“NASA confirma teoria de Stephen Hawking sobre o fim do mundo”. Parece grave, não? E é. Contudo, a gravidade aqui está no fato de que esta manchete, veiculada na imprensa tradicional, não passa de sensacionalismo barato. Para falar bem a verdade, a informação é falsa mesmo. E este episódio lamentável escancara, mais uma vez, a crise no jornalismo dos tempos modernos, que não cumpre mais seu papel fundamental: informar com a verdade.
Se você viu essa notícia e caiu na lorota, é isso, sentimos informar mas você foi enganado. Justo você, que para não cair em fake news verifica se algum “site ou jornal grande” publicou aquela mesma informação — pois obviamente os jornalistas dali fizeram o básico e validaram os supostos fatos antes de qualquer coisa. Só que não. A NASA não confirmou coisa alguma, Hawking não elaborou nenhuma teoria e sua declaração não foi sobre o “fim do mundo” — ele fez projeções sobre a extinção da humanidade, o que é bem diferente.
Pois é: tudo errado. E nas linhas abaixo você vai entender como alguns sites de renome, como O Globo e Último Segundo, se rebaixaram ao nível de tabloides e páginas de fofoca no que diz respeito ao comprometimento com os princípios éticos da prática jornalística. Ao menos neste “causo” — e seria um alívio se este se mostrasse um caso isolado.
O que? Quem? Quando? Como? Onde? Por quê?
As perguntas destacadas acima são a pedra fundamental do lide jornalístico, compondo a primeira parte de um artigo, que justamente deve responder a essas questões. Para tal, naturalmente o jornalista deve buscar essas respostas no processo de apuração da notícia — quando as informações são verificadas e validadas (ou refutadas).
Bem, foi o que eu fiz assim que bati o olho em “Nasa confirma teoria do ‘fim do mundo’ de Stephen Hawking; entenda”, notícia publicada no Globo ontem. Vale frisar que aquele título acabou sendo alterado para “Nasa endossa teoria de Stephen Hawking que associa ‘fim do mundo’ a mudanças climáticas; entenda”, conforme mostramos na imagem abaixo. Mas isso é irrelevante, o fato é que eu senti que “algo de errado não estava certo” e investigaria mesmo assim. Infelizmente, eu tinha razão.
O mais revoltante nessa história é que foi relativamente rápida a apuação de informações suficientes para que eu definisse essa notícia como sendo “mais um click bait sensacionalista usando o nome da NASA”. E qualquer jornalista com o mínimo senso de responsabilidade seria capaz de fazer o mesmo, bastando ter habilidades medianas de pesquisa — ou até mesmo medíocres se pensar num profissional suficientemente gabaritado para trabalhar no Grupo Globo, penso eu.
No texto, em momento algum é citado quando, ou em que comunicado, de quem para quem, ou a partir de qual gancho, “a NASA” teria feito aquela confirmação. Partindo do princípio de que essa declaração poderia ter sido um furo jornalístico, uma exclusiva, ou qualquer coisa do tipo, que veículo em sã consciência não informaria isso no conteúdo? Inclusive no próprio título, que muito provavelmente seria algo como “EXCLUSIVO: Nasa confirma pipipi-popopó”. A matéria teria destaque na página inicial do site, em subpáginas de categorias afins, nas redes sociais, etc. Logo, essa linha de raciocínio seria uma furada. Next!
Se “NASA confirma”, confirme com a NASA
Já que o texto afirma que “recentemente, a Nasa confirmou a teoria…” sem revelar nenhum dado ou fonte que comprove tal informação, a única opção era arregaçar as mangas e começar a pesquisar sobre.
É bastante coerente pensar que, se a NASA admitisse concordar com uma teoria sobre o fim do mundo — e ainda por cima tendo o gênio Stephen Hawking como autor —, a própria agência espacial seria a primeira interessada em ser a fonte desta informação bombástica. E com certeza esse comunicado estaria listado no feed de notícias do site da NASA. Bem, eu vasculhei a listagem e não encontrei nada que fizesse sentido, à primeira vista.
Então, pesquisei pelo nome do cientista falecido em 2017. Entre as quatro páginas de resultados, novamente, não havia conteúdo algum com Hawking teorizando sobre o fim do mundo, tampouco com a NASA concordando com isso.
A última cartada seria procurar pelo outro nome citado na notícia do Globo: Pete Worden, ex-diretor do Centro de Pesquisa Ames na NASA e diretor executivo do Breakthrough Starshot — projeto integrante das Breakthrough Initiatives, que têm entre seus fundadores justamente ele, Stephen Hawking. Bom, guarde essa informação por enquanto e vamos continuar na pesquisa ativa no site da NASA.
Agora sim, ao procurar pelo nome de Pete Worden, começa a fazer sentido a “confusão” da reportagem. “Confusão” se dermos o benefício da dúvida de que teria sido mesmo uma trapalhada homérica, e não uma mentirada na maior cara-de-pau. É que o quarto e o quinto item da lista chamam a atenção. já que o texto do Globo justamente menciona nesse “bololô” a busca por outros planetas habitáveis pelo universo.
Agora, vamos matar a charada. Abrindo os dois links citados acima, nos deparamos com informações sobre palestras ministradas por Worden nos OCS Seminars, eventos anuais promovidos pelo Ames Research Center até alguns anos atrás. E é na descrição de uma dessas palestras que está a origem da notícia falsa disseminada pelo O Globo.
Pelo fato de esta página estar dentro do site da NASA, a reportagem foi no mínimo extremamente infeliz ao pegar o resumo de uma palestra ministrada por um ex-funcionário, e transformar isso em uma confirmação da agência espacial a tais ideias sobre a extinção da humanidade. Ideias essas condizentes com o que Stephen Hawking realmente pensava e chegou a falar sobre com a imprensa em 2017, estando bastante alinhado com os argumentos e previsões de seu colega Worden.
Não é porque a NASA cedeu palco a um palestrante, que ela endossa, concorda, afirma ou confirma qualquer informação proferida por ele em um seminário. É como se falássemos que “Globo confirma: Dilma sofreu mesmo um golpe” apenas porque em meio ao catálogo do Globoplay consta o documentário “Não Vai Ter Golpe”, que argumenta neste sentido. É uma analogia distante, porém precisa para contextualizar onde foi que a notícia “Nasa confirma teoria do ‘fim do mundo’ de Stephen Hawking” errou feio, errou rude.
Mas não é só isso. Como tudo o que é ruim ainda pode piorar, eu ainda apurei que os eventos em questão, com a participação de Worden, aconteceram em 2018 e 2019, apenas. É só conferir na listagem de seminários já realizados. Pois é, sequer se tratava de um acontecimento recente, que dirá novo, fresco, digno de uma notícia escandalosa como a publicada no Globo.
E, por mais absurdo que pareça, a tragédia não acaba aqui. Como se publicar algo tão incorreto em seu site — um dos mais visitados do Brasil — não causasse danos suficientes, para piorar a notícia falsa também foi parar no Instagram do Globo, no mesmo tom alarmista e se pautando na mesma fake news, só que em vídeo com direito a apresentadora e tudo. É a ponta final de uma sequência de erros crassos cometidos durante a etapa mais primordial da prática do jornalismo — a apuração das informações.
O jornalismo é coisa do passado, agora a moda é publicar adoidado
Eu peguei um pouco pesado mesmo no título deste artigo (que, convenhamos, se revelou um verdadeiro guia de como praticar a apuração de fatos no jornalismo científico). Eu generalizei, afirmando que “a imprensa brasileira desistiu do jornalismo”, mas porque estamos falando de um peso-pesado da mídia nacional. É O Globo, que faz parte do Grupo Globo, o maior conglomerado de mídia do Brasil e da América Latina.
Conforme consta no relatório Open.Trends 2024, elaborado pelo Semrush, o portal globo.com foi o terceiro site mais acessado pelos brasileiros em setembro deste ano. E este portal exibe conteúdos publicados em todas as propriedades do grupo — incluindo o site do Globo. Ou seja, a responsabilidade com qualquer informaçãozinha publicada ali deveria ser gigantesca. Mas fica claro que, neste caso, o senso de responsabildiade acabou tomando chá de sumiço.
Só que essa história fica ainda mais tenebrosa. É que a autoria do texto original não é do Globo, ainda que este seja responsável pelo conteúdo hospedado em seu site. Ao abrir a notícia, vemos que o texto é uma reprodução integral e traduzida da publicação original do colombiano El Tiempo, que tem parceria de mídia com o veículo brasileiro — e até aí, tudo bem. Deixa de estar tudo bem a partir do momento em que o Globo reproduz, sem qualquer correção, uma notícia sensacionalista e mentirosa liberada por um site parceiro, que não obrigatoriamente se sujeita aos Princípios Editoriais do Grupo Globo.
Não fica claro se todo e qualquer conteúdo do El Tiempo é traduzido automaticamente e replicado sem aprovação humana alguma, ou se há uma curadoria na seleção dos conteúdos, bem como uma revisão das notícias antes de irem ao ar. Mas tanto faz neste caso, já que o processo falhou independentemente de qual seja a dinâmica vigente nesta parceria.
Tanto faz porque, a partir do momento em que uma informação é publicada no domínio de um veículo de imprensa (ainda mais da grande imprensa, da mídia tradicional), para o leitor quem assume a posição de autor da notícia é este veículo. Tanto faz quem “assina” o artigo. E tanto faz se o Grupo Globo se isenta de responsabilidades quanto ao conteúdo fornecido por parceiros. Legalmente, beleza. Mas, para o leitor, quem atesta tudo aquilo é o site do Globo e ponto final.
Se foi publicado ali, deve ser verdade. Afinal, é O Globo, certo? Resultado: o artigo que promove a desinformação já lidera desde cedo a lista das Mais Lidas daquela seção — e duvido que saia dali tão cedo.
Na verdade, a tendência é que sua audiência “exploda” ao longo do dia, à medida que a notícia vai circulando pelos quatro cantos da internet. Considere, também, que a reprodução do Globo já está sendo usada como fonte para “n” outros sites que também não se lembraram das primeiras aulas da faculdade de jornalismo, e cegamente confiaram na “palavra” do Globo, replicando aquele material sem medo de ser feliz.
Logo agora pela manhã, constatamos exatamente este cenário. A fake news, encabeçada ainda que “sem querer” pelo Globo, é o destaque principal quando se pesquisa por “NASA” no Google durante a produção deste artigo.
Chega de “NASA confirma” só para atrair cliques
Uma estratégia manjada para atrair cliques é afirmar qualquer blá-blá-blá sob um título que começa com “NASA confirma” e variações, para dar uma falsa sensação de credibilidade àquele blá-blá-blá. Esta prática — desonesta, diga-se de passagem — visa somente “bombar” aquele link, já que quanto maior o número de visitas, maior será a receita obtida com publicidade naquela página.
Ou seja: quem conscientemente adota esse tipo de estratégia “do mal” para inflar seus números — e, de repente, bater mais facilmente suas metas quantitativas —, está pouco se importando com as consequências qualitativas disso, no que diz respeito ao impacto de uma manchete sem-vergonha em quem consome aquela informação — a população.
E os “trocentos” outros sites que estão nem aí para a qualidade do conteúdo, pensando apenas em métricas quantitativas, chegam com a cereja de um bolo que ninguém queria comer, mas que nos tem sido enfiado goela abaixo e, ainda por cima, acaba provocando um piriri daqueles, porque seus ingredientes já estavam com a validade vencida.
“Isso a Globo não mostra”. Mas o site O Globo, decidiu mostrar. Intencionalmente ou não, talvez a gente nunca descubra. Fato é que, tenha este sido um “erro honesto” da rotina conturbada de uma grande redação, tenha sido uma negligência intencional para priorizar ganhos ardilosos, o estrago já foi feito.
Por fim, espero apenas que este imbróglio sirva como um chacoalhão a pelo menos alguns líderes do mercado da informação. Tem que ser viável estabelecer metas de crescimento sem necessariamente assassinar a qualidade do conteúdo. Tem que ser possível obter números sem vender a alma.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.
Tomara que a redação do O Globo tenha visto sua crítica. Não gosto de me sentir lesada, principalmente por quem tem a obrigação de falar a verdade, como os jornalistas se dispõem a fazer. Se vejo que o veículo não fala a verdade, eu deixo de seguir, de assistir e de ler e, acredito que, assim como eu, muitos também o fazem. O click bait funciona bem á curto prazo, pois atiça a curiosidade do leitor. Mas, á longo prazo, torna- se cansativo, e quebra a confiança que antes o leitor assíduo do jornal tinha, pois ninguém gosta de ser enganado ou, se sentir assim. Como resultado, a audiência ou o número de leitores vai caindo, pois ninguém confia mais em um veículo que divulga fake News. Um deslize desses não pode se repetir, ainda mais por um veículo de renome, isso pode prejudicar a imagem do jornal. Tomara que vejam a sua crítica e prestem mais atenção!