Num texto com cheiro de IA, Lance dá título ao SPFC e Morumbi como sede da Copa de 1982

Se você entrar hoje no site do Lance, vai se deparar com um artigo sobre como o ano de 1979 foi importante para o São Paulo Futebol Clube. Ele tem aquela estrutura típica de texto feito por IA para ganhar pontos de SEO no Google, e pode passar batido como apenas mais um conteúdo vazio e desinteressante entre tantos outros na internet. Mas a edição esconde uma história que não passou batido pelos prints.

Como apontou Michael Serra no Bluesky, a versão original deste artigo foi publicada com alguns erros tão grosseiros que fica claro não ter passado por nenhuma checagem de fatos feita por humanos. Um destes erros “printados” por Michael foi a informação de que o SPFC foi campeão paulista no ano de 1979, que teria vencido o Corinthians por 2×0 na final.

Print do texto original publicado no site do Lance, que aponta o São Paulo como campeão paulista de 1979 (Créditos: captura de tela/Michael Serra)

O problema? Esta final entre São Paulo e Corinthians aconteceu na Paulista de 1980! Em 1979, o campeão foi o Corinthians. Além disso, o São Paulo nem chegou nas fases finais daquele ano: as semifinais do paulistão de 1979 contaram com Corinthians, Palmeiras, Guarani e Ponte Preta.

Outra informação claramente errada que constava na matéria original era a de que o Morumbi teria sido reformado para ser sede da Copa do Mundo de 1982. O problema é que esta Copa não aconteceu no Brasil, mas na Espanha.

Print do texto que falava sobre o Morumbi ter sido reformado para ser uma das sedes da Copa do Mundo de 1982 (Créditos: captura de tela/Michael Serra)

Uso indiscriminado de IA pelo Lance?

Ainda que a versão atual do Lance já foi corrigida, existem sinais claros de que os prints são reais. Primeiro: dá pra perceber que o texto atual é exatamente o mesmo dos prints, com algumas pequenas modificações para corrigir as informações erradas. Uma destas modificações é que o texto atual não fala mais que a temporada de 1979 foi marcada pelo São Paulo campeão paulista, mas como o início da trajetória do time que se tornou campeão paulista em 1980. Com exceção dessas pequenas modificações, todo o texto permanece exatamente igual aos prints.

Mas a bala de prata mesmo está neste print aqui: o snippet do Google não foi atualizado, e ele continua mostrando a informação de que o São Paulo foi campeão paulista em 1979.

Snippet do artigo do Lance na busca do Google, mostrando a informação de que o São Paulo foi campeão paulista em 1979 (Créditos: captura de tela/Patricia Gnipper)

Outro ponto que pode apontar o uso indiscriminado de IA está na autoria da matéria, que atualmente é atribuída ao perfil de redação genérico do Lance!, mas no original estava assinada pela repórter Isabella Zuppo. O problema é que essa Isabella Zuppo não parece existir.

Quando procuramos no Google por “Isabella Zuppo Lance”, os únicos resultados que aparecem são matérias assinados por ela dentro do site do Lance, e nenhuma outra presença virtual fora dali. Existem Isabellas Zuppos ativas no Linkedin e no Instagram, mas nenhuma delas possui qualquer relação com a prática jornalística ou o site do Lance. Eu não estou dizendo que a Isabella que escreve pro Lance não existe; apenas que, se ela existir, ela é a pessoa mais low profile do mundo e eu quero que ela me ensine como escrever para a internet sem deixar nenhum outro rastro de existência online.

Atualização: de acordo com o nosso leitor Bruno, a Isabella Zuppo é uma jornalista real e que gravou pelo menos um vídeo pela faculdade da ESPM. Então reitero aqui: se alguém conhecer a Isabella, por favor pede pra ela me ensinar como atuar com jornalismo e ser tão low profile assim na internet. Não é brincadeira, eu quero aprender mesmo!

Por que isso é um problema?

Ainda que usar IA para escrever artigos inteiros não seja exatamente proibido, criar perfis falsos para fingir que esses textos foram escritos e publicados por pessoas reais é algo problemático.

Primeiro, para os mecanismos de buscas: os algoritmos de SEO do Google dão preferências para bons textos que foram escritos por humanos. Não quer dizer que ele não vai mostrar nada que foi criado totalmente por IA, mas se um texto criado por IA segue todas as regras de otimização para aparecer nas buscas do Google e um escrito por humano segue as mesmas regras, o texto do autor humano irá aparecer antes nos resultados de pesquisa. Então, usar perfis falsos para fingir que uma IA é um autor humano é uma tentativa de enganar o algoritmo do Google e pode acarretar em penalizações para o site caso ele seja descoberto.

E, claro, também tem a questão ética. Afinal, os leitores costumam confiar mais no conteúdo dos textos quando eles acreditam que foram escritos por humanos. Então, tentar fingir que um texto de IA não foi escrito por IA é uma forma de tentar enganar o seu público. Novamente, não estamos acusando aqui o Lance de criar perfis falsos para publicar textos de IA. Só estamos explicando o porquê tantas publicações ainda não transferiram todo o trabalho da redação para a IA mesmo após o fenômeno Chat GPT.

Recentemente, uma publicação do Grupo Abril foi alvo de um escândalo envolvendo a publicação de textos de IA sob perfis falsos. No início do ano passado, o Aos Fatos apurou que os textos publicados no site Bebê.com.br pela autora Vanessa Tavares na verdade eram todos produzidos por IA. A autora também não existia, e fontes de dentro do Grupo Abril confirmaram que se travava de um nome fictício. Depois de descobertos, todos os textos da autora foram deletados.

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