desaparecimento significa a perda de um universo de conhecimento.
“Hoje é um dia de celebrar e agradecer, pois marca não apenas o lançamento de um centro de documentação, mas o florescer de uma memória viva, de um compromisso com o futuro”, afirmou Guajajara. “O centro nasce do encontro de instituições que compreendem o valor que os povos indígenas carregam. Língua não é só estrutura gramatical. É território, é identidade, é forma de viver e sentir o mundo. Por isso, este centro nasce como semente que vai germinar conhecimento, políticas públicas, materiais pedagógicos e, acima de tudo, reconhecimento”, completou a ministra.
Embora seja reconhecido como um país com dimensões continentais e uma única língua, o português, o fato é que o Brasil é um dos lugares mais multilíngues do mundo. Os mais de 300 povos indígenas que habitam o país falam 274 línguas – das quais, estima-se, cerca de 20% nunca foram estudadas e correm o risco de desaparecer.
Dessa forma, o novo centro busca documentar não apenas as palavras, mas também registrar o uso desses termos no contexto das culturas indígenas. A ideia, portanto, é catalogar – por meio de textos, áudios e vídeos – as artes verbais indígenas, como os processos de fabricação de objetos, as práticas de ocupação territorial, manejo agroflorestal e de produção de alimentos, por exemplo.
“A ciência e a tecnologia têm um papel estratégico na preservação e difusão de línguas indígenas. A antropologia e a linguística, entre outras áreas do conhecimento, associadas às tecnologias digitais e de comunicação, possibilitarão que a sociedade conheça e valorize as línguas e os conhecimentos tradicionais, blindando as culturas originárias do risco do esquecimento”, disse Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP.
Nesse sentido, o projeto atuará em três frentes: pesquisa e documentação, construção de um repositório digital de acesso gratuito e comunicação cultural. Com um plano de trabalho de cinco anos, o objetivo é que o repositório digital seja mais do que um arquivo: um espaço de constante compartilhamento entre a comunidade acadêmica e os povos indígenas. Vale destacar que o protagonismo ficará com as comunidades indígenas, visto que caberá aos próprios povos originários escolher sobre os conteúdos e decidir se o material poderá ou não ser acessado publicamente.
Presente no evento, a artista visual Daiara Tukano enfatizou que o projeto representa uma conquista democrática e uma construção coletiva, reforçando que “a cultura indígena não é relíquia, mas pulsação, presente e futuro”.
“Quando eu nasci, nós éramos considerados incapazes sob a tutela do Estado para defender a possibilidade de termos direitos. E hoje estamos aqui com a nossa ministra dos Povos Indígenas lançando um centro sobre a cultura indígena com o protagonismo indígena. Isso é uma caminhada da construção da nossa democracia, da nossa capacidade de construirmos um Brasil juntos, porque somos frutos desta terra – como diz o Davi Kopenawa. Nós fazemos parte de uma árvore de muitos conhecimentos. A língua é nosso espírito, é a continuidade de nossos povos”, disse Tukano.
As coleções digitais serão constituídas a partir da pesquisa e documentação linguística, com foco nos territórios indígenas localizados em Rondônia e na Região das Guianas, importantes áreas multilíngues do país. “Essas são as duas maiores regiões multilíngues do Brasil em termos de números de línguas e de diversidade de famílias linguísticas. São também áreas que estão sofrendo pressões de forças econômicas, como a exploração de petróleo, que, sabemos, devem gerar deslocamentos e mudar as configurações socioambientais”, afirmou Maria Luisa Lucas, responsável pela área de antropologia do novo centro.

Evento de lançamento foi realizado no Museu da Língua Portuguesa em 20 de maio (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)
Eduardo Góes Neves, diretor do MAE-USP, afirmou não ter conhecimento de outras instituições no mundo que lidem com linguagem e cultura indígenas na mesma magnitude que o novo centro fará. Ele também destacou outras inovações da iniciativa. “Geralmente, somos nós os pesquisadores que procuramos a FAPESP com uma ideia de projeto. Nesse caso, foi a FAPESP que nos procurou. Inicialmente a ideia do professor Zago era criar um centro de documentação de línguas. Mas a gente pensou que seria importante fazer também o registro do conhecimento associado a essas línguas, afinal não existe língua sem cultura”, contou.
A partir daí, surgiu a parceria do MAE-USP com o Museu da Língua Portuguesa, algo também inédito. “O Museu da Língua Portuguesa tem um trabalho fantástico de comunicação e de exposições impressionantes. Já o MAE tem um acervo muito rico. Acredito que essa combinação vai trazer muitos resultados”, comemorou Neves.
Renata Motta, diretora-executiva do Museu da Língua Portuguesa, ressaltou a capacidade de registro e difusão do conhecimento indígena que o centro terá. “Trata-se de uma iniciativa inovadora, sediada em dois museus, que articula pesquisa, documentação e difusão cultural com o objetivo de fortalecer as línguas e os conhecimentos dos povos indígenas, no espírito da Década Internacional das Línguas Indígenas, instituída pela Unesco. Diante do desafio de memórias historicamente inviabilizadas, que não podemos acessar, respondemos com o compromisso de, como diz poeticamente o artista indígena Gustavo Caboclo: plantar terreiros digitais”, comentou Motta.
“Estamos em plena Década Internacional das Línguas Indígenas e o lançamento do centro ecoa esse chamado global. É o Brasil assumindo o seu compromisso com a diversidade, com a justiça linguística e com a dignidade dos povos indígenas. Seguimos assim resistentes reflorestando as palavras e os corações para descolonizar os saberes e reafirmar que a cultura indígena não é relíquia, é pulsação, é presente e é futuro”, concluiu a ministra.
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