Por Sullivan Martinelli, Sullz Player, comunicador independente e YouTuber.
Em fevereiro de 2025, o Brasil se deparou com mais uma cena chocante envolvendo o Discord e grupos de ódio. Miguel Felipe dos Santos Guimarães da Silva, soldado do Exército, de 20 anos, foi acusado de gravar e transmitir ao vivo um adolescente ateando fogo em um homem em situação de rua. O caso gerou grande repercussão e levou o Ministério Público a denunciar o soldado por tentativa de homicídio quadruplamente qualificado, associação criminosa e corrupção de menores.
Poucos meses depois, no Domingo de Páscoa (20/04/2025), a Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu três indivíduos que estavam planejando repetir o crime, desta vez contra outra pessoa em situação de rua. Os suspeitos eram líderes de um grupo extremista que vinha promovendo uma série de ataques de ódio na internet, com foco em negros, mulheres, adolescentes e animais. O impacto desses atos vai além da crueldade explícita; eles levantam uma questão crucial: como é possível que, em uma era de conexão digital, comunidades online estejam sendo usadas para promover e normalizar o ódio, a ponto de parecer algo aceitável para quem vive imerso nesses ambientes?
Esses não são casos isolados, mas sim sintomas de um problema muito maior. Eles refletem a falha em plataformas que não oferecem moderação efetiva, onde o discurso de ódio circula livremente, e onde a identidade se camufla detrás de avatares e nicknames. O Discord, usado por crianças, adolescentes e adultos, se tornou um dos maiores palcos da radicalização que se esconde atrás da liberdade de expressão.

Discord. Foto: Reprodução/Montagem Pedro Zambarda/Drops
Uma armadilha digital em forma de piada
O Discord começou como uma rede para jogadores se comunicarem durante as gameplays. Mas se tornou um universo de comunidades de todos os tipos que discutem e compartilham de tudo, desde memes genéricos até disseminação de ódio. Nesse processo, a ausência de uma fiscalização ativa criou um ambiente ideal para que grupos extremistas se organizem, corrompam e recrutem pessoas cada vez mais jovens.
São nesses espaços que a radicalização ganha forma e se manifesta: na conversinha “inocente” de madrugada, nos memes racistas e misóginos disfarçados de piada, nas lives onde a violência é tratada como entretenimento. Jovens em formação sem monitoramento dos pais são alvos fáceis, pois enxergam nesses espaços um senso de pertencimento que muitas vezes não encontram na vida real. E é dessa forma que o ódio se capilariza nesses ambientes digitais.
Vamos focar no que realmente importa… Dinheiro e Acionistas! Óbvio…
Enquanto crimes acontecem dentro de seus servidores, o Discord vive um momento de transição interna. Nesta quarta-feira (24/04), Jason Citron — um dos fundadores da plataforma — deixou o cargo de CEO. Quem assumiu foi Humam Sakhnini, ex-vice-presidente da Activision, gigante dos games. A mudança ocorre em meio às negociações para uma possível abertura de capital da empresa, avaliada em mais de 15 bilhões de dólares.
Mas a troca no comando parece mais voltada ao mercado do que à segurança dos usuários. Apesar das promessas de cooperação com autoridades e de políticas contra conteúdos nocivos, a plataforma continua falhando em proteger suas comunidades mais vulneráveis. No Brasil, o Discord chegou a descumprir uma ordem para retirar do ar uma live que exibia violência para crianças e adolescentes. Em vez de atacar o problema, o Discord parece preferir maquiar a crise: trocar o chefe é mais fácil do que encarar a necessidade urgente de políticas eficazes de regulamentação e fiscalização.
Falta estrutura, falta compromisso. Apesar do seu valor de mercado, a empresa surpreendentemente ainda depende de moderadores voluntários, bots frágeis e medidas reativas — que só entram em ação depois que a tragédia já aconteceu. Enquanto isso, comunidades inteiras seguem expostas a discursos extremistas e práticas criminosas. A empresa pode até trocar de CEO, mas se a lógica continuar sendo a de lucrar com a liberdade total, nada vai mudar.
Criadores reféns da própria comunidade
Enquanto isso, alguns criadores de conteúdo desistem de tentar manter seus espaços saudáveis. O medo é real: o que acontece se alguém cometer um crime dentro do seu servidor? Quem vai ser responsabilizado?
O criador de conteúdo Andrezitos, também conhecido como André Young, decidiu abandonar o Discord. Preferiu evitar o risco de ser associado a possíveis crimes cometidos por membros. E ele não está sozinho. Muitos criadores têm feito o mesmo, saindo de cena para não virarem alvos de acusações ou campanhas de difamação.
Tem solução pra essa bagaça?
É dito que a internet sempre foi tóxica e não tem como controlar tudo. E sim, a rede, assim como a vida, nunca vai ser um campo florido de paz e prosperidade. Mas isso não quer dizer que deva ser uma terra sem lei. E o que dá pra ser feito, então? Se liga:
- Moderação de verdade: Plataformas como o Discord precisam investir em equipes de moderação preparadas, com recursos e autoridade. Só apagar link de spam não basta. É preciso monitorar nem que seja através de IAs para identificar, reportar, regular e, caso necessário, denunciar diretamente para as autoridades;
- Responsabilidade dos criadores: Se você tem um canal, um servidor, uma comunidade, o mínimo que precisa fazer é ser um exemplo e deixar claro que racismo, misoginia e violência não são toleráveis. No meu servidor do Discord, por exemplo, discriminação e falta de respeito não são permitidos. E quem insiste em cruzar a linha é banido — sem passar pano, sem passar a mão na cabeça;
- Pais atentos: Não dá mais pra achar que é só largar o celular na mão de uma criança que tá tudo certo. É dever dos pais saber o que os filhos estão consumindo e com quem estão interagindo. A internet é parte do mundo real e também representa muitos perigos, ainda mais durante esse período de formação.
- Educação desde cedo: O combate ao preconceito começa na escola. A educação tem que preparar os jovens pra reconhecer, questionar e rejeitar o discurso de ódio. E isso principalmente nas camadas mais iniciais da educação, não só em nível acadêmico;
- Consumidor consciente: Todos nós temos um papel nesse processo. Escolher os espaços que frequentamos, apoiar quem se posiciona, denunciar quem ultrapassa o limite. A comunidade é um reflexo de quem está nela!
E principalmente: lembrar que do outro lado da tela tem gente de verdade. Tratar o outro como uma IA ou um NPC sem nome e com uma foto de anime só serve para distanciar a empatia e a humanidade.
A gente escolhe o que constroi
Embora a cultura gamer seja rica, criativa, diversa, ela também pode ser cruel, misógina, racista. A escolha de que lado ela vai pender está nas nossas mãos. O crime transmitido ao vivo no Discord não é um caso isolado. É mais um dos inúmeros alertas latentes. Há uma sirene estrondosa indicando que algo está profundamente errado nas nossas comunidades online e com os nossos jovens. Ou a gente encara os problemas de frente — enquanto comunidade, plataforma e sociedade — ou a gente continua empurrando cadáveres reais pra debaixo do tapete digital.
Porque no fim das contas, esse jogo é nosso. O futuro é a gente que constroi. E isso começa agora!
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.