Uma das tretas mais antigas do universo dos games está nas biografias dos rivais Ralph Baer e Nolan Bushnell. Baer pode ser descrito, de forma suscinta, como o criador dos vídeo games, a partir da invenção e lançamento de seu Odyssey, para televisores domésticos, em 1972. Bushnell está mais para o criador da indústria dos games, pelo lançamento dos inovadores arcades Computer Space e Pong, do dispositivo Pong para televisores e pelo bem-sucedido console de jogos do início da história dos games: o Atari VCS 2600.
Embora a sentença acima pareça resolver a questão – colocando cada criador em seu ‘quadrado’ – o assunto está longe de apresentar consenso e os dois idealizadores do entretenimento lúdico eletroeletrônico jamais aceitaram o protagonismo de um e de outro. Suas histórias também se entrelaçam em mais de uma ocasião nesse histórico, com cenas que parecem tiradas diretamente de filmes de espionagem industrial.
Suas contribuições para a atualidade do mercado de jogos, no entanto, é incontestável, como veremos.
Na obra Video Game Explsion: from Pong to Xbox, de 2008, editado por Mark J. P. Wolf, o escritor David Winter resgata parte dessa história entre os desenvolvedores, demonstrando suas inter-relações perigosas:
“Em 1966, Ralph Baer, um engenheiro eletrônico que trabalhava na Sanders Associates, pensou em uma ideia que havia lhe ocorrido em 1951, quando haviam lhe pedido para construir um conjunto para TVs: a possibilidade de usar esse dispositivo para algo mais do que assistir à transmissão [dos canais]. Após escrever suas ideias de jogo para TV em um papel, ele começou a construir um protótipo para ver se alguma coisa poderia ser desenhada eletronicamente na tela da TV. Logo, um jogo de perseguição havia sido projetado. Depois de alguns aperfeiçoamentos, muitos outros protótipos foram construídos entre 1966 e 1968, sendo o mais completo o Brown Box, uma caixa com chassis duplos coberta com adesivo semelhante a madeira. O melhor game projetado em 1968 era Tennis, um jogo de bola e raquete, que mais tarde a Atari aperfeiçoaria e venderia sob o nome de Pong.”
Como se vê, os créditos vão para Baer, como precursor da novidade, nas considerações do autor.
Na introdução de seu livro, Videogames, In the Beggining, de 2005, Ralph Baer também aborda o tema, sob seu ponto de vista: “Nolan Bushnell, que se tornaria presidente da Atari, a empresa de videogames mais bem-sucedida da década de 1970, jogava esses jogos de computador [Baer se refere aos primeiros experimentos com o mainframe PDP-80] na Universidade de Utah; ele teve uma nova ideia no final dos anos 1960: fazer jogos do tipo Spacewar para os bares e fliperamas deste mundo… isso deve ser muito mais divertido do que jogar pinball. E assim aconteceu. A tecnologia de Circuito Integrado (I.C.) estava pronta; os microprocessadores estavam se tornando mais do que apenas um brilho nos olhos de um engenheiro e estavam ficando mais baratos a cada mês. A Atari aproveitou isso.”
Na sequência, o engenheiro de origem judaica retoma seu insight para a interação lúdica com televisores: “Vários anos antes disso acontecer, eu apareci e fiz um inventário mental de todas aquelas centenas de milhões de aparelhos de TV em todo o mundo que não faziam nada além de exibir qualquer coisa que as estações locais transmitissem. Tive uma inspiração – um Eureka! – e os Home TV Games nasceram… um pouco cedo, tecnicamente, porque os microprocessadores de baixo custo ainda não estavam disponíveis e os CIs [circuitos integrados] digitais ainda eram muito caros, então os jogos tinham que ser relativamente primitivos. Mas nossa Brown Box, de 1968, a última de uma série de máquinas de videogame domésticas que construímos na Sanders Associates entre 1966 e 1968, ainda funciona hoje e o jogo de pingue-pongue que ocasionalmente jogamos continua divertido! O mesmo acontece com o jogo de handebol e os jogos que exigem que os jogadores atirem em alvos, em movimento ou não.”
Em entrevista concedida a esse editor de conteúdo do Drops de Jogos, em 2013, Bushnell comentou as ideias surgidas antes do lançamento de Pong e explica que, antes de produzir o arcade Pong, surgiu o interesse em construir uma máquina com uma central de processamento a partir de um computador Data General Nova, com quatro monitores simultâneos para batalhas em grupo no estilo de Spacewar. Embora verdadeiramente revolucionário, o conceito não funcionava na prática, como explicou na reportagem: “Teria sido realmente genial fazer esse equipamento, mas o problema era que os computadores eram muito lentos na época. O computador com o qual eu estava trabalhando custava quase US$ 4 mil, e tinha uma velocidade de clock de 5 mil kiloheartz – não megaheartz – kiloheartz! Eram realmente muito vagarosos e impossíveis de fazer funcionar aquela ideia”, observou, com muito bom humor.
À revista masculina Playboy, em 1983, Bushnell deu uma versão diferente para a criação de seu primeiro sucesso comercial com jogos digitais: “Nós íamos construir um jogo de corrida, mas eu achei que era um passo muito grande para ele [Al Alcorn] dar, sem saber [exatamente ainda] o que era um vídeo game. Então, defini o jogo mais simples no qual pude pensar, que era um jogo de tênis e disse a ele para construi-lo […] quando ele ficou pronto e rodando, mostrou-se tremendamente divertido.” A informação foi reproduzida pelo site Salon.
“Uma lâmpada deve ter acendido na cabeça de Bushnell no momento em que ele jogou Ping-Pong [na exibição pública do Odyssey, em 1972]: ‘deixe [o jogo] simples'”, escreveu Baer. “Essa decisão teria sido tomada se o Sr. Bushnell não tivesse comparecido à apresentação da Magnavox, onde ele jogou Odyssey com as próprias mãos? Qual a probabilidade disso? Como sabemos, o Al Alcorn fez um excelente trabalho. O primeiro desenvolvimento do Pong se saiu muito bem no bar do Al Capp, em agosto de 1972”, avaliou.
Em uma troca de mensagens entre os dois criadores de jogos, Bushnell deixa claras suas impressões sobre as questões jurídicas de suas realizações: “A meu ver, você inventou o Odyssey. Você viu meu registro de laboratório [lab book] e viu a lista de jogos e descrições que claramente tinham um jogo de tênis listado muito antes de eu ver seu jogo em Burlingame. Eu ainda acredito que as suas ‘formas de reivindicação’ nas patentes foram claramente barradas por causa das artes preliminares [dos jogos do Odyssey]. Nenhum de nós jamais usou algo parecido com o seu circuito. Seu jogo claramente estava em minha mente quando dei o projeto a Alcorn. Achei que o Odyssey não era muito divertido e que poderíamos torná-lo melhor. Como você se lembra, meu jogo de tênis postulava uma bola quicando mais como Higgenbothem [havia concebido], embora eu não soubesse sobre ele na época. Sua maneira direta na tela era um jeito interessante de jogar. Se o Odyssey fosse divertido, você nunca teria que reivindicar a invenção do Pong. É um jogo muito diferente. Você deveria me agradecer porque a maioria das pessoas que compraram Odyssey pensaram que estavam comprando um Pong para casa. A Odyssey dificultou muito o lançamento do Pong doméstico porque as pessoas perceberam que era um fracasso”, escreveu o pai do Pong, segundo o site The Game Scholar.
Steve Bristow, um dos pioneiros profissionais da Atari, também escreveu para Baer, com suas considerações sobre as acusações do pai do Genius: “Embora eu ache incorreto [você] ter obtido uma patente para o jogo que fizemos no Touch Me […] também reconheço totalmente e estou impressionado com o seu trabalho contínuo na invenção de novidades e a maneira como você conseguiu fazer coisas novas e colocá-las em produção. Só posso desejar que você continue com saúde e sucesso em trabalhar em coisas novas, pois é isso que conta. Eu não sabia sobre seu contato com Nolan. Ele tem seus próprios atributos e percepções sociais.”
“Ralph Baer gosta de afirmar que ele inventou Pong, o que ele não fez, Ele inventou Odyssey, que foi um fracasso de marketing. Aconteceu de Pong se transformar em um sucesso, então, ele gosta de afirmar isso. Eu acho isso errado”, queixou-se Bushnell, conforme registrado na obra Vintage Games 2.0: An insider Look at the Most Influential Games of All Time, escrita por Matt Barton, em 2019. O autor continua, narrando os desdobramentos da rivalidade entre ambos os criadores e suas produções: “Em um clássico ‘virar o jogo é parte do jogo’, Baer lançou o bem sucedido brinquedo Simon [conhecido por aqui como Genius], em 1978, que era basicamente uma versão portátil do jogo de arcade Touch Me, da Atari, de 1974.”
Essa passagem de Barton nos traz para o segundo ponto desse artigo: a similaridade entre os jogos baseados em ritmo Touch Me e Simon e o fato de um não ter sido criado sem a existência do outro.
“Um dos primeiros jogos eletrônicos de ação baseada em ritmo é comumente apontado como sendo o Touch Me, da Atari, mas foi o Simon, da Milton Bradley quem primeiro viu um grande sucesso comercial”, descreveu Mark J. P. Wolf em outra obra, seu livro Encyclopedia of Video Games: The Culture, Technology and Art of Gaming, de 2012.
Ambos os jogos foram baseados nos mesmos princípios, a partir da utilização de quatro botões e quatro fontes luminosas. Cada luz e cada botão têm um som associado. O jogo pisca a luz e toca o som em um padrão específico. O jogador deve repetir esse padrão, tocando os botões no ritmo apresentado pelo sistema do jogo.
“Em 1978, Simon, projetado pelo pioneiro dos jogos de televisão Ralph Baer, chegou ao mercado. Foi um jogo de imitar [movimentos] que imitou o jogo de arcade Atari Touch Me, mas expandiu-o incluindo botões coloridos, som aprimorado e, claro, um formato menor e bem diferente. Foi fabricado e vendido pela [fabricante de brinquedos] Milton Bradley, uma empresa mais famosa pelo jogo de tabuleiro Life, publicado pela primeira vez em 1860”, nos conta o texto presente no livro Racing the Beam: The Atari Video Computer System, editado por Ian Bogost and Nick Montfort, em 2009.
Qualquer pessoa familiarizada com Simon sabe que o som foi a chave para seu sucesso. Além das cores vibrantes, cada botão individual também tinha seu próprio som distinto, para que jogadores com habilidades auditivas mais apuradas também tivessem a chance de se sair bem no jogo. Touch Me teve a ideia certa, mas seus botões pequenos e tamanho diminuto, em comparação com a forma redonda e os grandes botões de Simon, impediram que ele se tornasse um jogo que pudesse ser curtido por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, algo que a Atari sempre buscado em seus primeiros anos. Consequentemente, Simon se tornou o padrão e Touch Me, que virou um mini-console na mesma época do lançamento do brinquedo da Milton Bradley, foi considerado uma usurpação do Simon ‘original’ pelos consumidores naquele ano.
Touch Me foi um dos primeiros trabalhos de design de Steve Jobs, que foi contratado como o 40º funcionário da Atari, para exercer a função de técnico, consertando e ajustando projetos de placas de circuito impresso. “Acho que ele gostou de alguns dos jogos que ajudou a finalizar e adicionar toques finais, como o jogo ‘Simon’ onde você jogava apertando botões e ele tocava tons, e você tinha que repeti-los. Os botões acendiam e você tentava copiar o padrão”, comentou Steve Wozniac, rememorando a participação de Jobs no projeto. “Touch Me, sim”, responde Steve Wozniac ao repórter Benj Edwards, da Game Developer, na entrevista sobre a presença do parceiro na Atari, confirmando o trabalho de Jobs nesse projeto.
Baer também abordou a dualidade Touch Me/Simon em seu livro, relatando a bem-sucedida atualização do projeto original da Atari: “Em novembro de 1976, eu estava em Chicago assistindo a uma apresentação da MOA (Music Operators of America) sobre os arcades coins-ops [máquinas operadas por moedas]. Eu ia a esses shows rotineiramente em nome da Sanders e da Magnavox para verificar a presença de jogos que poderiam estar infringindo nossas patentes, para as quais a Magnavox era nosso principal licenciado. A Atari tinha várias unidades operadas por moedas na exibição. Uma delas era o Touch Me. Touch Me estava em um gabinete na altura da cintura com quatro ‘botões’ grandes e escuros voltados para o jogador em sua plataforma superior, quase horizontal; durante o jogo, os botões acendiam em sequências aleatórias e a máquina emitia sons de acompanhamento verdadeiramente horríveis e estridentes. Era tarefa do jogador seguir a sequência de luzes pressionando os botões apropriados. Howard Morrison também viu Touch Me e brincou [na máquina e] algum tempo depois, Howard e eu conversamos sobre aquele jogo de Atari, Touch Me. Nós dois chegamos à mesma conclusão: bom jogo, execução terrível, visualmente chato e sons ásperos e sofríveis! Pelo final de 1976 ou início de 1977, começamos a pensar em fazer um jogo portátil usando a jogabilidade básica e genérica do Touch Me [a partir da brincadeira infantil] ‘Simon Says’. Howard achou que valia a pena tentar. Descrevemos uma breve especificação para o que chamamos de nosso jogo ‘Follow-Me’ […] Howard desenhou um quadrado com quatro áreas de toque coloridas, uma em cada canto. Ele tocou esses ‘botões’ com as pontas dos dedos, cantarolou tons e simulou o jogo, que era basicamente um teste de memória que exigia a associação sequencial de sons e cores. E sim, as primeiras versões do jogo eram quadradas; a forma redonda veio depois”, sintetizou o produtor.
Não há registro de Nolan Bushnell ter, em algum momento, reclamado que a equipe de Baer tenha se apropriado da concepção original de Touch Me para ganhar dinheiro às suas custas. Na mencionada troca de mensagens, no entanto, o dono da Atari cutuca o rival, sem meias palavras: “Se estivéssemos anotando, você claramente foi ‘inspirado’ por mais produtos da Atari do que a Atari [foi inspirada] pelos seus”.
Ralph Baer, que ficou mundialmente reconhecido como o Pai dos Videogames por seu pioneirismo, em uma aclamada cerimônia durante a Developers Choice Awards, em 2008, recebeu também a Medalha Nacional de Tecnologia e Inovação pelas mãos do presidente George W. Bush, em 2006. O criador de jogos e brinquedos eletrônicos faleceu no dia 05 de dezembro de 2014.
O inquieto Nolan Bushnell estará de novo no Brasil, na próxima BGS, e continua empreendendo no setor de jogos, tanto nos eSports, quanto na área educacional com games nos últimos anos, como afirmou em outra conversa com o Drops de Jogos, em 2017. Importante citar, não há registro, até aqui, da apresentação do Lab Book com os projetos da Atari, citado por Bushnell na correspondência com Baer.
Imagem: Ralph Baer e Nolan Bushnell – reprodução de arte de Howard Cruse
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