Os textos até aqui produzidos para tratar da Game-Art como expressão artística da atualidade vêm mesclando princípios conceituais relacionados à Arte, o pensamento de profissionais, críticos das artes e exemplos de obras que se apropriam dos preceitos dessa vertente para possibilitar ao interessado no tema o vislumbre um panorama que lhe permita tecer as próprias percepções sobre a chancela da ‘Arte’ nessa recente produção dos designers-artistas-desenvolvedores.
Essa semana, voltaremos a avaliar algumas criações que se manifestam como game-art’s de nosso tempo.
No ‘Volume V‘ de nossas ponderações, tratamos daquela que, até onde se sabe, é a primeira obra de Game-Art produzida, o game Moondust, desenvolvido pelo programador Jaron Lanier. Após essa primeira incursão, parece haver um hiato na criação de projetos do gênero, que só foi retomada com o advento de Doom, da id Software.
“[…] Doom colocou as ferramentas de criação de espaços tridimensionais – mundos virtuais – nas mãos de todos. Claro, isso não era fácil, mas não era mais necessário que se fosse um programador ou ter acesso a computadores de ponta para criar seu próprio mundo virtual ou mudar a narrativa de seu jogo favorito”, explicaram Shiralee Saul e Helen Stuckey em sua interpretação do projeto ArsDoom. [1]
“Criado em 1995 por Orhan Kipcak e Reini Urban, ArsDoom foi exibido no Ars Electronica Festival, em Linz, no mesmo ano. Usando o mecanismo Doom II e o software AutoCAD da Autodesk, Kipcak e Urban criaram uma cópia virtual do salão de exposições da Brucknerhaus e convidaram artistas para criar ou enviar obras de arte virtuais que poderiam ser exibidas no novo mapa. Armado com uma cruz de tiro, uma serra elétrica ou um pincel, o jogador pode matar os artistas e destruir todas as obras de arte em exibição”, informa texto do site Gamescenes, de 2009, que também afirma que “entre seus muitos méritos, ArsDoom é lembrado por redefinir a própria noção e papel do visitante: o usuário pode se tornar também curador e crítico, decidindo quais artistas devem ficar e quais devem ser destruídos, o que manter e o que apagar para exibição pública”. [2]
Ao oferecer a oportunidade de interação para além do mata-mata, ArsDoom se propõe a dinamizar a relação entre artista e público, entre fruição e audiência. Em sua análise sobre a participação passiva da plateia nos espetáculos teatrais, o diretor de teatro e dramaturgo brasileiro Augusto Boal cunhou, nos idos dos anos 1970, o termo “espect-ator”, que impulsiona a participação para além da apreciação da obra narrativa.
“Basicamente, o ‘espect-ator’ é incentivado a interromper a ficção observada, sempre que julgar ‘falsas, ou irreais, ou mistificadoras ou ineficientes ou idealistas’ as soluções vistas em cena, situando-se este teatro, portanto, nos limites entre ficção e realidade, e o ‘espect-ator’ entre pessoa e personagem”, escreveu. Da mesma forma, ao vivenciar a imersão com as obras de arte interativas, o público se coloca na condição de espect-ator/interator, em uma relação quase simbiótica de ação e significação em tempo real. [3]
“Ao contrário das formas de arte tradicional em que a interação do espectador é apenas mental [e], a interatividade com o meio produz [o] significado […] tanto o público quanto a máquina trabalham juntos em diálogo a fim de produzir uma obra de arte completamente original para cada público”, resume o texto do site ‘Hi! So You Are’, como visto no Volume IV dessa série de artigos.
Walktrough na obra ArsDoom de Orhan Kipcak and Reini Urban (1995)
Outra criação que destaca a ruptura da Game-Art com o modus operandi convencional dos jogos digitais surgiu em 1999, por meio do projeto Atari-Noise. “Arcangel Constantini hackeou o antiquado dispositivo de jogos, que você pode comprar barato hoje no mercado de pulgas, e o converteu em um ‘teclado gerador de padrão de ruído audiovisual’ (Constantini). O artista combinou assim vários elementos do console de jogos de modo a permitir ao utilizador gerar imagens caoticamente distorcidas com o apertar de um botão; essas imagens têm tanto a ver com a interface original do jogo de computador quanto o som de uma corda de guitarra tem a ver com um dos solos no [amplicador de] retorno de Jimi Hendrix. Essa desconstrução da ‘matéria-prima visual’ não é apenas parte de uma longa tradição modernista de alienar e modificar imagens encontradas, mas também alude a uma das obras mais seminais da artemídia: ‘Videossintetizador’ (1972) de Nam June Paik. Enquanto Paik teve que contratar o engenheiro Shuya Abe para desenvolver uma máquina que permitisse manipular imagens em movimento em tempo real, ‘Atari Noise’ reflete uma cultura de mídia em que o hardware necessário está disponível como sucata eletrônica”, definiu Tilman Baumgartel, no site do projeto. [4]
Vídeo de exibição da obra Atari-Noise
No mesmo ano, Gilbertto Prado, artista multimídia e professor do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, produziu Desertesejo, que se apresenta como um ambiente virtual interativo multiusuário construído na linguagem de computação VRML, que permite a presença simultânea de até 50 participantes. A obra explora poeticamente a extensão geográfica, rupturas temporais, a solidão, a reinvenção constante e a proliferação de pontos de encontro e partilha.
“Lembro ainda do ‘clima’ de letargia, da lenta velocidade de navegação, como que deslocado no tempo, o peso do ambiente, a solidão da navegação solo, como que em um espaço entre o sonho e a realidade. Aquela sensação no momento em que você acorda, que você não sabe se está flutuando ou andando, se faz frio ou calor, o peso do ambiente e a imensidão do espaço. Majestoso e solitário, sem saída”, anotou o artista, durante a criação do projeto. [5]
De fato, essa sensação de deslocamento e não-pertencimento ao ambiente imersivo das Game-Art está entre um dos aspectos que compõem uma certa projeção poética de interação com o digital, tal qual a relação mimética entre a Arte e a representação do universo perceptível, como sustentou Aristóteles em ‘A Poética’.
Silvia Laurentiz, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Mestre em Multimeios, trabalha nesse sentido, identificando o termo Game-Art como “games regidos pela função poética da linguagem, onde seu objetivo final não seja apenas entreter, mesmo que ainda se sustente pelo caráter lúdico” e enfatiza que a “gamearte é qualquer arte na qual games digitais desempenharam algum papel significante na criação, produção e/ou exibição do trabalho. E a arte resultante pode existir como um game, uma pintura, uma foto, som, animação, vídeo, performance ou instalação”, confirmando impressões até aqui sugeridas indicando essa produção não como objeto de arte, mas uma forma de “criar arte através do game”. [6]
Outra produção artística que tangencia essas possibilidades é Pac-Mondrian, obra do grupo canadense The Prize Budget for Boys, de 2004. “Pac-Mondrian transcodifica ‘Broadway Boogie Woogie’ em um videogame Pac-Man: a pintura se torna o tabuleiro, a música se transforna nos efeitos sonoros e Piet Mondrian se torna o Pac-Man […] Cada jogada do game é um ato de devoção. A espiritualidade geométrica de Mondrian se funde com sua fisicalidade estática quando Pac-Mondrian dança ao redor da tela enquanto o jazz Trinity of Boogie Woogie toca ‘Boogie Woogie Prayer'”, registrou Jack Schofield, em seu artigo para o The Guardian, em 2004. [7]
“O arcade Pac-Mondrian Artcade – pintado à mão – reduz a sagrada galeria a um fliperama e transforma a devoção em jogo, convidando o espectador a tocá-lo. Em vez de perguntar quando um videogame [se tornará] bom o suficiente para ser arte, declarando ‘Vamos brincar de arte!!!!’, Pac-Mondrian pergunta por que a arte não pode ser tão divertida quanto um videogame?”, exalta Mathias Jansson, em artigo presente no site Game Scenes. [8]
Vídeo de simulação do gameplay de Pac-Mondrian
Essa relação entre vida e jogo, sob o aspecto da transformação a partir da imersão no gameplay, está dada em vários dos exemplos já citados ao longo desses sete artigos sobre Game-Art. Para o entendimento mais claro dessa questão, é necessário abrir-se às novas produções envolvendo arte e tecnologia, como destacou Arlindo Machado, para quem as novas formas de arte acabam “exigindo formulações mais adequadas”, ou mesmo como descrito pelo crítico de arte Gombrich, que afirmou não existir “maior obstáculo à fruição de grandes obras de arte do que a nossa relutância em descartar hábitos e preconceitos”.
Aproveitando essa relação entre a experiência artística e transformação, vale ressaltar o artigo de Tom Magrino, de 2012, sobre o jogo Journey para o site Games Radar, explicando que “todo desenvolvedor, independentemente de sua disciplina, pode aprender com isso [o desenvolvimento de um projeto do gênero], e todas as pessoas ficam melhores por terem jogado” uma experiência imersiva como Journey, produzido pelo mídia-artista Bill Viola, em 2008. “[Journey] significa um divisor de águas para a indústria de jogos; é o nosso Cidadão Kane”, declarou, demonstrando que jogos também podem ascender à condição de objetos de arte, como as produções cinematográficas.
“Se você se pegar chorando enquanto joga este game, você não seria o primeiro e não seria o primeiro a, inicialmente, não entender o porquê. [Journey] apresenta situações em que seus verdadeiros sentimentos são colocados como um alívio. É um espelho, uma ferramenta de autodescoberta, eficaz em um grau que nada do que veio antes foi capaz de alcançar”. [9]
Que tenhamos mais Game-Art’s similares a Cidadão Kane, à Mona Lisa, a Crime e Castigo ou uma obra de Shakespeare.
Na próxima semana, voltamos com mais exemplos de Game-Art.
[1] https://gibsonmartelli.com/wp-content/uploads/2017/08/SaulStuckey.pdf