Reportagem de Isabel Harari no site Repórter Brasil, especializado em denúncia de trabalho análogo à escravidão e danos socioambientais. “TENHO 13 ANOS e sou animator, tenho experiência a quase 3 anos, sei fazer animação +/- smoothie (limpa/clean), método de pagamento, dependendo do jogo pode ser de graça, caso queira pagar acima de 100 robux já basta.”
Quem passa um tempo fuçando nos fóruns de bate-papo do aplicativo Discord não enfrenta dificuldades para encontrar crianças e adolescentes envolvidas em anúncios de trabalho na Roblox – uma das mais importantes plataformas de games do mundo.
O Discord já esteve associado à disseminação de conteúdos violentos e extremistas e à produção de propaganda eleitoral irregular. Mas a Repórter Brasil mergulhou por semanas no aplicativo e descobriu que, em suas comunidades, também é possível topar com crianças e adolescentes oferecendo sua mão de obra, bem como achar desenvolvedores contratando pessoas abaixo de 18 anos para a criação de jogos na Roblox. Uma fronteira não delimitada entre diversão e trabalho.
A Roblox virou febre mundial por oferecer um leque diverso de “experiências”, como são chamados os jogos online. Quase 80 milhões de usuários acessam a plataforma diariamente para andar de skate, adotar um pet ou buscar o vestido ideal para uma competição de looks.
O grande diferencial é a possibilidade de os jogadores criarem e monetizarem seus próprios games e acessórios virtuais, como espadas poderosas e tênis voadores. O modelo de negócios vem atraindo cada vez mais programadores, incluindo crianças e adolescentes, motivo pelo qual a plataforma virou alvo de investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) em São Paulo por suspeita de trabalho infantil.
A Repórter Brasil procurou a assessoria do Discord, mas não recebeu retorno até o fechamento desta matéria. O texto será atualizado, caso um posicionamentos seja enviado. Já o advogado que representa a Roblox no Brasil afirmou que “a empresa optou por não comentar”.
Denúncias sobre exploração de trabalho infantil na Roblox já vieram à tona em outros países. Por aqui, o Discord se tornou o principal espaço de recrutamento de crianças e adolescentes para uma nebulosa indústria de games.
No aplicativo de mensagens, as comunidades são chamadas de “servidores”. Em um dos grupos monitorados pela reportagem, com mais de 9.700 pessoas, é possível assistir a aulas de programação que ensinam, por exemplo, como animar uma logomarca ou criar uma peça de roupa para um avatar, bem como trocar experiências em fóruns temáticos, inclusive por chats de voz. Os usuários interessados em demandar e oferecer trabalho anunciam nas páginas “contratar” e “ser contratado”.
“Por enquanto eu só converso pelo Discord. Anuncio meu trabalho para eles verem se sou apto para o que precisam”, escreveu Lucas, de 16 anos, à Repórter Brasil, pelo chat do aplicativo. Os nomes dos adolescentes ouvidos pela reportagem foram alterados para preservar suas identidades.
Dentro de um servidor do Discord, o sistema é bem organizado. Os jovens programadores seguem um modelo preenchendo fichas com nome, especialidades, forma de pagamento e portfólio. A partir daí, as interações acontecem.
“É mais no papo”, explica Beto, sobre as contratações feitas pelo Discord. Aos 17 anos, ele já coordena um time de desenvolvedores. “[A equipe] tem quase a mesma idade que eu. Alguns tem um pouquinho menos, mas a maioria é mais de 13 anos”, ele diz. “É só na base da confiança, acho que até dá para fazer um contrato real, porém, não sei se muitos são a favor”, concorda Lucas.
O sistema de pagamento é variado. Há quem receba por tarefa cumprida. Em alguns casos, crianças e adolescentes chegam a ganhar um valor definido por mês. Em outros, elas só têm a promessa de ver a cor do dinheiro se o jogo vier a dar lucro – a modalidade desperta críticas, uma vez que não há garantias de que uma experiência tenha sucesso na Roblox. “É uma roleta russa”, compara Lucas.
“Você vai depender 100% do algoritmo da plataforma para que ele [jogo] dê certo ou não”, diz outro usuário, em um chat no Discord. Em seguida, outro perfil reforça: “estou desenvolvendo um jogo com expectativa de lucro superior a R$200.000 por mês. Mas isso somente se o jogo tiver sucesso, caso contrário, não receberei nada”.
A monetização é feita principalmente por meio do Robux, uma moeda virtual da Roblox que até pode ser convertida em dinheiro de verdade. Dá para jogar de graça, mas para ter acesso a determinadas funcionalidades ou personalizar seu avatar é preciso aplicar um mínimo de R$ 29,90 e comprar 400 Robux. Já para retirar dinheiro, é necessário juntar 30 mil Robux para converter em 105 dólares (R$ 587, na cotação atual). No catálogo da Roblox, uma espada, por exemplo, pode custar de 55 a milhares de Robux.
Na própria plataforma da Roblox também é possível encontrar postagens sobre “oportunidades” de trabalho. Na página “Roblox Talent Hub ” (Central de Talentos da Roblox, numa tradução livre), um desenvolvedor de 16 anos apresenta-se em inglês a possíveis contratantes: “ainda que você não esteja satisfeito com o meu tempo de experiência, espero que minhas criações o convençam do contrário”.
Há também anúncios de desenvolvedores que buscam mão de obra para formar sua própria equipe. Em uma postagem, também em inglês, o contratante exige que os interessados em participar do desenvolvimento de um jogo tenham mais de 13 anos e uma conta no Discord.
Na avaliação de Adriana Sena Orsini, professora e pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fica claro que os membros das comunidades no Discord, incluindo crianças e adolescentes, estão à procura de trabalho.
“Elas não estão procurando diversão”, avalia. A possibilidade de pagamentos mensais fortalece o argumento. “Aquilo ali é uma relação de trabalho, sem muita discussão”, afirma.
A professora Arlete dos Santos Petry, do Programa de Pós-Graduação em Inovação em Tecnologias Educacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), concorda. “Não é uma troca, é compra, envolve dinheiro. Eu diria que é um trabalho sem nenhuma garantia trabalhista”, resume.
A falta de garantias, por sinal, é motivo de queixas. Pagamentos em atraso ou abaixo do inicialmente combinado são reclamações recorrentes. Há denúncias até de calotes. “Infelizmente está se tornando bem comum de acontecer”, lamenta Guto, que costuma passar de duas a três horas programando na plataforma, todos os dias. Ele já entregou um trabalho orçado em 900 Robux, mas só recebeu 100 porque “o cliente falou que perdeu todos os Robux [no jogo]”. Léo também já teve problemas: “o cliente só foi me pagar um mês depois”.
Em manifestação enviada ao MPT em razão da investigação por trabalho infantil, a Roblox negou a existência de relação de trabalho com os usuários. A nota afirmava que seu sistema “nada mais é do que uma plataforma de jogos que permite que os usuários joguem uma grande variedade de jogos, criem seus jogos e itens de personalização do avatar e conversem com outras pessoas on-line”.
Apesar dos 80 milhões de usuários por dia, a Roblox contabiliza apenas 16,5 mil criadores habilitados para sacar recursos. Só no ano passado, a empresa diz que pagou US$ 741 milhões aos desenvolvedores. Não há informações sobre o número de brasileiros beneficiados. Mas, em entrevista ao canal Meio e Mensagem, Mark Bambury, diretor sênior da equipe de parcerias com marcas, afirmou que o Brasil foi o quarto maior mercado para desenvolvedores na Roblox em 2o23. “Estamos incrivelmente animados com essa comunidade”, comemorou.
A professora Adriana Sena Orsini, da UFMG, ressalta que a plataforma de games precisa ter controle sobre todas as etapas de produção, mesmo que o eventual recrutamento de crianças e adolescentes aconteça por meio do Discord, aplicativo que ela descreve como “terra de ninguém”.
“A Roblox tem que se responsabilizar que não tenha trabalho infantil no meio da produção dos seus jogos. Tem que parar de hipocrisia. Claro que tem brincadeira, mas tem trabalho. Se detectado o trabalho, ela tem que tratar isso com a adequação necessária”, finaliza.
Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana.
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