Essa semana onde todo mundo continua comentando sobre The Last of Us, eu quero de novo levantar uma discussão sobre outra coisa envolvendo esse jogo/série: a dificuldade que nós temos como sociedade em aceitar que nem tudo que existe numa narrativa é verdade absoluta.
E aqui eu quero trazer uma das discussões que volta e meia sempre retornam nas redes sociais: se Joel estava certo ou não em ter salvo Ellie no fim do primeiro jogo/primeira temporada da série.
Você provavelmente se lembra disso: quando finalmente chega no laboratório dos Vagalumes que iria usar uma parte do cérebro da Ellie para criar uma vacina contra fungo que transformou o mundo em zumbis, a ficha finalmente cai para ele de que, para criar essa vacina, os médicos precisam matar a garota. Ele então corre para arrancar ela da cirurgia e fugir dali, matando algumas dezenas de membros dos Vagalumes no processo.
Desde o lançamento do jogo em 2013 as redes sociais são palco de uma discussão sem fim sobre se Joel estava ou não errado no que fez. E os argumentos meio que se resumem em dois: ele está certo porque a Ellie virou uma espécie de filha e ele não quer passar de novo pelo mesmo trauma do início do jogo, e que um pai deve colocar a segurança do filho acima de qualquer outra coisa; ele está errado porque esse ato de egoísmo de não querer sacrificar a menina acabou por selar o destino de toda a humanidade e acabar com qualquer esperança do mundo voltar ao normal.
A decisão de Joel é basicamente o paradoxo do bonde, onde ele está no papel da pessoa que deve escolher entre sacrificar uma vida para salvar muitas, ou sacrificar muitas para salvar uma. E aí a gente tem uma mistura de argumentos emocionais, que colocam como foco o vínculo entre pai e filha que os personagens criaram entre si e como manter este vínculo é mais importante que tudo; e argumentos racionais, que pregam o sacrifício de um para salvar muitos é uma barganha, um preço que nenhuma pessoa de bem deveria ter receio de pagar.
Mas eu tenho um problema com ambos esses argumentos. E o meu problema é que ambos se baseiam no conceito de que a história de criar uma vacina que vai salvar o mundo a partir do cérebro da Ellie é uma verdade absoluta.
The Last of Us não é uma narrativa tradicional
Ainda que eu tenha meus problemas com The Last of Us como um todo, ele possui uma grande qualidade narrativa que é não tratar tudo como uma ficção padrão. Os personagens agem por motivos mesquinhos, ou sem motivo nenhum, ou por motivos que a gente não consegue entender direito nem depois de muito tempo, porque é assim que as pessoas agem na vida real.
Tem gente que vai te matar pra roubar seu relógio, tem quem vai te matar porque não gosta de você, tem quem vai te matar porque você é a primeira pessoa que passou na frente dele depois que bateu o dedinho na quina da mesa, tem quem vai te matar porque sua aura não bateu com a dele, tem quem vai te matar pra vingar a família. Os motivos de porque as pessoas fazem o que fazem são muito variáveis e muitas vezes não fazemos nem ideia do porquê.
E é este tipo de abordagem que torna a forma como a história é contada em The Last of Us interessante, pois ninguém ali é exatamente herói ou vilão. São todas pessoas tentando viver suas vidas da forma como conseguem.
E é por isso que eu acho uma leitura muito errada de todos os eventos considerar o conceito de “vacina com o cérebro da Ellie” como uma verdade absoluta, porque provavelmente não é.
Primeiro, porque há uma espécie de “presságio” dentro do próprio jogo: bem no comecinho de The Last of Us, quando Joel é explicado sobre a importância de levar Ellie para o QG dos Vagalumes, ele chega a pedir uma explicação de como essa é diferente das outras tentativas. Ou seja, já houve outras receitas de “vacinas” contra a infecção fungal que não deram certo. E só isso já deveria ser o suficiente para não levarmos esse conceito como uma verdade absoluta.
Segundo, há a verdade científica: dificilmente uma vacina vai funcionar logo de cara. É preciso anos de pesquisas e testes para garantir seu funcionamento, além de descobrir a forma mais eficiente de aplicação, armazenamento e transporte – uma logística que já é complicada mesmo em um mundo sem zumbis.
Então, havia uma boa possibilidade de retirarem a parte do cérebro da Ellie, não conseguirem replicar aquelas células o suficiente para fazer todos os testes necessários, ou descobrirem uma vacina que funciona, mas que não é possível transportar para fora do laboratório e manter sua eficiência porque não existem mais as condições necessárias para esse transporte.
E terceiro, há a verdade narrativa: nada no mundo de The Last of Us é certo, “preto no branco”. Então porque justamente o conceito de uma vacina que vai acabar com todos os problemas do mundo seria algo real, e não um devaneio, uma lenda, uma esperança baseada em nada concreto?
É por isso que eu acho que aquela coisa de “Joel está certo ou errado” não deveria nem ser uma discussão. Porque ainda que ele pareça estar no controle da alavanca do paradoxo do bonde, ele na verdade não tinha uma escolha. Ele já tinha pescado que a promessa de criar uma vacina a partir da Ellie eram apenas isso: uma promessa, uma esperança, não uma certeza.
E isso ficou ainda mais claro a hora que ele viu o estado da base dos Vagalumes. Eles mal tinham condições de manter um hospital funcionando na forma mais básica possível – nunca que seria este o grupo que conseguiria desenvolver e distribuir a vacina que iria salvar o mundo.
Falta amor, mas falta muito mais (aprender a como fazer uma) interpretação de texto
Mas por que a gente discute isso até hoje? Não sei dizer, mas tenho um palpite de que isso tem a ver com a forma como os videogames sempre são apresentados pra gente. Jogos normalmente são bem literais até mesmo em seus absurdos: se um jogo fala que você precisa achar o cálice sagrado com o sangue de Cristo que está escondido num calabouço secreto embaixo da capela de Nossa Senhora das Dores em Piraporinha da Serra, você provavelmente vai encontrar tudo isso. Talvez o cálice com o sangue de Cristo não esteja exatamente no calabouço, mas você VAI achar um calabouço secreto embaixo da capela de Nossa Senhora das Dores em Piraporinha da Serra, e provavelmente esse lugar vai ter uma pista para onde o cálice está escondido.
Narrativas de videogame não costumam trabalhar com esperanças vazias e mentiras, porque normalmente essas narrativas usam a esperança como um objetivo real, e não uma desculpa para que os personagens façam o que precisa ser feito. Até porque não podemos esquecer que em The Last of Us Joel não acha que vai salvar o mundo, ele apenas está levando uma “mercadoria” até um lugar X para ser pago. Esse sentimento até muda durante a viagem, mas ele nunca abraçou a ideia de que estava em uma missão por “algo maior”.
E, mais uma vez, o meu problema com The Last of Us aqui não está necessariamente no jogo em si, mas na reação das pessoas a tudo o que acontece nele. E a discussão de “Joel está certo ou não” é um perfeito exemplo disso: são doze anos do fandom discutindo algo que nem deveria ser uma discussão. E tudo porque o gamer, em geral, não foi ensinado a duvidar das coisas que o jogo diz pra ele.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.