Comportamento

Algoritmos de streaming já moldam identidade e hábitos da Geração Z, diz estudo

Esqueça a ideia de que você tem bom gosto em suas escolhas de o que assistir. Na verdade, esqueça a ideia de que você sequer tem livre-arbítrio na hora de dar o play. Um novo relatório feito pela Netflix acaba de jogar um balde de água fria na nossa suposta autonomia. E o ‘culpado’ de tudo isso são eles mesmos, os algoritmos.

O objetivo oficial do levantamento era entender a relação da plataforma de streaming com os hábitos de consumo de entretenimento. O resultado? Um raio-x cirúrgico de como nós já terceirizamos a nossa alma. Os dados não apenas desenham um novo perfil de consumo das gerações Z e Millennias — eles diagnosticam uma patologia social dos tempos modernos.

Segundo o estudo, 87% das pessoas abrem a Netflix sem saber ainda ao que querem assistir. Elas encaram a tela e esperam, passivamente, que o sistema “entenda” o mood delas para sugerir o que ver a seguir. E se isso não te assusta, deveria, porque 91% desse público confia cegamente que o algoritmo vai acertar na sugestão. Estamos falando de uma jovem sociedade que passa 6h40 por dia em telas (sendo metade disso em vídeos) e que decidiu terceirizar o próprio arbítrio para uma lista de reprodução automática, elaborada pelos algoritmos de uma plataforma. 

Isso não é preguiça, isso pode ser chamado de renúncia cognitiva voluntária. Abrimos mão da escolha e estamos achando isso muito legal. Só que essa geração atual de jovens não está exatamente distraída: na verdade, ela está sendo domesticada. 

Os algoritmos como ‘arquitetos’ da identidade pessoal

Até ‘ontem’, a identidade das pessoas era forjada (aos trancos e barrancos) pela convivência com a família, na escola, com amigos, na igreja… instituições humanas e, consequentemente, falhas. Muitas vezes, chatas e frustrantes. Mas, hoje, os algoritmos desempenham estes papéis com eficiência assustadora.

Vemos no estudo da Netflix que 60% da Gen Z diz, com todas as letras, que o streaming moldou quem eles são. E 92% desses jovens adultos acreditam que seus hábitos de visualização na plataforma refletem, sim, sua personalidade. O problema é que essa “personalidade” é mapeada por 36 mil “códigos secretos” de classificação que a maioria de nós nunca viu.

O algoritmo não está apenas sugerindo conteúdo. Você acha que está vasculhando um catálogo e escolhendo um filme ou uma série para consumir, mas não está.  Quer dizer, está, e também está fazendo muito mais do que isso — sem perceber. Você está navegando num mapa da sua própria cabeça, só que desenhado por outra pessoa. Digo, “pessoa”. O usuário acredita que está vivendo uma jornada de autoconhecimento digna de filme indie, quando, na verdade, está apenas percorrendo um labirinto construído para reter sua atenção a qualquer custo. Sendo um tanto fatalista aqui, talvez a custo de sua própria essência.

A terceirização das emoções para os algoritmos

Aqui a coisa fica feia. Ainda segundo o relatório, 87% dos participantes descreveram a experiência de curtir uma Netflix como “uma terapia moderna”. E isso não é modo de falar: 42% disseram escolher um conteúdo com base apenas no que estão sentindo no momento. Está triste? Tem série pra elevar seu astral. Sente-se ansioso? Tem filme para acalmar os ânimos. Precisando de motivação? Com certeza algo no feed, naquelas indicações feitas “só para você”, vai dar a energia que você está buscando.

É como se o entretenimento tivesse se tornado uma farmacologia. É o streaming se tornando uma espécie de Rivotril, de Ritalina — um calmante ou estimulante —, só que digital e sem prescrição médica, sem receita controlada.

Se a Marília Mendonça nos ensinou que abraçar a sofrência faz parte da experiência humana, o algoritmo nos ensina a sentir o que ele quer que a gente sinta. O algoritmo (que faz parte de um produto comercial, controlado por uma empresa privada) está definindo nossas emoções, nosso estado de espírito, nossas catarses. Acha que estou exagerando? Bem, veja lá no estudo que 76% dos entrevistados disseram que os conteúdos da Netflix inspiram suas decisões pessoais no dia a dia. 

Uma distopia confortável? Confortável para quem?

Tenho pra mim que um dos grandes (e mais perigosos) truques de mágica do século XXI foi fazer a vigilância parecer um abraço quentinho em nossas almas. 78%  dos participantes da pesquisa acreditam que a Netflix os entende “de verdade”. E piora: 85% acham positivo que esse entendimento os conecte a marcas e produtos.

Me flagrei aqui me perguntando um ensurdecedor Que show da Xuxa é esse? O público está igualando vigilância comercial a intimidade emocional. E aqui mora o perigo real: não é só que a máquina nos conhece melhor do que muita gente, é que a gente no fundo talvez queira ser conhecido pela máquina. A gente entrega nossos dados e aí chamamos isso de conexão, quando, na verdade, estamos sendo perfilados para consumo com precisão cirúrgica.

O usuário jura que é eclético, só que os números estão dizendo outra coisa. Afinal, 96% dizem que o streaming ampliou seu repertório, mas ao mesmo tempo 57% mudam de série favorita com frequência. Isso talvez não seja liberdade, tampouco diversidade cultural, soando mais uma mera oscilação guiada por recomendação de algoritmos do que qualquer outra coisa.

É como um consumo calibrado em tempo real, onde ciclos de hype globais funcionam quase como sincronizadores culturais. Fica claro que a cultura virou fast-food. Todo mundo vê as mesmas coisas pelas mesmas razões ao mesmo tempo, cada um convencido de que a decisão de consumir aquilo foi sua, apenas sua.

Uma identidade que surpreende a si mesma a cada clique não pode ser chamada de identidade. Está mais para um mero reflexo, uma resposta automática a um estímulo externo.

A conta de ser uma “geração domesticada” vai chegar…

Os dados mostram uma geração de jovens que abriram mão da escolha, terceirizam regulação emocional a uma plataforma digital, associam a própria identidade a recomendações algorítmicas e abraçam a vigilância no lugar da interação humana.

Se hoje o algoritmo já molda gostos pessoais, humor e senso de identidade pessoal, o que mais ele vai moldar quando essa dependência for total? O que vai sobrar de autonomia para nós, humanos, dentro de 10, 30, 50 anos?

Estamos entregando para sistemas comerciais o terreno onde antes se formavam referências, conflitos, afinidades e até contradições que davam textura à nossa vida. No meu entendimento, uma sociedade que delega esse processo perde sua base comum, sua fundação coletiva. E, sem esse pilar, qualquer narrativa vinda de fora vai colar. As gerações que são jovens em 2025 estão chamando subserviência de intimidade, renúncia de liberdade e IA generativa de terapeuta. Retomo aqui o argumento do início deste texto, quando eu disse que essa geração não está só distraída, pois na verdade ela está sendo domesticada, formatada, moldada. 

Se isso lhe parece confortável agora, é só porque a cobrança deste boleto ainda não chegou. Só que os boletos sempre vencem, mas nem sempre estamos com grana para pagar todas as contas em dia. E, infelizmente, me parece que será este o caso.

Patricia Gnipper

Coordenadora editorial do Drops de Jogos.

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