Quem leu minha review de Lunar Silver Star Story Touch sabe o quanto este jogo é importante para mim. Mas tem uma coisa que eu comecei como uma seção daquela review, mas se tornou tão extensa que eu achei melhor transformar em um texto próprio: a diferença entre as letras de Wind’s Nocturne da versão original (PS1 e Saturn) para a versão redublada (PSP e Android).
Caso você seja novo por aqui, Wind’s Nocturne é uma música que serve quase como “abertura” do jogo. Cantada pela personagem Luna em um cena CG animada pelo Studio Gonzo (que aqui no ocidente talvez seja mais conhecido como o estúdio responsável pelas animações do clipe de Breaking the Habit da banca Linkin Park), ela funciona como uma espécie de “abertura tardia” do game, e estabelece o momento que o grupo de personagens deixa para trás suas vidas domésticas e chegam a um novo mundo onde suas aventuras irão acontecer.
Sim, este é um método narrativo cada vez mais comuns nos jogos de videogame, principalmente em JRPGs. Títulos como Dragon Quest XI, Tales of Arise, Persona 5 e tantos outros lançamentos recentes usam essa técnica que é totalmente televisiva e nos remete diretamente à sensação de assistir um anime. E, em 1996, Lunar Silver Star Story foi um dos primeiros jogos – talvez até mesmo o primeiro – a trazer essa técnica aos videogames.
E, por conta de ser uma artifício narrativo muito a frente do seu tempo (em 1996 quase nenhum jogo de videogame usava cenas CG para dar uma narrativa mais “televisiva” à suas histórias, e menos ainda cenas CG no formato de anime e com uma música tema), é preciso pensar em Wind’s Nocturne não apenas por sua beleza técnica mas também pela sua mensagem. Afinal, uma boa abertura de anime não apenas é legal de se escutar, como precisa definir qual é o tom da história que iremos ver.
E, como alguém que cresceu com um PlayStation, a primeira versão da “música do barco” é uma das minhas preferidas de todos os tempos. E, mesmo quase 30 anos depois de ter ouvido ela pela primeira vez, toda vez que aparece na minha playlist eu só consigo pensar “isso não é só pela nostalgia, essa música é BOA PRA CARALHO de verdade”. Tipo, imagine que isso aqui foi feito para um jogo de videogame em 1996:

Não falo só da emoção da performance de Jennifer Stigile, mas todo o aspecto técnico da cena em si. O enquadramento, a mensagem que a mistura de música e animação passa. Um momento extremamente íntimo que presenciamos logo antes de o jogo se “abrir” e começarmos a explorar de verdade o mundo do jogo. Muito se fala sobre a influência de Metal Gear Solid e Final Fantasy VII para a narrativa dos videogames se aproximarem da narrativa cinematográfica, mas essa cena acontece num jogo lançado um ano ANTES de Final Fantasy VII. DOIS anos ANTES de Metal Gear Solid.
Mas vamos ignorar esses aspectos e nos focar na mensagem. Se você for ver a letra de Wind’s Nocturne, perceberá que ela não é uma música épica para te preparar para o início da sua aventura. Ela é, na verdade um contraponto, e acontece num momento crucial da história: enquanto o protagonista Alex e todo o resto do seu grupo (todos homens, por sinal) estão ansiosos para começar uma aventura em um continente desconhecido, Luna aproveita um momento de solidão para revelar para o vento os seus verdadeiros sentimentos: receio e dúvida.
Ao contrário dos garotos que viajam ao lado dela, ela não foi criada com sonhos de grandes aventuras. Luna foi criada do jeito que a sociedade japonesa de 1992 (apesar da música ter sido inserida na versão de 1996 do jogo, toda a história de Lunar foi lançada pela primeira vez em 1992 no Sega CD) acreditava que uma garota deveria ser: bela, recatada e do lar. E, principalmente, para ser uma companheira, e não uma protagonista.

Música à parte, a CG de Wind’s Nocturne tem alguns momentos visuais de tirar o fôlego. Olha só a beleza desse enquadramento! Lembrando: isso é de um jogo de 1996. (Imagem: captura de tela)
Luna não queria estar naquele barco. Luna queria voltar para a cidade de Burg e viver a vida de dona de casa que ela foi criada para almejar. Mas, num pedido suplicante de Alex, ela acabou subindo ali de última hora, tarde demais para voltar para trás mesmo que quisesse. E se ela tomou a decisão errada?
E é esta dúvida de quem tomou uma decisão impulsiva que vai contra tudo aquilo que ela foi criada para ser que torna Wind’s Nocturne e este momento do game tão fortes. Porque, em uma hora onde até então tudo o que o game nos mostrou eram pessoas felizes e ansiosas pela jornada, vem essa pá de cal na forma de uma das canções mais lindas que qualquer pessoa já cantou nos mostrar que não, não é todo mundo que está feliz (nem ansioso) pela jornada.
Luna, que talvez seja a pessoa mais importante do grupo naquele momento, é a única que não está sendo ouvida. E ela se sente tão solitária nesse sentimento de dúvida sobre a decisão que acabou de tomar que precisa desabafar suas angústias aos céus e à brisa noturna, pois sabe que nenhum de seus companheiros vai conseguir compreender o que ela está sentindo.
Wind’s Nocturne vs Nocturne of the Winds
Os anos passaram, e Lunar Silver Star Story foi relançado em dois novos formatos: Lunar Silver Star Harmony, que chegou em 2009 para o PSP com uma nova tradução, além de gameplay e direção gráfica modernizadas; e Lunar Silver Star Story Touch, uma versão mobile que combina os visuais e gameplay da versão para PS1 e Saturn com as novas traduções e dublagens da versão de PSP.
E, com uma nova tradução e dublagens, também tivemos uma nova versão da “música do barco”. Antes chamada Wind’s Nocturne, a nova versão recebeu o nome de Nocturne of the Winds, e uma nova letra para acompanhar a mudança.

Tecnicamente, Nocturne of the Winds é tão linda quanto Wind’s Nocturne. Liricamente, ela é até mais próxima da versão original em japonês, que manteve a mesma letra em todas as iterações do game. Mas, mesmo assim, eu acho a tradução “menos fiel” bem mais interessante. E não é por nostalgia, mas por escolha temática.
Isto porque a escolha dos primeiros tradutores lá na década de 1990 ajuda a tornar não só o momento que a música aparece, como as próprias dúvidas da personagem Luna, mais complexas. Porque sabe tudo aquilo que eu comentei lá em cima sobre como este momento do barco era um contraponto incrível à narrativa do jogo até aquele momento? Então, ele deixa de ser tão incrível nesta nova versão.
Veja bem, não estou dizendo que ele deixa de ser um contraponto – ainda é. Mas é um contraponto mais fraco (a meu ver, beeeem mais fraco). Isto porque tanto a letra de Nocturne of the Winds quanto a Wind’s Nocturne original em japonês mostram uma personagem em dúvida sobre a escolha que fez. Só que essa dúvida não é sobre se ela realmente fez um escolha certa, ou um pedido para que os céus enviem um sinal para ajudá-la a entender qual caminho ela deve trilhar. A dúvida é sobre se ela conseguirá amar alguém e ser amada de volta.

Minha cara sempre que escuto Wind’s Nocturne (eu sou o gatinho de asas) (Imagem: captura de tela)
Não me entenda a mal, essa é uma dúvida fundamental da existência humana e que todo mundo já se pegou perguntando algum dia. Mas, para essa história específica, nesse momento específico, ela é meio que um desserviço. Enquanto Wind’s Nocturne nos ajuda a entender Luna como uma personagem complexa e que se sente solitária não porque não possui amigos ou pessoas que a amam, mas porque sabe que nenhuma dessas pessoas conseguirá compreender as dúvidas que ela tem sobre si mesmo, Nocturne of the Winds pinta a personagem como uma waifu clássica, a menina bonita e meiga que, mesmo em um momento onde embarca numa aventura que está deixando toda a vida que conhece para trás, só consegue pensar se vai achar ou não um namorado.
E sim, essa era mesmo a intenção do original. Mas não tenho medo de afirmar: neste caso, o original está errado. Lunar Silver Star Story é uma história muito à frente de seu tempo no quesito narrativo, e tem nuances mais complexas do que muito RPG recente. E a tradução de Wind’s Nocturne ajuda nessa modernidade do jogo, nos mostrando de cara que a Luna é uma personagem complexa e completa – algo que mesmo hoje muito RPG não faz com as companheiras do protagonista. E fazer ela retornar às origens de waifu é um erro. Em um mundo perfeito, a tradução não mudaria para se aproximar do sentido original, mas o texto original perceberia o quanto é falho e mudaria para ficar mais próximo da intenção da primeira tradução.
E que fique claro, eu falo aqui única e exclusivamente de Wind’s Nocturne. No geral, a tradução da versão PSP é muito, mas muuuuuito superior à do PS1 e Saturn, que em diversos momentos tinham frases que não faziam sentido nem gramatical nem semântico. Mas uma tradução que no geral é “ruim” conseguiu elevar toda a narrativa do jogo e a forma como enxergamos uma de suas principais personagens ao escolher um caminho que se distanciou do intuito original.
E a minha posição nesses casos é bem clara:eu não sou um purista de palavras, eu sou um amante de histórias. E se uma tradução que foge do sentido original faz isso de uma forma que torna a história mais complexa e interessante, eu escolherei essa tradução sobre a original todas as vezes.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.