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Uma das coisas que eu mais gosto dos videogames é a possibilidade única que eles têm de nos permitir fazer parte de nossas maiores fantasias. E o “fazer parte” aqui é de verdade: enquanto as artes sempre nos permitiram realizar metaforicamente parte de nossas fantasias, isso sempre foi uma experiência passiva. Com os videogames é diferente: você não está assistindo a história de um pirata, vendo uma bela cena de pirataria ou lendo sobre as ações de um pirata – você É o pirata.
Mas, quando envelhecemos, nossos sonhos costumam ficar cada vez menos “selvagens”. Ao invés de questões como “e seu eu fosse um pirata?”, você começa a fantasiar com coisas como “e se eu trocasse de carreira?”, “e se eu voltasse a morar com meus pais?” ou ainda “e se eu simplesmente fugir pra algum lugar onde ninguém me conhece, não contasse pra ninguém pra onde eu fui e recomeçasse a minha vida do zero?”. Te falar, eu escolheria 11 vezes de 10 ter que peitar toda a Companhia das Índias Ocidentais do que continuar diariamente lutando contra esse tipo de pensamento.
Mas, cada vez mais próximo dos 40, é este o tipo de “fantasia” que passa pela minha cabeça todos os dias. E me dou conta de uma certa incapacidade dos videogames me ajudar com essas fantasias: de que adianta os jogos permitirem que eu sinta como é ser um piloto profissional da Fórmula 1 quando eu não sei se vou conseguir pagar o IPVA daqui uns meses? Ou me colocar na pele de líder revolucionario quando tem dias que eu não me sinto capaz de liderar a minha bunda pra levantar da cama?
Chega uma época da vida que os jogos parecem incapazes de saciar as fantasias que a gente tem – pelo menos até a gente achar o jogo que consegue.
Foi essa a sensação que eu tive ao descobrir o jogo Lake. Desenvolvido pela Gamious – um pequeno estúdio independente holandês – e lançado em 2021, o jogo oferece o tipo de fantasia que eu procurava nessa fase da vida: se você tivesse a oportunidade de começar uma nova vida do zero, o que você faria?
O jogo se passa em 1986, mas conta uma história que ainda é muito atual pra qualquer pessoa passando por uma crise profissional na meia-idade. Nela você assume o controle de Meredith Weiss, uma desenvolvedora de softwares que atua numa grande empresa dentro de uma cidade grande, e que se sente altamente estressada por toda a correria do trabalho. Buscando uma pausa para recuperar as energias, ela aceita tirar duas semanas de folga para voltar à Providence Oaks, uma cidadezinha onde ela nasceu e que tem tudo aquilo que você imagina de uma cidade de interior com menos de mil habitantes: uma ampla área de floresta, montanhas, um enorme lago e apenas uma única loja e restaurante para suprir a cidade toda.
Meredith volta para essa cidade não apenas para descansar, fazer um test-drive de uma nova vida: aproveitando que os pais foram fazer uma viagem à praia, ela passa esse tempo morando sozinha na casa onde foi criada durante toda a infância e assumindo a profissão do pai dela, que é o carteiro local.
E é justamente nesse ponto que Lake se torna um enorme simulador de crise da meia-idade, pois o jogo oferece um mergulho em todas aquelas fantasias que temos nesse período: e se eu voltasse para a minha cidade natal e mudasse de emprego – talvez para um com responsabilidades menores e sem tanto cobrança? Será que essa mudança de ares faria bem pra mim? Será que essa mudança de ritmo me ajudaria a lidar melhor com as minhas frustrações como pessoa? Será que me reconectar com pessoas que ficaram no passado me faria bem? Será que dar um passo atrás é justamente aquilo que eu preciso para fazer minha vida andar pra frente?
Tudo isso regado a um gameplay extremamente relaxante, que consiste em dirigir um furgão fazendo entregas pela cidade, e à noite escolher se quer ficar em casa relaxando ou ir socializar no único restaurante/bar da cidade. Tudo isso em um ambiente de paisagens tão bucólicas que parecem saídas de um daqueles quadros que você encontra enfeitando qualquer restaurante que tem como slogan a frase “comida de forno à lenha igual a da fazenda”, e uma trilha sonora toda de composições indie/folk que são tão relaxantes pra cabeça quanto as melhores playlists lo-fi.
E como uma boa power fantasy, no fim Lake não te dá resposta, mas oferece uma pergunta: se todos os caminhos estiverem abertos, qual é a sua escolha? E é exatamente isso que o jogo te oferece: horas de relaxamento e a ilusão impressão que você sempre tem mais do que apenas um único caminho para seguir na vida. E não importa se você decide continuar levando uma vida de estresse na cidade grande, recomeçar tudo em marcha mais lenta numa cidadezinha de interior ou mesmo jogar tudo pro alto, cair na estrada e ir descobrindo a cada novo dia o que a vida lhe reserva. O importante aqui é que não existem escolhas erradas, mas você precisa escolher um caminho.
E pode acreditar: se você também estiver passando por uma crise de meia-idade como eu estava, essa possibilidade de escolha é algo que vai te fazer se sentir muito mais poderoso do que qualquer espada mágica.
Lake está disponível para PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series S/X, Nintendo Switch e PC.
*Rafael é jornalista desde 2017. Cresceu lendo revistinhas de videogame, entrou numa noia quando percebeu que o “jornagames” ainda era feito pra adolescentes que só tinham interesse de discutir qual console era melhor, e agora está numa missão de vingança para resolver isso com as próprias mãos.
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