O texto desse artigo foi escrito originalmente por Samantha Murphy e publicado no site NewScientist, em 15 de setembro de 2010. Murphy partiu de uma crítica bastante disseminada no meio gamer, na qual um jornalista do Chicago Sun-Times discordava da potencialidade dos jogos digitais como fenômeno artístico. Abaixo, reproduzimos as impressões da especialista em tecnologia.
Em Abril (de 2010), Roger Ebert, crítico do jornal Chicago Sun-Times, postou um artigo em seu blog intitulado “Videogame nunca será arte”. Em alguns minutos, as repercussões começaram. As respostas variavam de objeções intelectuais aos clássicos comentários da internet. Muitos ângulos foram debatidos, mas um ponto de vista dominava: você não pode analisar a arte por trás dos videogames sem nunca ter jogado.
Ebert cedeu um pouco. Em um artigo seguinte intitulado “Ok, crianças, brinquem no meu gramado”, postado em julho, ele admitiu que, mesmo que sua opinião não tenha mudado, teceu suas críticas sobre os games sem ter experimentado os jogos.
Agora é hora de colocar o assunto a pessoas experientes no meio. Designers de games, vários críticos, jornalistas, acadêmicos e historiadores – todos jogadores confessos – responderam a questão que é emblemática da rixa entre tecnologia e cultura: videogame pode ser arte? Confira as respostas:
Nick Montfort, professor de mídia digital no Massachusetts Institute of Technology (MIT)
Podemos querer dizer várias coisas com esta pergunta. Primeiro, os videogames podem ser vendidos por negociantes de arte, aparecer em galerias e museus e serem aceitos como parte do mundo artístico? Eles já estão: é só olhar para as criações de Cory Archangel, Mark Essen e Eddo Stern. Segundo, os games podem tocar em questões complexas com sensibilidade com diferentes perspectivas? Eles já fazem isso: veja o trabalho de Terry Cavanaugh, Jason Rohrer, Molleindustria e Tale of Ties, e games comerciais como Bully (Também chamado de Canis, Canem Edit) e Indigo Prophecy (Fahrenheit). Por fim, os jogos podem oferecer uma experiência estética que é particular à arte? De fato, eles já fazem isso: veja Rez, de Tetsuya Mizuguchi, um jogo dedicado a Kandinsky e o qual eu descobri e joguei pela primeira vez no Museu da Imagem em Movimento em Queens, Nova York. É uma boa fase para aqueles interessados nesta questão verem que os trabalhos já estão por aqui.
Denis Dutton, professor de filosofia na Universidade de Canterbury, Nova Zelândia, e autor de The Art Instinct (Arte e Instinto)
Muitos elementos artísticos são usados na criação dos videogames. Eu acho que é impossível experimentar as habilidades técnicas sutis e elegantes de Bioshock com algo menos que admiração pelo talento artístico dos criadores. Além disso, games oferecem enredos convincentes. Eles podem também introduzir uma outra personalidade à mistura: a do jogador.
Mas em minhas experiências jogando – com Grand Theft Auto IV, por exemplo – eu descobri que minha presença não colaborou em nada para fazer a experiência dramática mais profunda. Então, se Grand Teft Auto é um trabalho artístico, minha estúpida contribuição para ele foi danosa. Talvez eu precise de mais prática. Mesmo assim, não estou certo de que poderia aumentar a graça de metralhar gângster ao nível das melhores peças, romances e filmes.
Considere Otello de Shakespeare. Por que eu imaginaria por um momento que ter a chance de interferir na peça poderia fazê-la melhorar? Um final feliz – Otello e Desdemona cantando um dueto de amor, comigo atrás tocando uma harpa – seria um melhoramento em Shakespeare? Videogames são uma boa diversão, mas por que precisam da validação de serem chamados de arte? Já não é divertido o suficiente?
Jaron Lanier, cientista da computação, artista e autor de “You are not a Gadget” (Você não é um gadget, sem edição em português)
Não há nenhum aspecto da vida humana que não possa ser chamado de arte. Arte acontece quando nós atingimos o maior suporte de nossos valores, quando vamos além de preocupações comerciais, ou sobre status e frieza, e atingimos em algum nível de significado que pode transcender os problemas que nós sabemos articular. Sim, ela [arte] pode acontecer em videogames, embora eu não ache que acontece com frequência. Mas com qual frequência livros e filmes atingem o nível de arte? Não é sempre, se formos honestos.
Jesse Schell, professor de tecnologia de entretenimento na Universidade Carnegie Mellon e CEO da Schell Games
Marcel Duchamp disse uma vez, “Cheguei a conclusão de que enquanto nem todos os artistas são jogadores de xadrez, todos os jogadores de xadrez são artistas”. Jogar e brincar sustentam um relacionamento interessante com a arte. Como a arte, brincar é experimental, criativo, flexível e imersivo. É feita por sua própria . E como arte, games podem nos desafiar e transformar. Então videogames podem ser arte? Eles certamente incorporam muitos elementos artísticos; pintura, arquitetura, música, escultura, atuação, escrita, animação e dança.
Os jogos mais percebidos como arte tendem a ter qualidades em comum. São misteriosos, são mais sérios do que outros jogos; têm um sentido completo, holístico. Games assim são raridades, mas existem, e conforme a forma evolui, assim como o cinema, mais e mais irão aparecer.
Ian Bogost, designer de game, crítico, fundador da Persuasive Games e autor de “Newsgames” (MIT Press, 2010)
O século 20 celebrou como arte: um mictório, uma pintura de um quadrado colorido; poesia feita de palavras aleatoriamente sorteadas de um chapéu, uma plateia cortando a roupa de um artista, pintura industrial sobre tela, reproduções de publicidade, um telegrama afirmando que era o retrato do destinatário, uma barricada de barris de petróleo em Paris e imagens de TV ao vivo de uma estátua de Buddha. Para não acharmos que são exemplos bizarros, considere os artistas que os produziram: Marcel Duchamp, Piet Mondrian, Tristan Tzara, Yoko Ono, Jackson Pollock, Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Christo e Jeanne-Claude, e Nam June Paik, respectivamente. Todos são conhecidos, seus status como artistas nunca foram questionados.
A Arte fez muita coisa na história humana, mas no século passado ela primeiramente tentava nos provocar, nos forçar a ver as coisas de maneira diferente. Então, podemos nos perguntar: “Como videogames estão mudando nossa ideia sobre arte?”. Se o propósito a arte é realmente nos forçar a ver alguma coisa que achávamos que conhecíamos de maneira sob uma nova luz, talvez o maior movimento dos games no mundo artístico tenha sido em propor a questão: “Game pode ser arte?”
John Sharp, arte historiador e professor de design interativo e desenvolvimento de games no Savannah College
Olhe além dos valores culturais presos aos videogames e à arte e você verá que existem muitas semelhanças entre eles: ambos envolvem a busca por prazer, nenhum é claramente utilitário, e são centralizadores de uma subcultura profundamente engajada. Mas há diferenças? Games requerem engajamento direto e o que podemos chamar de co-autoria entre designer e jogador.
Tudo isso coloca a questão: por que nós estamos tão preocupados em dar aos games o status de arte. Estamos simplesmente tentando legitimá-los? Ser chamado de arte muda as características do videogame? Só quando respondermos estas perguntas poderemos progredir nesta discussão.
Tom Bissell, autor de “Extra Lives: Why video games matter” (Pantheon 2010) e se auto-descreve como viciado em videogame
Eu acho que “videogame pode ser arte?” é a pergunta errada. A questão certa é se artistas podem usar o meio game como um recurso de expressão criativa. Jogos usam enredo, imagens, personagens, ação e música, algumas vezes, tudo isso junto, para gerar emoção nos jogadores. Alguns games fazem isso bem, outros não. É possível que nenhum videogame será comparado a Hamlet, mas Hamlet também não vai lhe proporcionar o mesmo efeito de um jogo. Uma questão similar incomodou o cinema durante seus primeiros 50 anos. Os filmes se firmaram. Games também o farão.
A versão original em português desse texto foi publicada na revista Galileu, em dezembro de 2013.
Imagem: The Art of Video Games Exhibition/Smithsonian American Art Museum – Hilary Mason
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