Dungeons & Dragons foi o primeiro RPG produzido no mundo pelos criadores Gary Gygax e Dave Arneson, como todo rpgista sabe. A participação de Dave Megarry, que contribuiu com o estilo de jogo nas masmorras, é menos conhecida, embora tenha ajudado a criar a ambiência bolorenta de muitas das aventuras clássicas do jogo.
Mas houve um encontro fundamental de onde partiram essas ideias para a criação daquilo que seria o primeiro jogo de interpretação de papéis da história da humanidade, como o Drops de Jogos reproduz abaixo.
Em uma tarde fria de outono em 1972, um trio de habitantes de Minnesota parou em Lake Geneva, no Wisconsin [EUA], uma pitoresca cidade à beira do lago cerca de uma hora ao norte de Chicago. Eles percorreram os quatro quarteirões do centro da cidade, parando em uma entrada a apenas algumas vias da pequena rua principal.
Dois deles, Dave Arneson e Dave Megarry, verificaram ansiosamente suas malas quando saíram do carro. Eles atravessaram o estado de carro em parte para mostrar os jogos que criaram. Se eles tivessem esquecido alguma coisa, era tarde demais para voltar, mas eles queriam ter certeza de que todos os materiais estavam em ordem.
Lake Geneva, então, como hoje, era uma improvável meca dos jogos. Uma cidade turística com uma população de cinco mil pessoas (um número que quadruplicava no verão, quando as pessoas vinham nadar nas águas curiosamente claras do lago de fundo rochoso), mais conhecida como [local para] casa de veraneio de famílias ricas como os Wrigleys, da goma de mascar, e os Maytags, dos eletrodomésticos. Foi também lar de Gary Gygax, de 34 anos, um jogador e escritor de jogos cuja energia peripatética e a imensa curiosidade já haviam lhe rendido um lugar de destaque na comunidade de habitantes do meio-oeste, fascinados por jogos com temas militares e históricos.
Arneson e Gygax já haviam se conhecido antes, na convenção de jogos Gen Con, que Gygax havia iniciado em Lake Geneva, alguns anos antes. Os dois haviam colaborado em um jogo de navegação chamado Don’t Give Up the Ship. Agora, Arneson estava trabalhando em um novo jogo de aventura com um estilo de jogo que era tão próximo do teatro quanto dos jogos de guerra da comunidade – batalhas de soldados em miniatura com final aberto, que envolviam jogadores movendo estatuetas por um espaço aberto de jogo, diferente dos jogos de tabuleiro mais tradicionais.
Megarry também estava experimentando um novo jogo de tabuleiro, jogado de forma mais convencional com dados e cartas, mas ambientado no subsolo, em uma masmorra infestada de monstros. Gygax tinha ouvido falar deles e queria ver os dois. “Entre”, disse Gygax aos visitantes. “Vou lhes mostrar o lugar.”
Ele os deixou entrar, mostrou-lhes onde dormiriam e depois os conduziu até o porão. Gygax havia construído uma mesa com tampo de areia, com 3,6 metros de comprimento por 1,80 metro de largura, onde seu grupo habitual de fim de semana jogava jogos abertos, geralmente com temas de guerra. Um desses jogos era o próprio Chainmail de Gygax, no qual os jogadores usavam pequenas estatuetas, narrativas improvisadas e jogadas de dados para simular batalhas medievais. Ele havia modificado recentemente o jogo, adicionando elementos de fantasia, como trolls e dragões e mágicos que atiravam bolas de fogo (que, não por acaso, tinham o mesmo raio de explosão dos canhões usados para outros jogos jogados nesta mesa). A nova versão provou ser extremamente popular, às vezes atraindo até vinte ou trinta jogadores para a mesa.
Quando o sol se pôs, o pequeno grupo se reuniu no andar de cima para brincar na mesa da sala de jantar de Gygax. Algumas outras pessoas da cena de Lake Geneva se juntaram a eles, incluindo o próprio filho de doze anos de Gygax, Ernie. Eles tentaram o jogo de Megarry primeiro. Os jogadores percorreram um tabuleiro feito de papel quadriculado, encontrando monstros e lutando contra eles com feitiços. “Eu disse: ‘Uau, esta é uma ótima adaptação’. Era Chainmail em uma masmorra”, lembraria Gygax mais tarde.
Arneson foi o próximo. Um jovem corpulento, de óculos, alguns anos mais novo que Gygax, com um sorriso grande e travesso, ele os lançou em algo muito diferente. Os jogadores tinham que criar personagens e dar-lhes atributos que determinassem o quão fortes ou inteligentes eles eram. Esses atributos os ajudariam quando atacassem monstros ou tentassem resolver quebra-cabeças no jogo. Uma vez criados os personagens, o jogo começaria.
Os jogadores representariam os papéis dos personagens enquanto vagavam pelos pântanos do assombrado Castelo Blackmoor, fazendo o possível para permanecerem vivos. Arneson desempenharia o papel divino de mestre do jogo, contando a história do que estava acontecendo com os personagens por todo o tempo e deixando que eles decidissem em grupo o que fazer a seguir. Eles lutariam contra o monstro? Eles fugiriam? Será que um membro do grupo roubaria o tesouro de todos e sairia de fininho para um esconderijo?
[O jogo] era meio aleatório. Arneson mantinha regras rabiscadas em um caderno cheio de folhas soltas de papel, e qualquer coisa que ele não soubesse, simplesmente inventava na hora. Ele vinha fazendo isso com seu próprio grupo de jogadores há quase um ano em Minneapolis e se sentia confortável em usar suas regras como uma estrutura para guiar a natureza improvisada da narrativa do jogo.
“Nas profundezas dos pântanos primitivos do Lago Gloomey, envolta em névoa perpétua, encontra-se a cidade dos Irmãos do Pântano”, ele começou, e o grupo de aventureiros partiu.
Quando se encerrou o final de semana, Gygax e o resto da multidão de Lake Geneva estavam entusiasmados. Coletivamente, eles viram a experiência de jogos de mesa, o cenário de exploração de masmorras subterrâneas e esse modo improvisado de interpretação de papéis se transformando em algo novo. Arneson deu a Gygax cópias de suas anotações para trabalhar, e Gygax começou a criar um conjunto completo de regras, extraindo das [anotações de Arneson] e de Chainmail, e criando novos elementos para preencher os espaços em branco. Quando terminou o rascunho do livro de regras de 150 páginas no início do ano seguinte e começou a mostrá-lo a seus amigos, ele já tinha um nome para o novo jogo: Dungeons & Dragons.
“Estávamos nos divertindo muito, mas achamos que éramos loucos”, disse Arneson anos depois. “Não tínhamos ideia de que isso se tornaria algo tão grande”.
Esse texto é uma livre tradução do prólogo do livro “Dungeons & Dreamers: A story of how computer games created a global community”, escrito por Brad King and John Borland, em 2014, sem versão em português do Brasil.
Imagem: fotomontagem