Indústria

Steam, onde você não compra jogos e sim licenças de uso. Por Victor Hidalgo

Por Victor Hidalgo, jornalista e autor do canal na Twitch Camarada Hidalgo.

Você não é dono dos seus jogos. Pode até parecer que seja, afinal, os preços da indústria AAA, ou AAAA agora, não param de subir. Ainda mais com novas versões digitais de colecionador para parecer que você está comprando algo especial. Mas não. Esses jogos não são seus.

E isso ficou bem claro quando a Ubisoft removeu das lojas virtuais The Crew e a Sony ter matado Concord antes mesmo do jogo conseguir respirar um pouco. Ambos os jogos não existem mais para serem adquiridos de forma legal nessas plataformas. Mas parece que isso vai mudar muito em breve, e essas empresas serão obrigadas a informar, em suas lojas virtuais, que os consumidores não estão comprando jogos, mas sim licenças de uso. 

Foi sancionada pelo governador da Califórnia, Gavin Newsom, a nova legislação chamada AB 2426, que visa conscientizar os consumidores que utilizam dessas plataformas digitais para comprar jogos de que eles não estão adquirindo uma propriedade, mas sim, uma licença de uso. O projeto de lei deve passar a valer a partir de janeiro de 2025, mas algumas plataformas como a Steam já se adiantaram e estão informando aos seus usuários o que antes ficava nos termos de serviço (que ninguém lê) da plataforma: você está comprando uma licença, não um jogo. 

Termos como “comprar”, segundo a nova lei, só podem ser usados se os consumidores forem garantidos de terem acesso permanente aos produtos. Caso contrário, devem informar aos usuários que estão adquirindo uma licença que pode ser revogada pela empresa. Como aconteceu com The Crew, da Ubisoft. 

O jogo retirado

No caso de The Crew, até parece que é uma tentativa da empresa obrigar os jogadores a comprar os jogos novos da franquia, e não terem mais acesso aos antigos.

Depois dos protestos dos jogadores, a empresa resolveu colocar um modo offline em The Crew 2 e Motorfest, segundo eles para “garantir acesso de longo prazo a ambos os títulos”. Mas como confiar numa declaração feita pela mesma empresa que retirou o primeiro jogo de quem comprou?

O jogo morto

Já em Concord, não parece que existe nenhuma vontade da Sony de aproveitar alguma coisa do jogo. O mais curioso é que sairá um curta na série animada antológica da Amazon, Secret Level, do jogo.

Vão pedir para remover o episódio também? Tudo envolvendo essa história é bizarro. 

A mudança

Essa mudança pode acabar afetando a forma que os usuários consomem esses jogos, tornando ainda mais relutante a compra de um jogo mais caro, ainda mais no Brasil onde os preços de jogos AAA ou AAAA (uma invenção da indústria para tirar ainda mais dinheiro de vocês) comprometem uma boa parte do salário mínimo de R$ 1.412. Silent Hill 2 Remake está saindo por R$ 349,90. Você pensaria duas vezes antes de fazer um investimento que comprometesse quase um terço da sua renda para algo que não é garantia de ser seu e ser removido da sua conta a qualquer hora? 

Anderson do Patrocínio, host do podcast Regras do Jogo do Holodeck Design, acredita que isso pode levar ainda mais pessoas a recorrer a pirataria, devida a insegurança, que sempre existiu mas agora está em evidência, do usuário não ter controle da sua biblioteca de jogos digitais. 

“Acredito que essa situação pode ser vista sob diversas perspectivas, que vão desde pessoas que preferem adquirir jogos em mídia física e se inserem no mercado de compra e venda de jogos usados, até outras que diante deste cenário vão optar pela pirataria como principal meio de acesso a estes produtos, condições que já são historicamente relacionadas à comunidade brasileira de jogos. Nesse contexto, o próprio conceito de mercado deve ser compreendido de maneira ampla, englobando os comportamentos das pessoas sobre os quais as relações de consumo se formaram.” Relatou Anderson. 

E como fica para os desenvolvedores que utilizam a plataforma? Conversei rapidamente com a oiCabie, desenvolvedora do jogo Bem Feito, que falou um pouco sobre o assunto, e ainda deu uma perspectiva sobre o problema de depender de plataformas como a Steam. 

“A repercussão negativa é inevitável e a gente já tá assistindo ela, e o backlash é mega justo também. Mídia digital é infungível, não faz sentido aplicar um conceito de temporariedade de uso. Isso já é algo que a gente assiste já com os serviços de streaming, e nos videogames com os play as a service e é um retrocesso para os desenvolvedores e os usuários como um todo. Não faz sentido você perder acesso a algo que você comprou. Não é justo para nenhuma das partes, só para os grandes investidores que impõem essas regras”. Relatou ela, como usuária da plataforma e desenvolvedora. 

“É sempre complicado depender de uma plataforma como a Steam (mas não apenas a Steam) para comercializar teu trabalho. Em teoria, os direitos do jogo são teus, mas a “fatia” que a Steam rouba do desenvolvedor vai muito além da porcentagem de ganho deles, esses parâmetros de EULA (Acordo de licença de usuário final) também é uma alienação do nosso trabalho. Eu, nem minha publicadora (ou publicadora alguma) tem autonomia total sobre a publicação do jogo; a gente fica permanentemente alienado de todo o processo. Se a Steam decidir mudar seu EULA, a gente tem que engolir em seco e seguir a vida. Os jogos de um desenvolvedor dependem da plataforma de publicação de um jeito ou de outro. Então meu jogo não deixa de existir de forma alguma sem a Steam, mas sem a steam ele não chega em usuários específicos, então é sim uma relação de dependência”. Respondeu oiCabie. 

Ela também relata que o desenvolvedor não está livre, mesmo num cenários de auto publicação é “infactível pensar no desenvolvedor não dependendo de plataforma alguma” concluí. 

Hospedar o seu próprio jogo, de forma independente, fora de uma dessas plataformas como a Steam e a Epic Games Store, é possível. Porém, segundo ela, “depende de um monte de variáveis e muitos cortes específicos têm que ser feitos, tem que pagar servidor, pensar no jeito de distribuição e comercialização. Enfim, não é algo que caiba numa dinâmica de desenvolvimento indie facilmente”. 

“Então se a steam muda as perspectivas gerais de como funciona o consumo dos produtos que eles vendem, e levando em consideração que eu to na “casa deles” então “as regras são deles” sim, prejudica meu trabalho. Eles tomam as decisões mas as consequências são para o desenvolvedor. A VALVE não vai falir se meu jogo sair da plataforma deles, eu posso falir se meu jogo sair da plataforma deles. Não existe uma relação de pares horizontais.” oiCabie sobre as mudanças na Steam afetarem o seu trabalho como desenvolvedora. 

Como fica legalmente?

Bom. E legalmente falando, como isso fica? É aí que ele entra novamente, Doutor Miguel Mendes, advogado especialista em direitos autorais teve a paciência de responder mais algumas perguntas sobre esse assunto. Cheque aqui nossa matéria sobre os processos da Nintendo para saber mais. 

“Eu acredito que vamos ver mais lojas seguindo o mesmo caminho. Esse é o caminho esperado desde o Digital Millenium Copyright Act, então mesmo lojas como GOG e itch.io vão acabar seguindo um caminho semelhante. A diferença crucial vai ser no modelo de licença: lojas que se aproximam mais de um conceito de cultura livre, como essas duas, sem Digital Rights Management, vão ter licenças mais abertas, permitindo inclusive cópias e instalação livre.” Diz Miguel. 

Não é como se não houvesse alguma forma de tornar isso melhor para os consumidores. O problema da Steam, que é o nosso exemplo aqui, é que a esmagadora maioria dos jogos só funcionam se você tiver o cliente da VALVE instalado no seu computador. Ou seja, você pode ter a pasta do jogo salva, mas ele só vai funcionar se tiver a Steam. 

Existem alguns jogos que são livres de DRM na plataforma. Ou seja, você pode executá-los sem usar o client da Steam. Confira a lista aqui. O que tornaria a questão de “ter” o seu jogo um pouco mais real. 

A GOG, a loja de jogos livres de DRM subsidiária da desenvolvedora CD Projekt, desenvolvedores de Witcher e Cyberpunk 2077, é uma alternativa à Steam. Oferecendo diversos títulos que podem ser baixados e funcionando sem internet e um client para funcionar. Apenas um executável. 

Então, como se proteger disso? Caso alguma empresa como a VALVE, Sony, Nintendo e Microsoft resolvam remover algum jogo que adquirimos em suas lojas virtuais, falamos com o Procon? 

“Já há alguns anos as leis de proteção de propriedade intelectual se comunicam, seja pela convenção de Berna, seja pelo acordo TRIPS, sendo o Brasil signatário de ambos. Assim, em suma, o que fazemos é garantir as mesmas proteções que garantimos ao que é registrado aqui. Então mesmo com essa mudança, se não for imposto algum tipo de limitação extremamente forte (como a remoção de acesso sem nenhum aviso prévio, por exemplo), dificilmente o Procon poderia fazer alguma coisa. Remover da conta do usuário um jogo que seja single player, sem necessidade de algo online, talvez seja mais difícil para elas. Mas tirando este cenário, é bem possível.” Relatou o doutor Miguel. 

Outro ponto relevante é o que está dentro dos termos de serviço e se ele tem algum fato jurídico relevante. A Steam sempre comunicou nos seus termos de uso que os consumidores estavam comprando uma licença de uso, não o jogo em questão. Mas isso não era claro para o usuário final, já que quase ninguém lê aquela gigantesca coluna de texto. No final, é uma grande piada. 

“É até uma piada que nos termos de serviço se coloca o que você quer esconder do cliente. Mesmo que para as empresas sempre tenha sido apenas uma “licença de uso”, quando você tenta remover direitos do consumidor no chamado “contrato de adesão”, que não é negociado, você acaba tendo algumas limitações impostas pela legislação e pode até ter aquela cláusula revista. No caso específico da Steam, e outros storefronts, o principal é que isso deixa de ser algo a se enterrar nos termos de serviço para virar algo que tem que vir logo de frente. A legislação afeta mais a linguagem usada, para deixar transparente ao consumidor, do que a prática em si.” Informa Miguel. 

Outro ponto relevante, segundo ele, é que no Brasil existe uma regra, uma cláusula geral por assim dizer, de dever de informação. O consumidor tem de estar plenamente informado do que está adquirindo. A lei da Califórnia segue um princípio parecido nesse sentido. Em tese, toda storefront que opera no Brasil deveria ter essa linguagem desde o começo.

Muitos desses temas acabam vivendo dentro de uma zona cinzenta da lei que ainda não foi explorada. Ou por conta da falta de interesse das partes envolvidas, ou por medo de criar um precedente para algo pior. Como o fato de você não poder deixar de herança a sua conta da Steam para outra pessoa, caso venha a falecer

Mas a questão é, que a história dos jogos segue em apagamento contínuo pelas empresas que detém os seus direitos. Um relançamento de Siren que saiu na Playstation Store em 2016, foi removido da plataforma em 15 de outubro. Quem comprou, ainda tem acesso ao jogo. Mas outras pessoas não. Então, qual a forma legal de jogar esse título hoje? Mesmo que um remake seja lançado, e esse seria o motivo mesquinho para remover o remaster do clássico da loja, ainda não teríamos uma forma legal de acessar o original. Somente por emulação. 

Isso sem entrar na questão de jogos que se classificam como abandonwares. Softwares, nesse caso jogos, que não possuem mais suporte ativo ou direitos autorais não são mais aplicados ativamente. Muitas vezes a empresa original é vendida, e a nova detentora da propriedade intelectual acaba segurando os direitos e não fazendo nada com eles. Então, eles somem das plataformas digitais e não são relançados para os sistemas modernos. 

Não é legal baixar abandonwares. Mas você pode checar muitos jogos que entraram nessa categoria pelo site My Abandonware. Até mesmo as versões de PC de Silent Hill 2, 3 e 4 estão listadas. 

Então, não somos donos dos nossos jogos. E agora? Bom, o tempo dirá. Mas é muito difícil ter alguma perspectiva positiva dentro de uma indústria que visa esmagar os desenvolvedores e engordar os executivos. Quando você terminar de ler essa matéria, provavelmente saíra mais alguma notícia sobre demissões em massa, fechamento de estúdios e casos de assédio e abuso sexual dentro dessas empresas. 

Mas uma coisa que devemos para todos esses trabalhadores é a preservação da história e do resultado do seu trabalho. E não é VALVE, Sony ou a Nintendo que vai ditar como isso será feito.

Caos no Steam. Foto: Montagem/Drops de Jogos

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