Depois de passar por veículos como Geek.com.br, GameCultura e GameStorming, lancei o Play’n’Biz, projeto autoral voltado ao mercado e ao desenvolvimento de jogos nacionais. O site, que durou pouco mais de um ano e antecedeu ao Drops de Jogos, contou com algumas colaborações especiais, sendo a mais frequente delas os artigos da seção Dev.Log, assinados por Renato Degiovani, o primeiro designer de games do país e também editor do site Tilt Online.
O texto a seguir, traz as impressões do desenvolvedor sobre o mercado de jogos daquele período e parece ainda atual, como você deverá observar durante a leitura.
Difusão de Responsabilidade, A culpa é sempre dos outros
Imagine a seguinte cena: você e outra pessoa dentro de uma sala de espera (do dentista por exemplo). A pessoa passa mal. Imediatamente você a socorre. É natural. É o instinto de sobrevivência e a sensação de que, por não ter mais ninguém na sala, a responsabilidade é sua.
Noutra situação, você está numa rua muito movimentada. Alguém passa mal e cai no chão. As pessoas passam perto e ninguém socorre a pobre coitada. É natural. Até mesmo você não demonstra o mesmo grau de solidariedade. É o efeito chamado difusão de responsabilidade, ou seja, cada pessoa ali presente tende a achar que tem alguém mais próximo e portanto a responsabilidade é dele em socorrer a pessoa. Demora um pouco até que alguém acuda, mas alguém sempre acaba se apresentando.
É mais ou menos isso que acontece na indústria brasileira de games. Todo o conjunto de atividades que representam o mercado produtor se comporta como se a responsabilidade por elevar os conceitos e difundir os jogos produzidos por aqui, fosse do outro, do vizinho. Neste bolo entram os desenvolvedores, os empresários, jornalistas, investidores e organizadores de eventos. Cada um acreditando que já está fazendo a sua parte (só por existir), quando na verdade é do esforço comum, direcionado para a divulgação, que resulta uma boa aceitação do produto nacional. Todo mundo é responsável.
A difusão de responsabilidade, no mercado, causa um resultado comportamental bem estranho. Em certa medida, o desenvolvedor acredita que basta fazer o jogo que, sendo ele “bom”, automaticamente o público diz amém. O empresário acredita que, por estar colocando seu dinheiro no projeto, isso já é prova suficiente de que o produto merece todos os louvores do público consumidor, como se fosse uma quase obrigação dele consumir tal produto.
Os jornalistas, investidores e organizadores de eventos acreditam que já cumpriram a sua missão apenas existindo: estou aqui, então venham, inscrevam seus produtos, obedeçam as regras e o mundo seguirá fluindo normalmente. Infelizmente as coisas não funcionam bem assim.
Em primeiro lugar, você existir (seja lá em que categoria for) não é uma dádiva dos deuses mas uma decisão pessoal sua. Além disso, o mercado ou público consumidor não é como o gado que, ao som do berrante, se encaminha para onde foi treinado ir. Bem, pra falar a verdade… Mas pelo menos você sabe tocar o berrante?
Um evento é, em sua essência maior, uma apresentação qualificada de algo (ou “algos”) que precisa ou deve receber um destaque extra para que chame a atenção do público alvo, num determinado espaço de tempo. É a confluência otimizada entre o que se produz, com a eventual necessidade de ser consumido. Essa é a matéria prima do evento e todo o esforço da organização deve ser no sentido de reunir (sob o mesmo teto) a maior quantidade possível de bons produtos. O resto é afinação e detalhamento. Um erro comum é acreditar que, tendo conseguido o aval de dois ou três grandes produtores, todos os demais estarão automaticamente inseridos no processo, meio que no vácuo dos mais significativos e portanto dispensados de uma atenção mais cuidadosa.
Algo parecido acontece com os jornalistas ou meios especializados em divulgação – todo meio de comunicação tem sua sobrevivência dependente da matéria prima básica do jornalismo: notícia ou informação. E nesse processo valem as regras conhecidas há séculos: a boa notícia, aquela que destaca e promove o veículo, é a notícia precisa, original e de preferência impactante. Um erro comum aqui é algo parecido com “enviem” seus produtos, que faremos uma divulgação, avaliação, análise, etc. Ou seja, o mecanismo que deveria ser pró ativo, é colocado em modo de funcionamento passivo, dependente do esforço (e da sorte) de elementos externos a ele.
No âmbito da produção (desenvolvedores, artistas, empresários, etc) a sobrevivência de um produto depende de duas coisas essenciais: existir enquanto produto e estar disponível para ser consumido. Porém, estar disponível não significa que a existência se basta. Muito pelo contrário, é necessário um esforço tão ou maior que o despendido na realização e concretização da ideia ou projeto, para tornar o produto visível à maior faixa de possíveis consumidores. E esse esforço (ainda que variável) precisa ser constante.
E o que tudo isso tem a ver com a difusão de responsabilidade mencionada no começo desta matéria? Simples: para que tudo isso funcione como uma máquina, perfeitamente, é preciso que todos assumam a sua cota de responsabilidade nos processos envolvidos. Como?
Os desenvolvedores devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, enviar material e participar de todo e qualquer evento que, de uma forma mais intensa ou não, promova e divulgue o seu jogo.
Os jornalistas devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, buscar a notícia, pesquisar, se envolver com as produções e formar relações de mútuo interesse entre os demais participantes do processo de produção do mercado.
Os organizadores devem, independentemente de qualquer iniciativa externa, promover e facilitar a participação do maior número possível de produtos, em seus respectivos eventos.
Tudo aquilo que fazemos no âmbito da atividade profissional pode ser formatado em dois modelos distintos: 1)- sentamos e esperamos os céus descerem até nós ou 2)- construímos uma escada bem alta para tentar atingi-lo.
Escolher o modelo 2 não implica necessariamente em acertar. Escolher o modelo 1 implica necessariamente em – não dando certo – não ficar se lamentando que ninguém gosta de você.
Atualização: consultado sobre o teor do artigo, Renato Degiovani mostrou-se impressionado com a atualidade do texto. “Atualíssimo. Agora a pouco, num daqueles momentos de reflexão obrigatória, tava eu pensando justamente no cenário atual e tudo isso aí continua sendo válido. Na verdade, as coisas pioraram e muito. A ponto de eu achar que o mercado brasileiro de games morreu durante a pandemia e provavelmente não vai ressuscitar mais”, afirmou Renatão, sempre com bom humor.
Atualização 2: no dia 13 de março daquele ano, recebemos um generoso relato de um jovem que afirmava ter descoberto o “site há pouco tempo” e ter virado fã. “Fico impressionado com o nível da redação e diversidade dos temas que abordam, mas fico mais impressionado com a pouca fama de vocês, mesmo com conteúdo tão bom (o que até prova um ponto da matéria). Estou divulgando para todos os meus amigos que se interessam por jogos, continuem o bom trabalho!”, afirmou o internauta G. Allan. A gente agradece as palavras e comunica que continuamos fazendo a mesma coisa, agora nesse sítio online (com o mestre Renato ainda trazendo opiniões, para nossa alegria!).
Imagem: reprodução da arte original do site Play’n’Biz.
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