O que é a investigação por suposto trabalho infantil no Roblox? - Drops de Jogos

O que é a investigação por suposto trabalho infantil no Roblox?

Entenda exatamente o que é tratado na denúncia ao Ministério Público do Trabalho brasileiro

Avatares com aparência de bonequinhos de lego atraem o público infantojuvenil ao Roblox, mas os pais muitas vezes não sabem que plataforma atua na fronteira entre diversão e trabalho (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Avatares com aparência de bonequinhos de lego atraem o público infantojuvenil ao Roblox, mas os pais muitas vezes não sabem que plataforma atua na fronteira entre diversão e trabalho (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Reportagem de Isabel Harari no site da Repórter Brasil. JUCA*, DE 12 ANOS, começou a se interessar por programação de jogos quando “soube que uma pessoa poderia ficar rica”. Lucas, 16, sempre gostou de videogame, mas resolveu estudar o assunto ao perceber que poderia “trazer essa paixão para um lado onde poderia ser recompensado”. 

Após criar códigos de programação por diversão, José, de 13, descobriu que seria possível “conseguir um pouco de lucro”. Com a mesma idade, Guto é remunerado para fazer animações há apenas um ano, mas já traça planos: “eu guardo esse dinheiro para pagar um curso no futuro”.  

Encontrados pela Repórter Brasil em fóruns de internet, os quatro adolescentes têm em comum sonhos aparentemente inofensivos: aprimorar as habilidades de criação de games e emplacar um jogo de sucesso na Roblox, plataforma febre entre crianças e adolescentes do mundo inteiro.

A fronteira não delimitada entre diversão e trabalho, no entanto, vem despertando a preocupação de pais, especialistas e autoridades. “Essa visão de que o trabalho infantil precisa ser algo sofrido não necessariamente corresponde à realidade”, alerta a procuradora Luísa Carvalho Rodrigues, da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), uma comissão especial do Ministério Público do Trabalho (MPT). 

“Não é porque é algo divertido que vai deixar de ser trabalho, caso estejam presentes os requisitos para que se configure uma relação de trabalho”, complementa a procuradora, referindo-se a plataformas digitais de forma geral. 

No caso da Roblox, crianças e adolescentes passam horas do dia programando jogos que geram rendimentos para a empresa – mas pouco, ou mesmo nada, para eles. Hoje, 58% do público da plataforma têm até 16 anos, segundo dados da própria companhia.

Por isso, a badalada corporação, avaliada em US$ 26 bilhões (R$ 147 bilhões), entrou na mira do MPT em São Paulo. O órgão abriu um inquérito civil para investigar denúncias de trabalho infantil na Roblox. Uma audiência na sede do MPT, prevista para a próxima quinta-feira (17), deve ouvir representantes da plataforma no Brasil. 

Essa não é a única polêmica que ronda a Roblox. Nesta semana, a companhia foi acusada de mentir a investidores e reguladores por inflar o número de usuários e as horas de engajamento, o que levou à queda de suas ações. A denúncia da Hindenburg Research, uma gestora de investimentos, classifica a plataforma como “um cenário infernal de pedófilos, expondo as crianças a aliciamento, pornografia, conteúdo violento e discurso extremamente abusivo”.

Procurado pela Repórter Brasil, o advogado que representa a Roblox no Brasil afirmou que “a empresa optou por não comentar”.

Monetização das experiências

Quem entra na Roblox se depara com uma oferta extremamente diversa de “experiências”, como são chamados os jogos virtuais: andar de skate, adotar um pet, batalhar com o Exército Brasileiro ou buscar o vestido ideal em uma competição de looks. Os usuários também podem conferir os últimos lançamentos da Adidas e da Hyundai, ou assistir a um show do cantor Elton John, numa espécie de metaverso.

Avatares com aparência de bonequinhos de lego e cenários com aspecto de blocos de brinquedo são atrativos para o público de pouca idade. Mas os grandes diferenciais são as ferramentas disponibilizadas pela plataforma para a programação de jogos e a possibilidade de retorno financeiro. Ou seja, o usuário pode não apenas jogar, mas também criar – e até ser pago por isso.

A Roblox não só incentiva a monetização das experiências, como lista estratégias para que isso aconteça. Criar produtos especiais, como uma espada poderosa ou um tênis voador, é uma delas. Outra tática é cobrar dos jogadores para liberar o acesso a ambientes restritos nos jogos. 

Tudo isso pode ser pago em Robux, uma moeda virtual criada pela plataforma. “Mais de 5 milhões de desenvolvedores e criadores ganharam Robux”, diz um relatório oficial da empresa sobre as operações de 2023. 

O Robux até pode ser trocado por dinheiro de verdade, mas isso é para poucos. Apesar de alegar ter 80 milhões de usuários, somente 16,5 mil foram remunerados até o momento, segundo a empresa. É sobre essa expectativa de pagamento para crianças que recaem as suspeitas do MPT.

“Crianças e adolescentes, na esperança de obtenção de lucros com a aquisição da moeda virtual do jogo e sua posterior conversão em dinheiro real, desempenham a atividade de desenvolvimento de novos jogos no âmbito da plataforma da empresa”, diz um parecer da Coordinfância, do MPT, a que a Repórter Brasil teve acesso com exclusividade. 

Concretizada a venda de games e produtos criados a outros jogadores, uma parte dos ganhos fica com a plataforma e outra vai para a mão dos desenvolvedores. “É com base em tais transações que a investigada [Roblox] obtém parte dos seus lucros”, reitera o parecer da Coordinfância. 

O documento ressalta ainda que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o trabalho infantil “não se restringe à típica relação de emprego” e pode ser estendido à prestação de “quaisquer serviços, ainda que não remunerados”. 

Denúncias de pedofilia, vício em jogos e apologia ao crime

Em 2021, a Roblox abriu seu capital na bolsa americana, avaliada inicialmente em US$ 38 bilhões, quase o PIB do Paraguai. A popularidade da empresa explodiu durante a pandemia de Covid-19: de 32,6 milhões de usuários em 2020, a corporação saltou para 79,5 milhões em 2024.

Apesar do inegável sucesso, a Roblox vem sendo alvo de diferentes denúncias mundo afora. A empresa já foi criticada por agir de forma negligente em casos pedofilia e incentivar vício em jogosincluindo os de azar. No Brasil, há até acusações de apologia ao crime organizado, com jogos simulando compras de armas da facção criminosa PCC. 

Sobre a empresa pesam também acusações no Reino Unido sobre a exploração do trabalho de crianças e adolescentes, tal como a investigação em curso no MPT-SP. 

Em manifestação enviada ao órgão em julho do ano passado, a Roblox negou a existência de relação de trabalho com os usuários. A nota afirmava que seu sistema “nada mais é do que uma plataforma de jogos que permite que os usuários joguem uma grande variedade de jogos, criem seus jogos e itens de personalização do avatar e conversem com outras pessoas online”. 

A manifestação enviada ao MPT paulista destoa do posicionamento de Stefano Corazza, um dos principais executivos da Roblox. Em entrevista concedida em março deste ano, ele afirmou que a plataforma é um “presente” para os jovens desenvolvedores.

“Você pode dizer: ‘ok, estamos explorando trabalho infantil’, certo? Ou pode dizer: estamos oferecendo às pessoas em qualquer lugar do mundo a capacidade de conseguir um emprego e até mesmo uma renda. Eu posso ter 15 anos e viver em uma favela na Indonésia, e agora, com apenas um laptop, posso criar algo, ganhar dinheiro e sustentar minha vida”, disse Corazza. 

A argumentação do executivo da Roblox não convence Ivan Mussa, professor do Departamento de Mídias Digitais e do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em sua opinião, a esmagadora maioria das crianças não terá qualquer ganho financeiro. 

“Para um criador de uma favela da Indonésia ganhar, você precisa de um exército de outras pessoas, em outras favelas de outros países, que estão com a mesma ilusão, que estão produzindo jogos para Roblox, e que geram lucro [para a plataforma]”, rebate o professor. “Tem um desequilíbrio de poder sobre quem faz e quem lucra”, conclui.

Um dos adolescentes entrevistados pela reportagem, de 17 anos, é sincero ao responder se começou a programar na Roblox por dinheiro ou por diversão: “metade, metade”, responde. Ele admite que “o negócio de ganhar dinheiro na Roblox é meio complicado”, mas se diz otimista. “Tudo é possível, vale a pena investir. Basicamente, se o jogo ficar tudo certo, a Roblox ganha muito também”. 

Produção frequente pode ser indício de ‘profissionalização’

Guto, 13, passa de duas a três horas programando na plataforma todos os dias, mas garante que isso não afeta seus estudos. José, 13, estima gastar quatro horas por dia com a criação de games de segunda a sexta, e “de 6 a 7 horas” aos sábados e domingos. Já Leandro, 13, afirma fazer um regime de “6×3 [seis horas a cada dia, por três dias], mas às vezes passa de 12 horas”, reconhece. 

A maioria dos desenvolvedores entrevistados pela Repórter Brasil mantém uma produção frequente de conteúdo na Roblox. A habitualidade e o grande número de horas dedicadas à plataforma é um indício de profissionalização da atividade, avalia Adriana Sena Orsini, professora e pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito da  Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“Se tem uma regularidade de produção, existe a possibilidade de ser considerado um trabalho infantil”, afirma. Ainda que a Roblox negue qualquer implicação trabalhista, Orsini afirma que a plataforma deve assumir responsabilidades: “É ela que recebe o jogo, o dinheiro que é pago é dela. E a Roblox sedia o espaço onde ocorre o desenvolvimento dos jogos”, complementa.

Sem se referir ao caso específico da Roblox, a procuradora Ana Segatti, do MPT-SP, diz que é preciso levar em conta a importância das atividades desempenhadas por crianças e adolescentes em qualquer plataforma. “Se ela não existir sem esse serviço, como é que você vai falar que não tem relação de trabalho?”, questiona. 

A reportagem perguntou aos desenvolvedores se eles consideram a criação de conteúdo na Roblox como um trabalho. “Considero sim, já que paga, o bom é isso, eu faço o que eu gosto e estou podendo ganhar com isso. O pessoal da sala começa a se interessar por isso por volta dos 15 a 16 anos, pois estão perto de serem adultos e precisam começar a ganhar dinheiro”, disse Lucas, em entrevista à Repórter Brasil pelo aplicativo de mensagens Discord. “Pra mim é um trabalho, mas é um trabalho que eu gosto, entendeu?”, conta Beto.

Apesar de a reportagem ter encontrado em grupos de desenvolvedores no Discord pedidos de pagamentos em PIX e até “gift cards” (cupons de troca em lojas virtuais), boa parte deles recebe apenas em Robux, a moeda virtual do jogo. 

A conversão para dinheiro real é um desafio, segundo os adolescentes. O saque é permitido aos usuários de ao menos 13 anos e com a quantia mínima de 30 mil Robux (o equivalente a R$ 587, na cotação atual). Na maior parte das vezes, eles acabam reinvestindo os ganhos nos próprios games.

“Estamos falando não de uma empresa de jogos, mas de uma plataforma cujo modelo não é particularmente inovador, mas a dimensão da monetização é”, atenta Thiago Falcão, professor do Departamento de Mídias Digitais e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. “É uma coisa imensa e a gente acha que é só um joguinho que as crianças jogam”, finaliza.

*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades

Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana.

Avatares com aparência de bonequinhos de lego atraem o público infantojuvenil ao Roblox, mas os pais muitas vezes não sabem que plataforma atua na fronteira entre diversão e trabalho (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Avatares com aparência de bonequinhos de lego atraem o público infantojuvenil ao Roblox, mas os pais muitas vezes não sabem que plataforma atua na fronteira entre diversão e trabalho (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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