O Brasil tem um gigantesco público consumidor de jogos de tabuleiro. Sim, jogos de tabuleiro! Nessa categoria, temos diversos jogos: clássicos como xadrez, damas, gamão, mahjong; os jogos de cartas, como pôquer (como o GGpoker), bridge e buraco; passando pelos famosos jogos para toda a família, como Banco imobiliário, Detetive e War; e terminando com os tais board games modernos, como Catan, Pandemic, Carcassonne, entre outros.
Segundo dados da Pesquisa Game Brasil 2019, 28 por cento da população do país se diverte com jogos de tabuleiro, o que representa 9,7 por cento das vendas do setor de brinquedos, de um total de 6,871 bilhões de reais em 2018. Mas, mesmo assim, em alguns segmentos de nossa sociedade, os jogos são desprezados e não têm seu valor cultural reconhecido. Pior ainda, são considerados “coisa de criança”. Quem aí já não ouviu essa frase, ou então: “você já não está meio grande pra ficar brincando com joguinhos?”, “jogos são perda de tempo, você devia era pensar na escola”, e por aí vai… Sim, os jogos de tabuleiro ainda lutam para conseguir seu lugar na sociedade, mas certas notícias mostram que essa conquista já está acontecendo e que jogos de tabuleiro não são só para crianças.
Em 22 de outubro de 2016, através da Portaria n° 7.240, foi instituído na cidade de São Paulo/SP o programa Jogos de Tabuleiro nas Unidades Educacionais que mantêm a Educação Infantil (a partir de quatro anos de idade), o Ensino Fundamental, o Ensino Médio e a Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de Ensino.
O objetivo da Secretaria Municipal de Ensino, segundo o texto da portaria, é:
“I – disseminar na Rede Municipal de Ensino, os quatro maiores Jogos de Tabuleiro da humanidade: Jogo de Xadrez, Jogo de Mancala Awelé, Jogo da Onça e o Jogo de Go, e o uso do seu valor pedagógico para o desenvolvimento do estudante;
II – valorizar o ensino das técnicas dos Jogos de Tabuleiro, para abordar a história e cultura dos povos de quatro continentes; Xadrez (Europa), Mancala Awelé (África), Jogo da Onça (América) e o Jogo de Go (Ásia);
III – utilizar recursos tecnológicos (Informática e Internet), para ampliar as possibilidades de estudo, pesquisa e prática dos Jogos de Tabuleiro;
IV – incentivar a implantação de projetos de Jogos de Tabuleiro nas Unidades Educacionais, por meio de educadores que tenham a formação nos jogos.”
Ok, algumas coisas podem ser discutidas, como dizer que esses são os “quatro maiores jogos da humanidade” (segundo quem?) ou ainda estabelecer que o xadrez é europeu, mas esse não é nosso objetivo aqui. O foco deste artigo é perceber que os jogos de tabuleiro despertam cada vez mais o interesse do Estado, ao ponto de reconhecer sua prática como algo positivo e discutir seu possível uso como ferramenta pedagógica. Ponto para os jogos de tabuleiro!
Mas o programa Jogos de Tabuleiro não para aí. Estabelece ainda que sejam realizados anualmente os torneios Jogos Estudantis de Xadrez, Festival de Mancala Awelé, Festival de Jogo da Onça e o Meijin Estudantil de Go entre alunos de diferentes escolas da rede municipal de ensino. Além disso, estabelece que a prefeitura promoverá a implantação de projetos de xadrez, mancala awelé, jogo da onça e go nas escolas que aderirem ao programa, além de capacitar professores e educadores a ensinar as regras dos jogos, arbitrar e organizar eventos. Por último, as escolas participantes também recebem material didático para poder trabalhar com esses jogos. Resumindo: as escolas recebem os jogos, os professores são instruídos a ensinar as regras dos jogos e organizar campeonatos e sobre como utilizar seus jogos para ensinar conteúdo, além de ensinar as culturas de onde cada jogo é oriundo. Mais um pontinho pros jogos de tabuleiro.
Vale lembrar que a prefeitura de São Paulo já mostrou anteriormente que tem uma visão positiva da prática de jogos na sociedade, apoiando eventos e atividades com RPG ou board games. Outro exemplo de como os jogos de tabuleiro começam a ser vistos com outros olhos foi o reconhecimento do governo federal através da aprovação do Projeto de Lei 5.840/16 pela Câmara dos Deputados, que trata xadrez, damas e pôquer como esportes e aprova sua inclusão no Calendário Esportivo Nacional. A lei ainda prevê um possível reconhecimento futuro do bridge e do go como atividades esportivas.
Em 2018, a Câmara dos Vereadores de São Paulo fez uma homenagem a quatrocentos nomes ligados aos “Esportes da Mente”, nome pomposo para aglutinar vários praticantes e empresas ligadas a diversos jogos clássicos e mesmo jogos de tabuleiro modernos. Eu, inclusive, estive presente representando a Ludens Spirit, empresa na qual eu trabalhava na época.
O que eu mencionei até aqui já seria argumento suficiente para discutir com qualquer um sobre a importância dos jogos, né? Ah, mas eu não contei tudo… Saiba então que, em 2019, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo lançou a coleção Jogos de Tabuleiro. São quatro livros, cada um dedicado a um dos jogos do programa já mencionado (xadrez, mancala awelé, jogo da onça e go), explicando regras, táticas, com exercícios e exemplos de como utilizá-los em atividades escolares, além de falar da história do jogo no Brasil e no mundo. Quatro livros de regras, cada um com mais de cem páginas que foram distribuídos gratuitamente na rede municipal de ensino. Segundo dados da própria secretaria, “50 mil estudantes praticam pelo menos um tipo de jogo de tabuleiro nas mais de 300 unidades escolares com projetos registrados. Destes alunos, cerca de 20 mil participaram de algum dos festivais promovidos pela SME. A COCEU (Coordenadoria dos Centros Educacionais Unificados) estima que cerca de 10 mil professores já concluíram curso de pelo menos um dos jogos que compõem o Programa Jogos de Tabuleiro.” Ou seja, temos milhares de jogadores de tabuleiro jogando em escolas e participando de campeonatos, além de professores capacitados em ensinar esses jogos. Sinceramente, pra mim, a pontuação dos jogos de tabuleiro já está bem alta em nossa avaliação.
Essa aceitação e o incentivo à prática de jogos são fatores importantes que contribuirão para que cada vez mais jogos sejam aceitos pela sociedade como entretenimento saudável e elemento cultural.
Então, da próxima vez que alguém disser algo como “jogos são para crianças”, “adultos não ficam brincando com jogos” ou “escola não é lugar de jogo”… Seja paciente, dê uma risadinha e comente: “Acho que você precisa se informar melhor…”
Jaime Daniel, cujo primeiro jogo de tabuleiro foi uma versão de Snake and Ladders com Tom & Jerry, é profissional da área de jogos analógicos, narrador de RPG e colaborador do Drops de Jogos.
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