Indústria

A batalha da Nintendo contra a emulação e seu imbróglio jurídico. Por Victor Hidalgo

Por Victor Hidalgo, jornalista e autor do canal na Twitch Camarada Hidalgo.

Pensei em começar esse texto falando da importância da emulação e como a Nintendo tirou do ar ferramentas essenciais para a preservação dos jogos do Switch no futuro, os emuladores Yuzu e Ryujinx, tendo em vista que ela mesma matou eShop do Wii U e o Nintendo 3DS, impedindo o acesso a um extenso catálogo de jogos e aderindo a um modelo que está se tornando um padrão na tão inovativa indústria de jogos: um sistema de assinatura. Claro, quem já tinha comprado os jogos ainda pode fazer o download deles, por enquanto. Com isso, jogos clássicos não podem ser adquiridos, você tem acesso a uma pequena fração do catálogo do Nintendinho e Super Nintendo assinando o serviço online da empresa. Segundo o próprio site deles, são mais de cem jogos disponíveis no momento que eu escrevo esse artigo. Sabem quantos jogos foram lançados oficialmente apenas no Super Nintendo? 1,738 jogos. 

Estou falando da Nintendo aqui, mas apesar de todos os seus problemas ela ainda disponibiliza versões físicas dos seus jogos. Pelo menos por enquanto. Consoles totalmente digitais já são uma realidade do mercado hoje. São mais baratos que suas versões completas, mas com um problema eminente: em breve vão se tornar tijolos inúteis nas mesas dos seus donos. Eu ainda posso comprar um PSOne e colocar uma cópia de Digimon World para jogar hoje. O que me garante que no futuro um PS5 Digital e um Xbox Series S ainda vão me permitir baixar e jogar os meus jogos comprados na loja virtual da Sony e da Microsoft? E se essa loja não existir mais? E se eu não tiver uma conta ou perdi a minha? Talvez apenas a pirataria. 

Bom, somos seres humanos. E desde de tempos imemoriais sentimos a necessidade de preservar nossa história. Com vídeo jogos não seria diferente, existem diversas iniciativas para preservar esse pedacinho da nossa história no qual criamos uma das formas mais interativas já sonhadas de contar histórias, que ainda tocamos apenas a superfície de todo o seu potencial. 

A Video Game History Foundation (VGHF) realizou um estudo que chegou a conclusão que 87% dos jogos lançados nos Estados Unidos antes de 2010 não estão disponíveis para os jogadores adquirirem de nenhuma forma legal. 88% dos jogos de Playstation 2 e 87.7% dos jogos da família Game Boy não estão disponíveis. 

“Existem muitas vantagens nos jogos digitais. A distribuição digital torna muito, muito mais fácil relançar jogos clássicos de forma ampla e a um preço baixo. Mas as lojas e serviços digitais são voláteis por natureza. Só porque um jogo foi relançado uma vez não significa que ficará disponível para sempre.” Video Game History Foundation na sua pesquisa. 

Então, o que nos resta como jogadores com interesse na preservação da história dos vídeo jogos? Coleções particulares? Não é o ideal. O acesso deve ser livre e disponível para todos. Essa é a função da preservação da história. Também temos que lembrar que a maioria das empresas não se importam com a preservação de seus jogos, muitas vezes perdendo o source code dos seus jogos por puro descuido. Nunca teremos uma versão oficial em HD de Silent Hill 2, o mais próximo que chegamos disso foi o projeto feito por fãs da série Silent Hill 2 Enhanced Edition

Sim, eu vou continuar falando de Silent Hill 2 e como nunca teremos uma versão decente do original de forma legal na Steam ou qualquer outra plataforma. Esse é meu império Romano. Não, a versão atual é uma desgraça e não merece ser jogada. E sobre o remake, esse é o meu outro ponto sobre não termos versões originais de jogos clássicos disponíveis nas plataformas. 

A indústria de jogos não quer que você jogue jogo velho. Claro, algumas empresas como a Capcom e a Sega disponibilizam de alguma forma versões de seus jogos clássicos em plataformas digitais como a Steam. A pouco tempo a Capcom fez o anúncio da trilogia clássica de Resident Evil para praticamente todas as plataformas. Algo que os fãs estavam pedindo há anos. Mas até pouco tempo atrás, isso não era uma realidade. 

Espero o lançamento de Dino Crisis também, dona Capcom. Preciso da minha dose de Regina matando velociraptors para ontem. 

Ainda assim, a esmagadora maioria dos jogos, como vimos na pesquisa da VGHF, não estão disponíveis para serem adquiridos de forma alguma. O que também gera outros problemas, como a IP hoarding, quando uma empresa adquire diversas propriedades intelectuais e não faz nada com elas, como a EA fez durante anos. 

Bom, aonde eu quero chegar com tudo isso? A resposta é simples: a única forma atual de preservação de jogos é via emulação. E ninguém quer entrar na justiça para acabar com ela, pois pode acarretar em consequências graves para qualquer um dos lados que perder. Tanto que o processo da Nintendo contra o Ryujinx não foi contra a emulação, mas sim por “facilitar” a pirataria. O mesmo foi com o Yuzu, afirmando que os desenvolvedores teriam lucrado com o vazamento de Zelda: Tears of the Kingdom, já que receberam um aumento de doações. Ambos os casos foram encerrados em um acordo. 

O medo da equipe de advogados da Nintendo é tão grande, que até a Valve não quis se envolver com eles. O emulador de GameCube e Wii, Dolphin, foi removido da Steam após a equipe da Valve ter entrado em contato com a Nintendo para informar que ele estava na plataforma. Vocês podem ler mais sobre esse caso aqui

Outro caso emblemático da Nintendo contra a pirataria, foi o processo que moveram contra o dono do site ROMUniverse por disponibilizar ROMs de jogos da Nintendo e cobrar inscrições pagas na plataforma. 

Mas o que eu sei sobre isso? Não sou especialista em direitos autorais e não poderia responder uma pergunta como: “Mas afinal, emulação é ilegal?”. 

E é por isso que eu conversei com o Doutor Miguel Mendes, que é advogado especialistas em direitos autorais. 

“Na realidade, o grande cerne da questão é que a emulação existe em grande parte numa região cinzenta da legislação. Via de regra, emuladores são considerados legais nos EUA, e aqui também, porque eles não usam código proprietário das empresas, mas sim engenharia reversa para simular (ou emular, no caso) o que um console faz. E aí tem o problema das BIOS e etc.” Diz Miguel. 

No caso das BIOS, elas não costumam vir no emulador, você precisa dar seus pulos, ou give your jumps, para conseguir ela. Foi por esse motivo que o Dolphin foi removido da Steam, por ele vir com uma BIOS instalada. 

“E no caso das ROMs?” Você deve estar se perguntando. Mas vou além: e no caso das empresas que estão mudando nos termos de serviço que você não está comprando um jogo, mas sim, utilizando um serviço? Como ficaria a emulação nessa situação? 

“Já no caso das ROMs, não é uma questão exatamente de termos de serviço. Aqui no Brasil, no artigo 7º, I da lei 7646, é permitida “a reprodução de cópia legitimamente adquirida, desde que indispensável à utilização adequada do programa”. Ou seja, você ter um backup de algo que você adquiriu, desde que use quando for “indispensável ao funcionamento. Aqui seria difícil uma empresa argumentar que o programa que você adquiriu (no caso, um jogo de console) era só uma licença de uso. 

Já nos EUA, a parada é que ninguém testa nos tribunais a questão das ROMs pessoais. Exatamente pra evitar criar precedente. Então mesmo que ocorra uma mudança desse tipo, acho difícil as empresas fazerem essa aposta. O principal pra elas — sites de ROMs grandes, compartilhamento de ROMs — já são ilegais. O cara dumpar a ROM em casa, além de muito difícil de monitorar, acaba podendo virar um tiro no pé pra elas mesmas.” relata o doutor. 

Recentemente uma nova lei foi aprovada na Califórnia que proíbe as lojas digitais de usarem palavras como “comprar” caso você esteja apenas licenciando um serviço. Caso usem, devem informar o usuário de antemão sobre isso.

E caso as empresas, de alguma forma, estiverem monitorando se o usuário fizer alguma coisa assim, o doutor informa que poderia se enquadrar em vigilância ilegal do usuário. 

“Acho que é inconsequente pro cenário geral. A própria Nintendo não tentou argumentar que emulação é ilegal na corte e tanto no caso do Yuzu quanto no do Ryujinx resolveram fora dos tribunais no fim das contas. Apesar de precisarem das chaves criptográficas para funcionar (assim como a BIOS pro PS2), teoricamente você pode pegar isso do seu próprio console e eles não são distribuídos pelo emulador.” Informa Miguel sobre a possibilidade da Nintendo criar um precedente com uma ação nos tribunais. 

E sobre os interesses da empresa de não levar isso para o tribunal e preferir resolver com um acordo? Ele responde.

“Como toda ação judicial, você tem um risco do tribunal não entender da mesma forma que seu interesse. Se a empresa abre um processo usando esse argumento (você não é dono, só tem uma licença, então a cópia é ilegal) e o tribunal entende, por exemplo, que “apesar de ser uma licença, você tem direito a manter um backup próprio porque isso não afeta o mercado”, algo que era incerto vira certeza e a empresa perdeu esse controle.” Finaliza o doutor. 

Mas parece que é uma batalha que ainda não tem previsão de chegar ao fim. Recentemente a Nintendo tem derrubado vídeos de criadores de conteúdo no Youtube que mostram seus jogos sendo emulados. No passado, ela chegou a mandar diversas denúncias de violação de direitos autorais para canais de covers de músicas dos seus jogos. Ser fã da Nintendo é quase que um martírio, é como ser fã de Silent Hill. 

Bom, qual a conclusão que eu quero chegar nesse texto? Emulação é a melhor forma que temos de preservar a história dos vídeo jogos hoje. E as empresas não vão nos perdoar por salvar sua história, já que ela foi feita por trabalhadores. 

Mario e a Justiça. Foto: Montagem/Victor Hidalgo

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