Por Pedro Zambarda, editor-chefe.
No dia 28 de fevereiro de 2024, após atraso denunciado por este Drops de Jogos, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (ABRAGAMES) divulgou a Segunda Pesquisa Nacional da Indústria de Games que estava prevista para 2023. O que as pessoas não sabem: O levantamento que está no ar é uma segunda versão.
Em menos de uma semana, devido a equívocos de informação, o arquivo da pesquisa foi modificado. E mais: A nova versão traz erros e dados do levantamento nacional de 2022.
Você pode ver os dois documentos abaixo.
As informações foram checadas pela reportagem do Drops de Jogos e apuradas com outras fontes. Lemos página por página.
O documento abre com uma declaração do presidente da ABRAGAMES, Rodrigo Terra, de que a próxima pesquisa será executada somente em 2025. A GA Consulting, responsável pelo relatório e que não respondeu às dúvidas sobre o lançamento dele, afirma que este levantamento, que é referente ao ano de 2023, está dividido em seis partes.
É irônico que na página 11, a pesquisa utiliza como referência a Pesquisa Game Brasil (PGB), de consumo, que já lançou sua versão de 2024 antes mesmo do levantamento encabeçado pela ABRAGAMES. Fora isso, a pesquisa da indústria elenca dados conhecidos da Newzoo, pesquisa conhecida por expor dados brutos e poucas análises detalhadas do mercado global.
A partir da página 15, começam a surgir os problemas na nova pesquisa, envolvendo escolhas que parecem não representar a indústria brasileira como um todo e uma correria para mudar tudo antes que estoure uma nova crise.
O que aconteceu com a história dos games brasileiros?
No documento original, de 28 de fevereiro, constava no slide 15 a “história da indústria brasileira de games”. Na apresentação dos dados, é colocado como marco inicial o game Amazônia, de Renato Degiovani, de 1983. Essa informação constava na Primeira Pesquisa Nacional da Indústria. Segue para Guimo, da Southlogic, primeiro game distribuído internacionalmente em 1987 segundo esse documento. Depois é relatado o discurso de Gilberto Gil afirmando que games são cultura em 2003 na EGS e a fundação da ABRAGAMES em 2004. Dados da indústria nos anos 1990 não estão nesse infográfico.
Na página 17, consta que Horizon Chase foi o primeiro game indie brasileiro premiado no BIG Festival e que Diorama e Kokku fizeram parte do desenvolvimento dos robôs de Horizon Zero Dawn, jogo triple A da Guerrilla com a Sony. O problema é que a última informação não é bem verdade e o Drops de Jogos cobriu 2017: foi a Diorama quem de fato modelou os robôs enquanto a Kokku participou e fez as conexões nesse trabalho de outsourcing. O caso foi tratado por desenvolvedores de jogos em um grupo de WhatsApp. Essas informações estão documentadas por nossa reportagem, que cobriu quando a Kokku afirmou que fez o projeto e a Diorama depois contestou essa informação.
Na página 18, a Wildlife é mencionada como “unicórnio brasileiro” por valer US$ 3 bilhões em 2019. Nenhuma palavra sobre suas demissões em massa. E eis que surge a desenvolvedora ARVORE na timeline.
E, nesse caso, faltou um pouco de transparência, o que também foi apontado por desenvolvedores de jogos brasileiros em um grupo de WhatsApp.
ARVORE Immersive Experiences é uma empresa de VR de Ricardo Justus, filho do empresário Roberto Justus, com Rodrigo Terra, o atual presidente da ABRAGAMES. O executivo pareceu promover a própria empresa dentro do levantamento assinado pela GA Consulting.
De forma correta, eles mencionam YUKI, game VR da ARVORE, que aparece como finalista na premiação DICE. Pixel Ripped, que é um jogo de realidade virtual pioneiro de Ana Ribeiro com a ARVORE, não é mencionado. E nem sua parceria com a Atari, gigante do mercado, em 2023. Não dá para entender qual foi o critério para incluir informações ou não.
As aquisições da PUGA e da Oktagon pela Room 8 e pela Fortis Games são mencionadas no infográfico. A compra da Aquiris, associada da ABRAGAMES, pela Epic Games, estranhamente, não é mencionada no infográfico, embora essa operação, marcante em 2023, consta no texto corrido na página 14.
Com as críticas circulando pelo zap, a ABRAGAMES mudou o arquivo todo, deixando apenas a história da indústria em 2022 e 2023 nas páginas 15 e 16, apagando inclusive a informação sobre os anos 1980 que estava bem documentada. E isso não foi explicado ao público.
Erros e imprecisões persistem
A pesquisa estava prevista para entre junho e agosto de 2023. De forma estranha, a ABRAGAMES e a GA Consulting reabriram para coleta de dados em outubro de 2023. E as informações seguem o que foi publicado em 2022, fora os dados imprecisos.
Eles apontam para 1042 estúdios em 2023, uma alta de 3,2% em relação aos 1009 de 2022. O estudo não aponta desaceleração no mercado e faz uma ponderação muito superficial sobre a demissão em massa que está acontecendo na indústria. Só na Wildlife, foram cerca de 300 demissões, pelo que podemos apurar nas notícias da imprensa.
A palavra demissões aparece primeiro no texto de abertura de Rodrigo Terra, o presidente da ABRAGAMES:
“Vemos, por exemplo, que este foi um ano de muitas decisões globais para os players da cadeia, principalmente para aqueles que contratam estúdios (sejam os fazem negócios em licenciamento, em serviços e/ou com propriedade intelectual própria). Também foi um período de grandes mudanças nos contratos de publicação de jogos (cancelados, postergados, etc.). Como boa parte do mercado de produção de games é internacionalizada, e existe uma certa dependência do capital estrangeiro obviamente isso afetou a capacidade dos estúdios nacionais, não só em relação à capacidade produtiva, mas no que diz respeito a demissões e capacidade de geração de receita”.
Não há um desenvolvimento do assunto na situação dos trabalhadores da indústria. O relatório aponta que não há lideranças indígenas no assunto diversidade e que as mulheres seguem com representação muito aquém diante do mercado consumidor, assunto abordado na página 60.
A segunda vez que a palavra demissão aparece na pesquisa é na página 53, já na nova versão da pesquisa. E ela aparece com uma informação errada:
“Mesmo com o grande número de demissões ocorrendo nas maiores empresas durante o ano de 2022, estima-se que 784 pessoas passaram a trabalhar nas desenvolvedoras de games brasileiras”.
O ano correto é 2023. No infográfico ao lado, ele aparece corretamente.
Na página 127, a pesquisa da ABRAGAMES aponta impactos de problemas de saúde mental e fechamento de clientes no período pós-pandemia. O desemprego não aparece como consequência dessas decisões.
E há mais problemas de edição. Na página 121:
“Já o Simpósio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital (SBGames),cujo enfoque principal é a discussão acadêmica, confirmou seu perfil itinerante, sendo sediado em Natal, RN, durante o mês de outubro de 2022. Organizado nas trilhas de Artes & Design, Computação, Cultura, Educação, Indústria e Saúde, o evento recebe submissões de artigos produzidos por pesquisadores do Brasil e do mundo. A próxima edição, 2023, ocorrerá em novembro em Rio Grande, Rio Grande do Sul”.
O SBGames 2023 já aconteceu. O texto, redigido pela GA Consulting com a ABRAGAMES, tem sinais de que não foi revisado.
Insistência em Metaverso e NFTs
Mais um sinal de problemas na pesquisa está a partir da página 132, de tendências de mercado. NFTs e Metaverso são apresentados como novidades que podem impactar o meio, mas o texto parece ter sido tirado de 2022.
Inteligência Artificial, no entanto, uma tendência muito mais pesada de 2023 e 2024, além de ser responsável pelas demissões, aparece uma única vez no documento, na página 80, no infográfico “Serviços Utilizados” pelas empresas.
Não há um desenvolvimento maior sobre o assunto que é a principal tendência de qualquer indústria e economia criativa.
Positivamente, é curioso como a pesquisa lembra até de premiações da imprensa nacional, como a do IGN Brasil e deste Drops de Jogos. Mas derrapa em informações essenciais.
Além dos erros: Sem novidades
A imprensa tentou ressaltar os pontos principais da pesquisa. Não há novidades no levantamento, além da linguagem positiva num momento de demissão em massa.
Unity permanece sendo o motor gráfico usado pela maioria dos desenvolvedores de games, mesmo com a cobrança por downloads. São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul concentram a maioria dos estúdios.
A impressão é que não houve uma preocupação nem com a atualização dos dados.
Marcos Vinicius Cardoso, o MVC, assina a pesquisa pela GA Consulting, assim como seu sócio Cláudio Gusmão, também empresário pela UX4Indie. Na primeira reportagem que produzimos, Gusmão negou envolvimento com a pesquisa. Parece que ele faltou com a verdade, porque ele assina o relatório.
Nervosismo nos bastidores
Estivemos em contato com diferentes fontes. A cúpula da ABRAGAMES promove reuniões mensais e fez um encontro digital para que Marcos Vinicius Cardoso desse explicações sobre os erros contidos na pesquisa de 2023 que chegou atrasada.
Na conversa, houve uma promessa de revisão de erros e um pedido de desculpas do MVC.
Portanto, além de duas versões diferentes da pesquisa de 2023 divulgada em 2024, é provável que a Segunda Pesquisa Nacional da Indústria de Games tenha uma terceira versão.
O site Metrópoles afirmou em 18 de setembro de 2023 que a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) citou a desaceleração da indústria de games ao prorrogar, no fim do governo Bolsonaro, um convênio de R$ 8,8 milhões com a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Games (ABRAGAMES).
De acordo com a reportagem, documentos da própria entidade apontam um cenário oposto, com expressivo crescimento do setor. Essa informação parece ter sido mantida nessa última pesquisa.
Para que todos saibam, a parceria de financiamento com dinheiro público da Apex e do governo federal foi estendida em 8 de dezembro de 2022. Ela irá até dezembro de 2024.
Outro lado
O Drops de Jogos procurou a ABRAGAMES para obter seu posicionamento sobre o texto da pesquisa. Enviamos as seguintes perguntas:
1. Por que vocês mudaram a versão da pesquisa em menos de uma semana após atrasar a pesquisa de 2023 para sair só em 2024?
2. Por que a primeira versão contava a história da indústria desde 1980 e, nesta nova versão, algumas informações da ARVORE e da própria história foram suprimidas?
3. Por que a pesquisa da ABRAGAMES de 2023 lançada em 2024 tem uma informação sobre o evento SBGames que já aconteceu em 2023?
4. Faltou uma revisão técnica da GA Consulting neste trabalho?
5. Por que a palavra demissões só aparece duas vezes na pesquisa e não como consequência da crise econômica pós-pandemia?
6. Por que só haverá pesquisa nova em 2025? Há alguma razão específica?
7. Tem algo que eu não perguntei e vocês gostariam de acrescentar?
Rodrigo Terra, presidente da ABRAGAMES, respondeu da seguinte forma:
1. Como representante da indústria, a Abragames mantém um canal de diálogo aberto e constante com os estúdios e profissionais do setor. Entre os feedbacks que recebemos após o lançamento da pesquisa, houve pedidos de inclusões de mais tópicos na linha do tempo. Para não ser injusto com quem também poderia estar ali, preferimos focar nos anos de 2022 e 2023 – únicos anos não presentes na excelente cronologia publicada na primeira edição do estudo.
Em relação à data de divulgação do estudo, não houve atraso. Como explicado no próprio estudo, para entregar um resultado melhor, houve uma “decisão de estender o prazo de recebimento do questionário ao longo de 2023, permitindo que mais estúdios pudessem contribuir com informações sobre seus anos de 2022. Como consequência, tivemos que adiar em três meses a divulgação da pesquisa, que sairia no fim de 2023, mas com a certeza de que o material entregue estaria muito mais rico e completo. Foi uma decisão essencial para que as comparações ano a ano fizessem mais sentido e para incluir mais pontos relevantes ao estudo”.
2. Justamente pelos motivos apresentados na resposta anterior.
3. Essa informação estava na prévia da pesquisa e poderia ter sido atualizada. De qualquer maneira, é um dado que não compromete de forma alguma a qualidade da pesquisa.
4. Não. A GA Consulting fez a revisão técnica seguindo todos os padrões de conduta dessa tarefa
5. A pesquisa reflete o cenário obtido a partir das respostas dadas pelos estúdios, e as demissões também fazem parte desse contexto. A informação está presente no material, assim como a pandemia, que é citada 16 vezes ao longo do estudo.
6. Prioritariamente, nosso objetivo é entregar um material de qualidade, que reflita a evolução e as mudanças da indústria brasileira de games a cada novo estudo. Em 2023 decidimos prolongar a apuração dos dados e adiar em três meses a publicação da pesquisa para ter um cenário mais completo. Sendo assim, para a próxima edição, vamos planejar a publicação já com esse intervalo maior e então analisar se, de fato, essa é a periodicidade ideal a se seguir.
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