por Rafael Silva*
Skeleton Crew estreou no Disney+ na última terça (03) com o que talvez seja a trama mais fácil de explicar de qualquer série Star Wars (basicamente Goonies no espaço), mas o que mais me chamou atenção mesmo foi todo o desenvolvimento do mundo mostrado no primeiro episódio.
Uma das coisas mais estranhas de Star Wars é que, apesar de se passar em um universo com tecnologia muito mais avançada do que a nossa, ele não é uma história de ficção científica. Na verdade, se formos classificar Star Wars como um gênero estrito, ele estaria muito mais próximo de uma fantasia cyber-medieval. Afinal, não há aqui uma utopia – ou mesmo distopia – que caracteriza as sociedades que normalmente encontramos nas histórias de ficção científica. Apesar do conflito principal ser – de acordo com o próprio George Lucas – um eco da Guerra do Vietnã, a parte como a sociedade em si funciona é tão próxima do feudalismo que este é talvez o universo de ficção científica mais fácil de se adaptar histórias de samurai e de cowboys. Você não precisa nem se esforçar muito pra isso, como a série The Mandalorian pode provar: faça uma história tradicional de cowboys, e ela se encaixa como uma luva em Star Wars.
E, muito por causa disso, nenhum dos locais mostrados parece ser exatamente um bom lugar para se viver: ou estamos em planetas desertos e cheios de miséria como Tatooine, ou em verdadeiras favelas futuristas como as G17 Slums. Mesmo quando visitamos as áreas mais ricas de Coruscant, onde ficam o Senado Galáctico e o Templo Jedi, tudo é tão opulento e exagerado que parece aquele tipo de lugar que é até legal de visitar numa excursão de escola, mas que não parece nem um pouco confortável para se viver.
*ATENÇÃO: a partir daqui este texto pode conter spoilers de Skeleton Crew
Essa tradição é quebrada no primeiro episódio de Skeleton Crew, que nos mostra a versão Star Wars do “sonho americano”: pela primeira vez vemos o interior de casas que se parecem com um lar, e não mais um local onde as pessoas dormem; vemos ruas que claramente fazem parte de um bairro planejado, jardins cheios de grama, um sistema de transporte coletivo que funciona com eficiência. E talvez seja a primeira vez em Star Wars que vemos uma escola de verdade: não uma salinha com meia dúzia de crianças brandindo sabres de luz e tentando mover xícaras com a força da mente, mas uma escola com salas de aula, armários, corredores, carteiras e crianças normais, que sonham em um dia terem empregos como analistas de sistemas solares ou técnico de sistemas de navegação interplanetários.
Ao mesmo tempo que cenas de 50 crianças dentro de uma sala de aula, todas em seu próprio mundo ignorando o professor dróide que está na frente de uma lousa em touch screen tentando ensinar sobre cálculo aeroespacial me deixou estasiado como fã de Star Wars, ela também me deixou um tanto preocupado. Não pelas implicações na obra – afinal, o que faz de Star Wars uma fantasia cyber-medieval tão intrigante é que a obra nunca teve intenção de nos mostrar possibilidades de futuro (algo que é mais comum na franquia Star Trek), mas em recriar as mesmas situações e problemas terrenos em uma outra galáxia, onde o avanço tecnológico foi diferente do nosso, mas também onde isso influenciou em quase nada os avanços como sociedade. Mas eu fico preocupado pelo que ela pode significar no nosso mundo real.
Porque eu fiquei um tanto aterrorizado em perceber que aquilo que eu estava vendo em tela era o sonho imaginado por muitos dos futuristas e defensores de uso de inteligências artificiais para tudo. Não que eu seja contrário às IAs, mas eu sou totalmente contrário à forma como temos pensado nosso futuro, onde ao invés de pensar novos sistemas queremos apenas enfiar as novas tecnologias como um substituto humano – aquela velha história de “mudar para se deixar tudo como está”.
Porque eu tenho certeza que muita gente vai ver esse episódio de Skeleton Crew e ficar com as calças molhadas de excitação: afinal, nessa sociedade idílica de Star Wars, dróides (o nome de Star Wars para robôs comandados por IA) fazem todo o trabalho de cuidado com as crianças (são eles os professores, diretores, inspetores e babás) para que os pais dessas crianças possam passar o dia inteiro nos escritórios em tarefas de compilação de dados e cálculos numéricos.
Em uma sociedade inteligente, esses papéis seriam invertidos: os robôs fariam as tarefas repetitivas envolvendo cálculos e dados, enquanto humanos ficariam com as responsabilidades que envolvem criatividade e educação. Mas não é assim que funciona em Star Wars e, o que me dá mais medo, é que não é assim que nós temos imaginado o nosso futuro por aqui.
Nós temos uma enorme tara em querer usar a IA para substituir atividades como escrita, desenho, dublagem, tradução, gravação de vídeos e o papel de tutor na educação das próximas gerações, e damos pouca atenção para iniciativas que realmente usariam ao máximo a capacidade das IAs que realmente é superior à humana: analisar dados, encontrar padrões e oferecer previsões baseadas em dados para auxiliar na tomada de decisões.
Toda vez que ouço alguém discutir sobre futuro eu sinto dentro de mim uma enorme decepção, porque quase sempre a discussão passa apenas pela superfície de tudo – como as novas tecnologias podem tornar o ser humano obsoleto e substituir ele com muito mais eficiência – ao invés de discutirmos a real questão de tudo, que é como essas tecnologias podem ser usadas para se criar um mundo mais justo para todos.
Meu sonho é que o modelo de mundo idílico onde salas de aula com dezenas de alunos entediados devem ficar horas e horas ouvindo uma lição dada por um robô com voz monotônica em frente a uma enorme tela na parede seja apenas uma crítica à nossa sociedade feita por um roteirista mal pago por Hollywood e animada por uma série de especialistas em efeitos computacionais que também são mal pagos pelos CEOs das produtoras onde eles trabalham. Mas, infelizmente, essa parece ser a realidade que muitos dos CEOs do mundo real desejam para nós.
*Rafael Silva é jornalista desde 2017. Cresceu lendo revistinhas de videogame, entrou numa noia quando percebeu que o “jornagames” ainda era feito para adolescentes que só tinham interesse de discutir qual console era melhor, e agora está numa missão de vingança para resolver isso com as próprias mãos.
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