O desenvolvedor brasileiro Renato Degiovani, colaborador do Drops de Jogos, vem escrevendo sobre jogos e programação desde os anos 1980, quando trabalhou também como editor da revista Micro Sistemas.
O profissional resgatou, recentemente, vários artigos produzidos ao longo das últimas décadas e oferece gentilmente esse vasto acervo aos leitores do site, com informações úteis e, em alguns casos, trazendo importantes registros de momentos de grande relevância no mercado brasileiro de games.
Segue um texto redigido para a Micro Sistemas em setembro de 1985, que pode ser ainda hoje muito esclarecedor para programadores e desenvolvedores.
Programando comercialmente
O advento do computador trouxe não só uma nova realidade para as pessoas comuns, como também acabou criando a ilusão de que seria possível transformar-se em milionário da noite para o dia. Para isto bastaria o conhecimento de uma linguagem de programação, uma máquina e uma boa ideia (ou nem tanto). Quem acordou a tempo evitou dissabores, porém ainda persistem muitos que acreditam que a palavra computador pode ser facilmente associada a milhões de cruzeiros (ou dólares).
A experiência tem demonstrado que nem tão lá nem tão cá, mas de qualquer forma é sempre necessário um trabalho árduo e muita presença de espírito para se ter um bom retorno comercial. Tudo começa porém com um programa.
A criação de um bom programa, por outro lado, não se restringe apenas a uma ideia original e sua consequente transformação em linguagem de computador. É preciso também que outras pessoas vejam, utilizem e, se necessário, critiquem apontando os erros e deficiências do software.
Para que um universo significativo de indivíduos venha a usufruir de um determinado programa, é preciso que este mesmo programa esteja disponível, quer comercialmente, quer de forma pública, como por exemplo em publicações (livros, revistas, fascículos etc).
Tem-se dessa maneira que a elaboração de um software não pode ser vista apenas como o ato de escrever um programa. Existem aspectos importantes que são desprezados pelos programadores, na maioria das vezes, por puro desconhecimento.
Trataremos neste artigo do envolvimento do programador com os problemas da produção comercial no que diz respeito aos custos e meios de se obter um bom produto. Não discutiremos, porém, os aspectos legais de direito autoral, bem como as formas de acordos entre autores e produtores.
A partir de uma boa ideia normalmente o programador inicia a criação de um programa do qual ele pretenderá, mais tarde, usufruir como uma fonte de renda, ou seja, ganhar algum dinheiro. Se existe realmente esta pretensão e se ela se mostrar forte, então a primeira providência que o autor deve tomar, antes mesmo de começar a programar, é considerar todo o seu esforço como um trabalho profissional. Um trabalho que tem um custo real e que deve ser estimado em relação a um ganho salarial dentro da realidade profissional do programador.
O tempo dedicado ao desenvolvimento deve ser computado de alguma forma para que posteriormente o programador saiba, quando houver algum retorno financeiro, o que é lucro e o que é simplesmente reposição salarial. É importante observar também que o aspecto tempo deve assumir uma dimensão adequada ao tipo de programa que será desenvolvido. Programas de consumo imediato (principalmente os jogos) não podem ter um tempo de elaboração grande o suficiente para inviabilizá-los comercialmente.
Um erro frequente, presente na maioria dos casos de decepção pós criação, é uma supervalorização do trabalho em função do tempo de desenvolvimento. Colocações do tipo “mas eu gastei oito meses nesse programa para gerar números de 1 a 10” mostram claramente que houve uma falha de avaliação no processo.
Por outro lado, quando se pretende comercializar o software é preciso ter claramente e de uma forma objetiva o perfil comercial do programa que está saindo do forno, ou seja, avaliar as necessidades reais do público consumidor para aquele tipo de programa. Algumas vezes o programador chega nessa fase e constata que acabou de inventar o Visicalc e que todo trabalho pode ser considerado perdido.
Outros aspectos também são importantes e devem ser considerados tais como: os programas que podem ser vistos como concorrentes diretos; o tipo de equipamento em que o software irá rodar; o suporte físico apropriado (disco/fita), etc.
Ao final dessa avaliação o autor dispõe de meios seguros para decidir sobre os procedimentos comerciais a serem seguidos nas próximas etapas de elaboração do software.
No momento em que o autor termina a sua criação, ou seja, quando a última linha do programa é escrita, começa a se desenrolar um drama que chega, em alguns casos, ao pitoresco típico das novelas mexicanas. Isto tudo se deve a nossa ainda inexistente consciência de que somos uma sociedade de consumo e portanto com direitos e deveres em relação aos produtos consumidos.
Todo produtor tem a obrigação de prover o mercado com produtos bons e todo consumidor tem o dever de exigir qualidade naquilo que consome. Se essa lei de preservação do mercado fosse cumprida a risca todos nós ficaríamos felizes e satisfeitos e certamente o mundo seria melhor, porém…
Antes de irmos em frente com a discussão prática, vejamos algumas questões teóricas, ou de ordem institucional como preferem alguns. Um produto só tem chance de ser comercializado com sucesso se a ele for destinado algum investimento funcional.
No nosso caso, consideraremos como exemplo um autor que criou um jogo inédito e que pretende vendê-lo em fita cassete para uma linha muito popular de micros. Chamaríamos de investimento funcional o gasto com a aparência do produto, ou seja, capa da fita, selo, folheto manual e embalagem final.
Esse custo, somado ao custo de produção real (fabricação) e ainda ao custo de publicidade e de distribuição, irá compor aquilo que chamamos de investimento de risco. O risco que se corre, nesses casos, é não ter esse dinheiro gasto de volta, daí a grande discussão em torno de quem fica com a parte do leão (não o do imposto): se o autor da ideia genial ou se o produtor, dono do dinheiro.
Como vivemos num país dito capitalista, haverá uma tendência de se valorizar mais o capital do que a criação cultural. Vai daí que é bem provável ser o produtor o destinatário da maior fatia do bolo, cabendo ao autor o que as circunstâncias determinarem.
Esse status quo só é quebrado quando o próprio autor passa a encarar a produção como responsabilidade sua e parte ele mesmo para o investimento de risco. Para isso é preciso acreditar muito no produto e conhecer alguns macetes a fim de facilitar a jornada. Infelizmente porém essa etapa não é das mais suaves e uma das suas maiores repercussões é justamente afastar o programador daquilo que ele mais sabe fazer, ou seja, criar programas.
Mas, a despeito de tudo e de todos, consideremos que o autor do nosso exemplo pretende ir além de simplesmente escrever o programa e resolve por livre e espontânea vontade ser o produtor de sua criação. Vejamos finalmente como se dá a produção de um programa e o que preciso para se ter não apenas uma ideia em forma de fita mas um produto em condições de competitividade comercial.
Muitos de nós estamos acostumados com a frase “as aparências enganam” e no nosso caso enganam mesmo. Existe, por trás da embalagem de um produto, muito mais do que sonha a nossa vã filosofia de intelectuais de botequim.
No Brasil são raras as pessoas que dão o devido valor ao trabalho e cuidado na proteção de um produto pois embalagem é, antes de qualquer coisa, uma forma de assegurar a integridade do seu conteúdo. Por outro lado, a aparência final de uma embalagem depende muito de um trabalho artístico, que adiciona ao produto um conteúdo de cunho cultural bastante forte.
Em países mais adiantados, como Japão, EUA, etc o problema da embalagem é levado muito mais a sério do que no Brasil, existindo nesses países instituições de preservação desse patrimônio cultural da nossa moderna sociedade de consumo.
Nas regiões tupiniquins, olhando para o problema de uma forma mais prática, o que normalmente se faz é contatar um desenhista, ou um programador visual, para que ele se encarregue de projetar a embalagem do programa. No nosso exemplo trata-se de criar uma capa para a fita e o selo adesivo da mesma.
Esse trabalho, que deve ser muito bem orientado pelo nosso autor-produtor deve obedecer a critérios de mercadologia de produto bem como visar a uma funcionalidade visual. Traduzindo em miúdos, a fita deve ser bonita (agradar ao público consumidor) e ao mesmo tempo ser uma referência o mais próximo possível do seu conteúdo.
Esse aspecto tem assumido, nos últimos três anos, uma importância quase crucial para o sucesso de um programa. Nota-se, em alguns países europeus, uma verdadeira guerra de imagens onde cada um tenta mostrar muito mais do que o seu programa é capaz de fazer. Não é raro vermos fitas que aparentam ser de um emocionante jogo de caçadas aventurescas, onde um mocinho à lá Robert Redford salva uma não menos mocinha à lá Brooke Shields. O resultado final é um desastroso asterisco correndo atrás de uma vírgula pela tela da TV. Esse tipo de situação muitas vezes derruba uma iniciativa mais tímida e é importante estar sempre atento a essas armadilhas.
O problema da embalagem deve ser, quando isso for possível, confiado a profissionais experientes, o que também contribui para o encarecimento do produto porém com resultados mais seguros e controláveis.
A produção seriada de fitas é um aspecto menos pitoresco que a criação da capa, pois se trata essencialmente de aritmética, ou seja, basta somar e multiplicar que o resultado é facilmente visualizado. Vejamos como.
Os itens que compõem a produção seriada, no nosso caso, são: impressão de capas e selos e a fita propriamente dita. Esses itens devem ser considerados quanto a tiragens, ou seja, quantidades mínimas e máximas onde o custo unitário é o menor possível.
É possível comprar, no mercado nacional, quantidades baixas de fitas virgens, da ordem de 300 a 400 unidades por lote. A impressão de capas porém não sofre da mesma facilidade e uma capa a quatro cores, em papel couchê, dificilmente poderá ser produzida com uma tiragem inferior a 2000 ou 5000 unidades. Esse é um investimento bastante significativo pois esse custo de produção é invariavelmente alto.
Uma vez superado o problema dos itens, a questão passa a ser quanto a gravação. É perfeitamente possível fazer uma gravação doméstica de qualidade, porém o seu custo pode se tornar proibitivo. O melhor procedimento é, antes de qualquer decisão, pesar bem a opção pela gravação profissional que é melhor tecnicamente falando.
No entanto, se o nosso autor-produtor quiser fazer uma gravação doméstica, então se fará necessária a avaliação de alguns pontos. Em primeiro lugar é preciso estruturar a operação mecânica de gravação/embalagem. Ainda dentro do nosso exemplo, vejamos como esse processo se dá.
Suponhamos que o programa consuma cinco minutos de gravação, que é um tempo mais ou menos médio de duração. Considerando o tempo de gravação dos dois lados da fita (isso é o mínimo que se espera de um produto), mais o tempo de manuseio do cartucho (tirar e recolocar na caixa), mais a embalagem e mais as operações de rebobinamento da fita, podemos dizer que nosso programa gasta uns 15 minutos por tempo de gravação/fita.
Ao final de um dia de oito horas de trabalho ininterrupto teríamos, considerando perdas e paradas imprevisíveis, umas 28 fitas gravadas. Numa semana (seis dias) essa tiragem seria elevada a umas 150 fitas (considerando aqui também algumas perdas).
Como a intenção inicial era inundar o mercado com milhares e milhares de cópias, um pedido insignificante de 600 fitas iria obrigar nosso autor-produtor a trabalhar um mês inteiro diante de um gravador. Certamente a sua neurose de gravação adquirida teria reabilitação duvidosa e seus lucros acabariam indo parar num psiquiatra.
Nesse ponto poderíamos argumentar que dois gravadores gravam o dobro do que um único gravador. Se estendermos esse raciocínio então logo esbarraremos em questões como depreciação de equipamento, instalações adequadas, manutenção preventiva, etc. Depois de algum tempo estaríamos às voltas com alvarás, licenças na prefeitura, inscrições comerciais, etc, etc, etc…
Apesar das aparências, chegar até esse ponto é relativamente simples. É a partir daqui que as coisas começam a se complicar pois nessa hora o controle absoluto da distribuição torna-se invariavelmente impossível.
Se não for preparado um esquema eficiente de colocação em pontos de venda (lojas) a Confraria Nacional dos Piratas assume por completo a distribuição em todo território nacional e a concorrência com eles é perda de tempo e dinheiro.
Até hoje o único remédio contra esse tipo de mal tem sido a produção em larga escala e a comercialização antecipada, a fim de aproveitar a inércia própria do setor. Isso significa que o nosso autor-produtor tem que se vestir de vendedor e cobrir o maior espaço no menor tempo possível. Praticamente uma olimpíada particular inteirinha.
A decisão sobre o melhor procedimento a adotar quando se quer comercializar um programa deve ser o resultado de uma reflexão séria por parte dos autores. Foi abordado nesse artigo alguns tópicos que, apesar da aparente irreverência, são de extrema importância para a formação de uma mentalidade profissional. Sem ela não só seremos amadores eternamente como também estaremos a distância dos outros países onde existe uma industria de informática.
Talvez ainda tenhamos que aprender muito pois o assunto produção de software sequer foi arranhado por nossa nascente sociedade informatizada. Devemos ter, a partir de agora, a consciência de que somente uma produção nacional terá condições de consolidar o mercado de computadores. Jamais iremos exportar Visicalcs ou bBases mas teremos alguma chance quando mostrarmos algo realmente nosso. Não tanto por questões ideológicas ou patrióticas mas tão somente por aspectos comerciais.
Atualização (por Renato Degiovani):
Relendo o que escrevi 38 anos atrás, demandado pelo interesse dos leitores da revista Micro Sistemas em entrar para o mundo comercial digital, percebo dois aspectos já datados: o conceito de produto estava muito mais ligado à programação do que ao conjunto da obra e a mídia de distribuição era a fita cassete (hoje disponível apenas em projetos nostálgicos). Todos os demais conceitos, preocupações e ponderações permanecem valendo nos dias atuais.
Em tempo: As edições da Micro Sistemas podem ser acessadas pelos saudosistas no site Datassete.
Imagem: reprodução da capa da revista Micro Sistemas – Informática 86