A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Por Sullivan Martinelli - Drops de Jogos

A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Por Sullivan Martinelli

Como Resident Evil 4 reflete estereótipos de gênero — e por que isso ainda importa nos games

A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Foto: Reprodução/YouTube

A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Foto: Reprodução/YouTube

Por Sullivan Martinelli, Sullz Player, comunicador independente e YouTuber.

No vídeo publicado recentemente no canal Sullz Player, discutimos como a personagem Ashley Graham, de Resident Evil 4, é tratada mais como um objeto do olhar masculino do que como uma figura com agência própria. Inspirado no TCC da criadora Giselle Lima, do canal Divã Literário — que gentilmente nos autorizou a desenvolver esse conteúdo —, o vídeo propõe uma reflexão sobre como os games, mesmo títulos consagrados, ainda perpetuam representações femininas ultrapassadas.

Neste artigo, vamos expandir essa conversa. A ideia aqui não é “cancelar” um clássico, forçar polêmica em um jogo de 20 anos ou fazer uma crítica rasa, mas usar esse exemplo como espelho: para entender como certos padrões foram normalizados e continuam se repetindo — muitas vezes sem questionamento — tanto na indústria dos games quanto na cultura pop como um todo.

A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Foto: Reprodução/YouTube

A Objetificação de Ashley e o Problema da Representação Feminina nos Games. Foto: Reprodução/YouTube

Ashley foi Pensada como Objeto do Olhar Masculino

No jogo original de 2005, Ashley Graham é apresentada como a filha do presidente dos Estados Unidos. A missão do protagonista, Leon S. Kennedy, é encontrá-la e resgatá-la. Mas, como mostramos no vídeo, o papel de Ashley começa a desmoronar quando ela passa a ser retratada como uma figura passiva e sexualizada, cercada por personagens masculinos que disputam o controle sobre ela.

Ashley é sequestrada, infectada, usada como isca e tratada como moeda de troca por figuras como Saddler e Krauser. Até mesmo Leon — que deveria ser seu agente de resgate — é escrito com falas e interações que flertam com uma Ashley vulnerável, hipersexualizada e, ao mesmo tempo, infantilizada — o que convenhamos…

Ela raramente toma decisões, quase não age por conta própria e tampouco possui um arco narrativo. Sua função é ser carregada, protegida e constantemente reposicionada dentro da trama — poderia ser facilmente substituída por uma mochila, um cone ou um pacote de encomenda. A diferença é que ela funciona como uma espécie de sirene humana, constantemente em perigo, irritando o jogador e afastando qualquer possibilidade de empatia ou conexão emocional.

Sexualização como Produto e Mensagem

No vídeo, também discutimos como o design visual e sonoro de Ashley reforça sua objetificação. Sua roupa curta, o colete apertado e a voz aguda não são detalhes aleatórios — são escolhas deliberadas, criadas para atender a um apelo claro: o olhar masculino. Essa fragilidade encenada, combinada com a forma como ela é retratada (gritando, se escondendo, sendo constantemente salva), transforma Ashley em um símbolo, uma “mensagem” de representação feminina que, infelizmente, ainda persiste com certa frequência nos videogames.

Cenas como aquela em que Leon ajuda Ashley a descer de uma plataforma — e que dispara diálogos secretos caso o jogador mire sob sua saia — são um exemplo claro do uso do male gaze. Esse recurso transforma Ashley, e outras personagens femininas, em objetos de desejo, e não em sujeitos da narrativa, o que é uma pena por ser um desperdício de potenciais grandes histórias.

Não é “Mimimi”… É Sobre Não Normalizar!

Uma das críticas mais comuns a esse tipo de análise é a acusação de “mimimi” ou que estamos “problematizando demais”. Mas, como abordamos no vídeo, o problema vai além da sexualização e objetificação. O que está em jogo aqui é o fato de que esse tipo de representação se torna um padrão repetido a ponto de ser visto como normal, enquanto personagens femininas bem construídas e complexas são a exceção, e não a regra.

Esse é um dos elementos que perpetua estruturas sexistas — tanto na ficção quanto na vida real. E é justamente por isso que precisamos questionar e refletir sobre essas representações, mesmo quando estamos falando de um clássico amado como Resident Evil 4. Não se trata de criar polêmica sem sentido, mas de evitar que padrões prejudiciais continuem sendo passados como normais, sem questionamento.

Avanços, Retrocessos e Exemplos Mais Recentes

Felizmente, a indústria dos games tem feito avanços importantes. No vídeo, destacamos personagens como Ellie (de The Last of Us) e Aloy (de Horizon Zero Dawn), que são exemplos claros de protagonistas complexas. Elas não apenas têm histórias próprias, mas também fazem escolhas que impactam suas jornadas, além de apresentarem profundidade emocional e riqueza de personalidade.

No entanto, ainda vemos retrocessos, como no caso de Stellar Blade. A protagonista, apesar de carismática e interessante, é retratada de forma excessivamente sensual, com roupas mínimas e poses sexualizadas. O problema não é a sensualidade em si, mas o fato de que ela acaba sendo a principal — ou até a única — característica da personagem, ofuscando outras camadas da sua construção e narrativa.

E, claro, além do limite da legalidade, não podemos esquecer de exemplos mais polêmicos, como No Mercy, um jogo que foi removido da Steam por ser essencialmente um simulador de estupro.

Por Que Essa Discussão Importa?

Discutir a representação feminina nos games não é frescura nem exagero. É pensar criticamente sobre o que estamos consumindo e como esses conteúdos moldam, de forma direta ou indireta, nossa visão de mundo. Quando os mesmos estereótipos são repetidos à exaustão, o público aprende — mesmo que sem perceber — a naturalizar certas ideias sobre o que uma mulher pode ou deve ser. Isso se reflete na vida real, no mercado de trabalho, nas relações sociais e até dentro da própria indústria de jogos, onde mulheres desenvolvedoras ainda enfrentam resistência e preconceito.

Resident Evil 4 é um jogo memorável, sem dúvida. Mas também é um retrato fiel de uma época em que as mulheres, nos videogames, eram quase sempre colocadas em posições de fragilidade, sensualização e passividade. Ao discutirmos a sexualização e objetificação de personagens como Ashley, não estamos apenas analisando um jogo antigo — estamos refletindo sobre como esses padrões se repetem na indústria de games e na cultura pop, criando um ciclo difícil de quebrar.

Se quisermos que os games evoluam como forma de arte — e como espelho da sociedade — precisamos questionar esses padrões e promover representações mais diversas, realistas e respeitosas. No vídeo, fizemos esse convite à reflexão, e aqui reforçamos: o problema não é Ashley existir como ela é. O problema é ela continuar sendo a norma.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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