“A educação, finalmente, parece que vai aprender que o melhor caminho é aquele que sempre esteve mais próximo: a semântica das brincadeiras de rua”
Sérgio Bairon [Multimídia, 1995]
Na condição de pesquisador informal da cultura dos jogos digitais, tenho tido a feliz oportunidade de ministrar, com certa frequência, palestras para jovens em formação nessas disciplinas e em ramos correlatos, sempre trazendo a diversidade de pensamento de inúmeros autores que se debruçam, com grande talento e empenho ao saber para a coletividade.
O texto abaixo foi produzido para o site Game Cultura, em 2011, mas jamais postado, por motivos que o tempo apagou. As informações são parte de uma palestra à Fatec de Carapicuíba, em 2011. Os detalhes foram recontextualizados para que façam sentido com a fluidez de uma narrativa textual, diferente da dinâmica de uma apresentação ao vivo, que permite interpolar assuntos e resgatá-los para uma síntese mais interativa com o público.
São pontos, no entanto, que podem se mostrar bastante esclarecedores para interessados no tema (modéstia inclusa, naturalmente). Boa leitura.
Jogar nos ensina regras de convívio social, limites, estratégia, competitividade e desapego, em nome da sociabilidade. Aprendemos (e apreendemos) novos valores sociais, outros costumes, formas de interação, aperfeiçoamos nosso repertório cognitivo e… nos divertimos entre amigos e familiares.
Longe de serem apenas recursos de entretenimento, os jogos e os games apresentam aplicações sociais, educativas, culturais e comunitárias. Há vários exemplos, como os grupos acadêmicos de pesquisa, projetos comunitários e ações paradidáticas de cunho educativo que podem ser disparadores da aquisição de novos saberes, a partir de uma vivência lúdica e imersiva, tal qual o ‘círculo mágico’ concebido por Johan Huizinga.
Os games são os grandes responsáveis pela introdução da cultura da informática no cotidiano de jovens e famílias, como identifica Alan Richard da Luz, em sua obra Vídeo games: história, linguagem e expressão gráfica, de 2011: “O vídeo game é uma nova mídia que ajudou a revolucionar a maneira como lidávamos com o computador, desenvolveu nossa cognição […] nossa percepção físico-espacial e ampliou a relação dos indivíduos com os meios digitais”.
Na mesma linha de pensamento, Steven Johnson esclarece de que forma se processam as cognições na mente dos jovens jogadores durante a interação com o lúdico digital, em seu livro De onde vêm as boas ideias, também de 2011: “Imagine um garoto de dez anos de idade que de bom grado imerge no mundo de Zelda. Para ele, a luta pelo poder sobre o sistema não parece uma luta. Ele decodifica o cenário na tela – adivinhando as relações causais entre ações e resultados, construindo hipóteses de trabalho sobre as regras internas do sistema – desde antes de aprender a ler”.
Esse processo de interação, de identificação com o sistema computacional (que parece tão difícil para a Geração Silenciosa, que antecedeu aos Baby Boomers) opera em níveis epistemológicos e desova na ontologia do ser, moldando nossa percepção individual e senso de coletividade, de forma leve e instrutiva.
“‘Pensar como o computador’ significa pensar em conjunto com a máquina, tornando-se uma extensão do processo computacional. O prazer dos jogos de computador está em entrar em um estado mental semelhante ao do computador, respondendo automaticamente [como ele]… O resultado é um estado semi-meditativo, no qual você não está apenas interagindo como a máquina, mas mesclando-se a ela”, definiu Ted Friedman no texto Civilization and Its Discontents: Simulation, Subjectivity, and Space, presente na obra On a Silver Platter – CD-ROMs and the Promises of a New Technology, editada por Greg M. Smith, em 1998.
Por meio dos games, passamos a compreender a lógica interna da programação dos sistemas computacionais, as relações de interação com o virtual e a virtualidade das simulações dos ambientes modelados digitalmente. Durante os períodos de convivência no virtual, temos a oportunidade de melhor compreender a netnografia, isso é, o campo de estudos que analisa o comportamento humano em grupos sociais na internet e, por extensão, entender e aceitar o outro, ampliando nossa sociabilidade.
Comprovando tais impressões, John C. Beck e Mitchell Wade destacaram, em 2006, o poder transformador dos games, afirmando que “as crianças estavam brincando com uma das mais poderosas tecnologias de informação de todos os tempos. Nem toda nova tecnologia de informação é capaz de mudar o mundo, mas muitas delas o fizeram. […] Assim como outras tecnologias, os games são ferramentas de informação. Sabemos, a partir de casos tão ancestrais quanto a adoção do alfabeto, que as ferramentas de informação comprovadamente mudam a forma como as pessoas pensam e se comportam”. O texto é parte da obra The Kids are Alright: How the Gamer Generation is Changing the Workplace.
De fato, como indica Sérgio Bairon, pode-se concluir que, até mesmo por meio da atividade lúdica mais prosaica, o processo educativo encontra campo muito mais fértil para sedimentar o conhecimento: “Jean Piaget, estudando um grupo de estudantes suíços que ia extremamente mal no aprendizado da gramática francesa, descobriu que eles passavam boa parte do dia jogando bolinha de gude, mas o mais surpreendente é que a soma das regras de todos os jogos que cada um dominava era muito maior que contém a gramática da língua francesa.”
Para além do pensamento reducionista, que pode restringir esses saberes ao resultado da interação entre a humanidade e os jogos digitais, os princípios sociais e educativos estão presentes também nos jogos analógicos desde antes do início da civilização, como nos apresenta Huizinga: “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana […] O ritual teve origem no jogo sagrado, a poesia nasceu do jogo e dele se nutriu, a música e a dança eram puro jogo […] Daí necessariamente se conclui que em suas fases mais primitivas a cultura é jogo.” [Homo Ludens – Johan Huizinga, 1938]
Educação, cidadania e cultura são, portanto, valores sociais claramente incorporados por meio dos jogos digitais.
Esse texto é baseado em palestra sobre Games e processos educativos, realizada Meetup com o grupo Games for Change Latin America, na Fatec de Carapicuíba, em 27 de outubro de 2011.
Imagem: reprodução de Jogos Infantis, obra de Pieter Brueghel (1560)
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