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Memory Card: Para onde vai o Game Velho? [GameCultura – Out/2008]

De repente, era o Natal de 1975 e a Sears, Roebuck e Co. colocou à venda o console doméstico Pong. Pong, como você bem sabe, já era um sucesso como arcade e o aparelhinho tinha a missão de repetir o êxito do irmão mais velho e mostrar que teria um desempenho de vendas melhor que o console da Magnavox, uma tarefa que não seria difícil de cumprir, embora inicialmente muitas lojas de brinquedo tenham recusado o game em virtude do fiasco do Odissey.

Aliás, apenas a título de curiosidade, comenta-se que o Odissey teve uma vendagem inexpressiva por conta de um boato de que o aparelho só funcionaria conectado aos televisores da Magnavox. Isso deve ter sido obra do Nolan Bushnell, eheheh…

Pong não apenas gerou filas de crianças ansiosas pela novidade, como remodelou todo o conceito de entretenimento de uma nova geração, que crescia assistindo a ascensão da microeletrônica e da revolução latente dessa tecnologia.

Naturalmente, outros surtos de genialidade ocorreriam em uma sequência de experimentos e descobertas que solidificariam a tendência, como o aparecimento do bom e velho 2600 e outras soluções criativas, inovadoras e, às vezes, bem estranhas. Todo este conjunto de ações daria peso e destaque à emergente cultura gamer que surgia, atraindo o olhar guloso do mercado de entretenimento.

O tempo passou e a indústria de entretenimento eletrônico criada a partir destes produtos passou por vários altos e baixos, ora conquistando o interesse do público, ora pondo quase tudo a perder, mas seus executivos mostraram que, por mais raso que seja o brainstorm de hoje no campo do game design (que raramente oferece alguma novidade realmente diferenciada da mesmice!), estes profissionais aprenderam a seguir em frente e sobreviver à mudança da marés. Não dá para falar ainda em maturidade do meio, mas já estamos vivendo nosso momento “Sonic”, com uma indústria de games adolescendo, rebelde e trôpega, mas confiante e implacável.

Nesta trilha tortuosa, muita coisa boa e inovadora foi criada e, infelizmente, muito disso se perdeu pelo caminho, às vezes atropelada por muita coisa ruim que apareceu, apoiada em um marketing mais competente.

Esta reflexão me veio quando me deparei com o cemitério de elefantes feito de bits exaustivamente programados e hoje totalmente ignorados pelo maciço contingente de gamers contemporâneos em busca do próximo “tiro-em-primeira-pessoa” ou “dos melhores gráficos em 3D produzidos até hoje”, como você já cansou de ler em resenhas, matérias e versos de caixinhas de jogos a cada novo lançamento poligonal.

Por fim, veio-me a pergunta: o que acontece quando um game “morre” e como isso acontece efetivamente?

Fiquei angustiado com a ideia de que tanta criatividade, produção, empenho e apostas de alto risco hoje já não tinham qualquer importância e valor, diferente de Buster Keaton, Louis Armstrong ou Dostoiewisky que, assim como o vinho, parecem encorpar com o avanço do tempo. Se até “Scooby Doo” conta com o generoso saudosismo do público e retorna com uma roupagem cinematográfica super produzida a intervalos regulares, que dá novo sopro de vida à franquia, mantendo a mesma essência do desenho animado (para não falar dos recentes blockbusters Batman e Superman, entre outros), porque Pitfall nunca virou conteúdo para outro tipo de mídia e só consegue a criação de sequências dignas de pena???

Porque os gibis se transformam em verdadeiras obras cinematográficas, como “Transformers” e “Xmen” (e, muito em breve, o espetacular “Watchman”), livros recebem um tratamento respeitoso como “O Nome da Rosa” e “O Senhor dos Anéis”, fatos históricos viram referência como “As Horas” e “Cartas de Iwo Jima”, mas os games só conseguem produzir desastres como o sofrível “Super Mario Bros – O Filme”, de 1993, com Bob Hoskins e John Leguizamo ou “Resident Evil – O Hóspede Maldito”, de 2002, com a eterna Milla “Quinto Elemento” Jovovich?

Será que uma grande ideia, depois de virar um game de sucesso, tem como destino irrefutável o limbo digital? Bem, folgo em dizer que, depois de um desconcertante período de aflição, minha opinião hoje é “não”.

Como qualquer meio, como qualquer nova criação da humanidade, também a produção de entretenimento em forma de bits teve seu tempo para transformar-se em um recurso aceito e, posteriormente, respeitado como forma de arte e esse tempo está chegando também para os games, que começam a deixar de ser vistos como um brinquedo de crianças, jogado por marmanjos de bermudão e passam a ser percebidos como uma atividade lúdica saudável para todas as idades.

Só esta mudança na maneira como a sociedade passa a enxergar o fenômeno já é uma revolução em si. Vejo que, muito em breve, pais passarão a desejar compartilhar seu tempo livre com os filhos disputando a Copa, ao invés de apenas assisti-la passivamente e também desafiar a família para ver quem tem melhor performance no Rock Band, no golf virtual ou no Brain Age, fritando os miolos em um ambiente familiar festivo e descontraído. Aliás, vale lembrar que os games já começam a ser vistos como uma alternativa ao posto vago dos jogos em família, anteriormente exercidos pelos ritos sociais (tão bem exemplificados em Homo Ludens, de Huizinga) e, mais recentemente, pelos jogos de tabuleiro (que também ensaiam seu retorno ao seio familiar no Brasil!).

Você pode estar se perguntando a esta altura onde o game velho nesse texto… o game velho simplesmente não morreu! Para onde vai? Vai ficar entre nós, cada vez mais intensamente, cada vez mais presente, matando as saudades dos velhos gamers e fazendo a alegria das novas gerações.

Esta onda retrô 80 que temos assistido (e que, curiosamente, é saudada não apenas por quarentões aficionados, mas por uma imensa galera que sequer era nascida naquela época!) é um acontecimento cultural contemporâneo que veio para mais do que apropriar-se da estética da década, dando-lhe crédito legítimo, como ambiente em que se deram grandes mudanças conceituais e paradigmáticas, preparando-nos para as (r)evolucionárias mudanças técnicas e comportamentais previstas para o novo século e que fazem uso absoluto do meio digital, transformando-o de ferramenta em cultura.

Os games antigos voltaram com força e estão espalhados por toda parte, nos sites dedicados à memória de suas geniais criações, nos sites que resgatam grandes produções relegadas ao esquecimento (dá-lhes, Dreamcast!), nos sites de Abandon Wares, nos celulares, mobiles e até mesmo nos mais recentes consoles, como temos visto nos pacotes online das redes dos principais pesos-pesados da indústria, PS3 e rivais, e lançamentos como “Megaman 9” e “Space Invaders Extreme”.

Pode ser que este saudosismo de fãs e entusiastas do passado não o convençam da dimensão do “retorno dos games mortos-vivos”, mas o assunto passou a ser tema e objeto de estudo de muitos profissionais e pesquisadores, interessados na manutenção e continuidade dessas obras.

Isso explica o (já não tão) recente movimento global de resgate e manutenção da memória dos games, agora não mais classificados somente como brinquedos, mas como elementos fundamentais da cultura contemporânea e base para o processo educativo de aprimoramento de novos profissionais da era digital (que não se limitam a serem game designers, aguçando inúmeros atributos como concentração, noções matemáticas, princípios abstratos de física newtoniana, interação social, foco, espacialidade e perspectiva, entre muitos outros).

Do saudosismo puro e simples, passamos para a concretização de propostas como o Preserving Virtual Worlds Project (https://www.researchgate.net/publication/46301847_Preserving_Virtual_Worlds_Final_Report/link/5735d5c108ae298602e09126/download), idealizado pela Biblioteca da Congresso norte-americano para acontecer entre janeiro de 2008 e dezembro de 2009 e que já está realizando um amplo levantamento de mídias digitais, ficção interativa e games, com vistas à preservação dessa vasta produção cultural.

Outras propostas surgem simultaneamente, como a possibilidade de um museu permanente de games, sugerido por ninguém menos que Greg Costikyan (http://www.costik.com/) em parceria com a Entertainment Software Association (http://www.theesa.com/index.php), que busca medidas jurídicas e tecnológicas reguladoras para legalizar a emulação de games de diferentes plataformas, como meio para preservar a história do entretenimento digital.

Outros ainda, como a Software Preservation Society procuram evitar o desaparecimento de jogos da plataforma Amiga e outros retro games; o Worlds in Motion (https://www.gamesindustry.biz/2008-austin-game-developers-conference-google-s-mel-guymon-to-open-worlds-in-motion-summit-at-september-s-conference), projeto do site Gamasutra (http://www.gamasutra.com/) que se propõe a compilar o mais completo banco de dados sobre os inúmeros mundos virtuais hoje disponíveis na rede e sites como o Intellivisionlives (http://www.intellivisionlives.com/), que pretende também realizar o resgate de todo o acervo de excelentes games criados para a plataforma, disponibilizando seu conteúdo para mobiles, cds de áudio e material promocional como camisetas e gadgets saudosistas; exemplos diversos de alternativas que despontam com um mesmo objetivo: zelar para que o jovem de amanhã conheça os primórdios do game design, saiba onde tudo começou e possa ainda se divertir com conceitos que, mesmo não sendo de última geração tecnológica, conservam o brilhantismo dos primeiros insights na criação de jogos, definição de gêneros e construção das bases desse gigantesco propósito de promover educação por meio da diversão eletrônica.

Por último e não menos importante, ressalto a importância de iniciativas como o Classic Gaming Expo (https://twitter.com/cgexpo), evento que comemorou dez anos oferecendo espaço para a exibição de acervos raros de games antigos, venda e troca de consoles e raridades, bate-papos com personalidades do meio gamístico e arcades de game para uso livre e gratuito e que, surpreendentemente, teve sua edição 2008 cancelada por falta de interesse do hotel que sediava o evento (entre outros problemas).

Jason Della Rocca, diretor executivo do IDGA – International Game Developers Association (http://www.igda.org/) já alertava em 2003 que “a história da indústria [de games] está desaparecendo sob nossos pés e isso não é legal” (http://www.wired.com/culture/lifestyle/news/2003/08/59948). Ele está certo e assim como ele, todos estamos empenhados em manter para o futuro toda a documentação e registro possível em relação a este importante patrimônio cultural.

No Brasil há inúmeras iniciativas em andamento e não quero ser injusto com ninguém deixando de comentar algum trabalho sério, mas chamo a atenção para o trabalho dos rapazes da revista eletrônica Jogos 80 (https://www.jogos80.com.br/) , que vêem mantendo firmemente o propósito de criar e disponibilizar a cada período de tempo, ainda que incerto, um veículo que divulgue os muitos aspectos relevantes do início de tudo, quando o Pong e mais tarde VCS 2600 eram o grande desejo de todo jovem, criança e adulto do planeta. Nesse sentido, também a galera do blog Old Games Zine (http://oldgameszine.wordpress.com/), que vem fazendo um excelente trabalho de garimpar novidades (e algumas esquisitices!) sobre nossos queridos jogos do passado e também os caras do Retrobits (http://www.retrobits.com.br/site/), que mantêm um consistente e competente processo de reviews de jogos de 8 e 16 bits, sempre com muito know-how e bom humor.

Todos esses projetos e realizações buscam manter viva (e jogável!) a genialidade de trabalhos antigos que tornaram-se referencia para gêneros, desafios e jogabilidade, entre outros fatores determinantes do game design. Apesar desta importância histórica, os velhos games ficam no aguardo de serem novamente ‘bootados’ para mais uma partida e do merecido crédito pela criatividade e pioneirismo.

Há quem afirme que a emulação de sistemas de consoles antigos não seja um reconhecimento efetivo da importância de determinado jogo ou plataforma, visto que perdem-se elementos essenciais do recurso, como o design original dos consoles e controles e a ergonomia proporcionada (ou não) por estes lançamentos, e não podemos tirar a razão destas procedentes críticas, já que, mesmo apreciando a arte e a jogabilidade concebidas para o game, perde-se, por outro lado, a experiencia imersiva originalmente proporcionada pelos dispositivos idealizados em suas diferentes épocas.

Mas eu, particularmente, recebo com muito otimismo estas iniciativas. A história da humanidade está cheia de bons exemplos de preservação da memória e da cultura de gerações passadas. A certo momento da revolução literária alguém considerou, muito adequadamente, que talvez fosse importante, para uma melhor análise antropológica de nossa espécie, a criação de um acervo com uma expressiva amostragem do farto material escrito já produzido, e não somente as obras dos grandes mestres, para que se pudesse preservar o pensamento coletivo de momentos sociais distintos da humanidade na tentativa de compreender melhor, futuramente, nosso caótico processo evolutivo.

Lembro que quando ia ao cinema nas décadas de 70 e 80 havia um programa chatérrimo que antecedia aos filmes e que era produzido pelo Primo Carbonari, um gentil italiano, hoje já falecido, que tive o prazer de conhecer pessoalmente. Li há alguns anos em algum lugar que todo o material por ele produzido estava sendo recolhido e estudado, como um importante registro de uma época singular em que a sociedade brasileira vivia sob a opressão do militarismo e como agíamos e reagíamos a isso.

Da mesma forma, por muito tempo a imensa produção de games foi objeto de críticas e descaso por anos a fio e agora começa a receber alguma atenção, com foco cultural e educativo. Isto não nos permitirá apenas entender os detalhes que compõem a criação de games e, consequentemente, a produção de games melhores, mas irá possibilitar também uma análise mais rica e apropriada do momento vivido na eclosão desta nova mídia e do significado dos desdobramentos sociais, cognitivos e culturais provocados pelo advento deste fenômeno.

Por fim, ocorreu-me um outro paralelo: O game velho está ficando como o canto de Gardel: cada dia melhor!

Atualização: boa parte dessas iniciativas de preservação dos jogos e da cultura gamer já não existe hoje, 15 anos depois (assim como o próprio site GameCultura, lamentavelmente). Novos recursos para jogar clássicos do passado por meio da nuvem estão disponíveis e parecem suprir, em parte, esses ideais do passado. Os jogos de interação, que tanto cresceram ao longo desse tempo, no entanto, não contam, com qualquer suporte de registro e arquivamento, relegados ao esquecimento. Por meio dessa artigo, é possível observar, também, que meus textos ficaram menos opinativos e mais técnicos e analíticos. São as mudanças que o tempo promove.

Imagem: reprodução

Kao Tokio

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