“Indústria de jogos é majoritariamente branca”: dev fala sobre preconceito no cenário

Drops de Jogos entrevista Marcos Silva, da Sue The Real

Marcos Silva, game designer da Sue The Real

O título desta entrevista é óbvio. Mas precisa ser publicado desta forma.

E ele é embasado em dados. De acordo com o 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, realizado pelo extinto Ministério da Cultura em 2018, só 20,7% dos sócios e funcionários de estúdios de games são mulheres, 10% são afrodescendentes, 0,9% é indígena e 0,4% é trans. Os números não mentem.

Em fevereiro deste ano, o Drops de Jogos elegeu Raquel Motta do estúdio Sue The Real como a Desenvolvedora Brasileira de 2019. O trabalho de Raquel e de seu estúdio é importante no aumento da representatividade negra e periférica numa área elitizada como é a área do entretenimento eletrônico.

Recentemente a própria Sue The Real sofreu ataques preconceituosos e racistas promovendo a hashtag #BlackGamesBR em busca de criadores e desenvolvedores que promovam a diversidade e as minorias no cenário.

Para entender o caso, o Drops de Jogos entrevistou Marcos Silva, game designer da Sue The Real e parceiro de Raquel.

Confira a conversa.

Drops de Jogos: Você tem sido um dos poucos desenvolvedores brasileiros que realmente cutuca na ferida da falta de representação negra na cena brasileira de games. Por que você decidiu fazer isso?

Marcos Silva: Quando a gente começou a desenvolver jogos [na Sue The Real], principalmente focado nas narrativas afro-brasileiras, começamos a enxergar de forma bem prática que, para além de fazer os games e tratar dessas temáticas, a gente não via esse assunto sendo levantado na indústria. Falando de indústria, me refiro tanto ao desenvolvimento quanto consumo.

A gente sabe como é organizada a comunidade brasileira e começamos a entender como é a comunidade negra. A comunidade negra está presente, mas, diferente da comunidade norte-americana, ela não se posiciona ativamente para marcar espaço. Lá fora eles usam hashtags como #BlackInGames.

Mesmo sendo de 11 a 12% da população americana, eles se fazem muito presentes nesse espaço de militância. É um espaço de lutas que já aconteceram nos anos 70, 80 e até antes. A gente começou a identificar que, no espaço de fazer jogos no Brasil sobre a comunidade negra, isso também envolvia cuidar da própria comunidade. Não seria positivo, como estúdio, avançar nessas pautas se a nossa própria comunidade não entendesse o que estamos fazendo.

Quando a gente faz jogos focado em pessoas negras, a gente cuida da autoestima de quem joga e de quem produz. Existe um cuidado no trato que temos com isso. Esse espaço inevitavelmente nos colocou no campo da comunicação.

Inicialmente a gente achou que resolveria muitos dos problemas com nossos próprios jogos. Mas a gente começou a olhar para todos esses problemas e pensamos: ‘opa, o jogo é só uma das partes para resolver isso’.

Toda vez que fazemos uma palestra, tanto na periferia quanto no centro, toda vez que abrimos uma live respondendo dúvidas de quem quer entrar na indústria, toda vez que falamos que somos de Guarulhos, que tivemos pouco acesso à educação e sempre tivemos que mover para os grandes centros, isso ressignifica as relações.

De algum jeito a gente teve que cutucar na ferida pelo simples fato de existir.

Toda vez que nos reafirmamos da forma que somos, enquanto pessoas negras e periféricas, fora dos espaços de privilégio, isso de alguma forma gera uma cutucada. E nem é uma cutucada ativa. Somos nós definindo quem somos. É uma cutucada porque há um outro lado que se incomoda com isso. Se fosse natural, a gente não estaria cutucando. Isso, no final, diz muito sobre o que é a nossa indústria. Mostra como ela está organizada e de como esses espaços não fazem uma reflexão de como é essa organização de desenvolvedores. Como de fato está esse ecossistema? Quando aparece alguém que tenta fazer uma manutenção disso, é questionado.

DJ: Na sua opinião, falta um senso crítico aos nossos desenvolvedores? Por quê?

MS: Na verdade falta um senso crítico em toda a cadeia de produção da economia criativa.

Não só da economia criativa, mas da sociedade como um todo. Falta saber sobre o que é a constituição brasileira social. É muito comum ver a gente como apenas força de trabalho, indivíduos que produzem algum conhecimento e pouco se questiona o valor social que temos enquanto indivíduos. Não levam em conta as nossas subjetividades, os passos que percorremos, as trocas. É nessa mesma reflexão que um médico é muito mais validado do que uma pessoa mais velha, sábia, que é invalidada porque seu conhecimento é de outro tipo de subjetividade.

Existe muita ignorância em torno das pautas raciais. Existe muita ignorância sobre gênero. E tudo isso é consequência do não-entendimento do que é privilégio. Considerando a África do Sul, com tudo o que viveu do apartheid, e os Estados Unidos, a gente consegue visualizar que frentes de luta que batem de frente com quem tem poder faz com que as pessoas começassem a refletir sobre seu espaço de privilégio.

Aqui no Brasil falta isso. A gente colocar um pouco a mão na consciência e entender que não é todo mundo que parte do mesmo princípio para criar jogos.

Não é todo mundo que tem um computador. Não é todo mundo que tem a disponibilidade de ficar horas e horas estudando. Esse ideal é falso até mesmo para a grande maioria das pessoas.

A gente sabe como é a nossa indústria. Ela tem pouco investimento, pouca estrutura para se manter e há ainda assim uma relação falsa de que “se eu estou fazendo jogos, é por paixão”. Não. Não é assim. Você está fazendo jogos, muitas vezes, com o privilégio que você tem. Você está fazendo com o dinheiro dos seus pais e muitas vezes você sequer se questiona.

É crítico esse ponto.

DJ: Você acredita que falta uma representação negra também porque os pobres não são representados nos jogos brasileiros?

MS: Antes de ser pobre, existem outros atravessamentos que nos definem. Posso ser uma pessoa negra e pobre. Posso ser uma pessoa branca e pobre. Posso ser uma pessoa amarela e pobre. Isso vai definir sim, de alguma forma, a leitura social e as outras subjetividades. Vou citar o exemplo das pessoas amarelas, que descendem de asiáticos. É interessante notar como existe um perfil social e um estereótipo, às vezes muito errado, de que eles são pessoas ricas. Ou muito inteligentes. Tem toda uma construção social que muitas vezes coloca essas pessoas em uma outra leitura da condição econômica dela.

O que isso causa para efeito prático? Se você colocar numa mesma condição uma pessoa negra periférica pobre e uma pessoa amarela periférica pobre, é muito perceptível que a leitura será diferente em relação com a pessoa negra. Só nesse pequeno exemplo, as pessoas podem estudar no mesmo lugar, ter experiências muito próximas, mas a leitura que será feita é totalmente uma diferente da outra.

Em relação aos jogos, o que se cobra dessa representação e o que não se cobra dos pobres é o seguinte fenômeno: A gente vive num país onde as estruturas de classe estão muito evidentes. Aqui no Brasil dá para entender, embora não seja possível generalizar, quando uma pessoa tem dinheiro e quando ela efetivamente é pobre. Essa leitura é um resquício do tempo do país quando ele era uma colônia que vivemos. É muito fácil enxergar nisso as estruturas que colocavam a oligarquia e quem não iria partilhar dos seus benefícios.

A gente vê isso no caso de uma rua na zona sul de São Paulo que foi fechada porque ali só passava “gente de bem”. Esse tipo de recado é muito bem lido pela sociedade nas pessoas que enxergam quem tem posses, um carro e do valor econômico. É um atravessamento muito forte na sociedade capitalista que vivemos.

É muito presente.

Vimos isso no jornalista Bocardi, da TV Globo, quando ele perguntou ao rapaz se ele pegava bolas no Clube Pinheiros. Ouvi de pessoas muito próximas: “Como assim ele acha que toda pessoa preta é pobre?”. Muitos não viram o atravessamento racista que existe naquela pergunta dele.

Existe uma outra estrutura, que vem desde o colonialismo e que é racista, que é muito mais estrutural na nossa sociedade. Diversos grupos precisam ser representados nos games. Representar pessoas pretas pode ser representar pessoas pobres, mas uma não significa necessariamente a outra. As questões raciais deveriam ser prioridade, mas na sua totalidade.

A escritora nigeriana Chimamanda tem um TED Talks (palestra) incrível sobre o conceito de “história única”. Ela teve oportunidade de estudar e num determinado dia sua mãe a levou para uma zona periférica. Lá ela explicou a necessidade de não desperdiçar comida. O que ela comentou é que não se falou é que as pessoas pobres também são muito trabalhadoras. Representar as pessoas pobres é sempre numa única narrativa? Só existe “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”?

Vale dizer que também faltam representações regionais. Estamos fazendo um jogo chamado One Bit Min tentando sair de referências apenas do Sul e do Sudeste do Brasil. Existem inúmeras representações de periferias que a gente ainda não se atenta.

Não há uma coisa única. Não há uma única representação do povo negro. Essas informações são importantes.

DJ: Nós importamos demais referências internacionais na criação dos nossos jogos?

MS: Quando a gente começou a ter contato com jogos no Brasil, em grande expressão a gente teve como consumidores. Essa construção veio da cultura norte-americana, europeia e asiática. Calibramos a nossa visão para essas. É inegável a influência do Brasil como consumidor histórico de videogames, há paixão e contribuição nossa no mercado. Mas isso esbarra no desenvolvimento.

Uma vez que você consumiu muita coisa de fora e não tem uma produção nacional para conflitar, se alguém quebra esse padrão, inevitavelmente estava com o olhar para outros tipos de cultura, seja quadrinhos nacionais, consumindo nossa própria cultura, folclore. Desse espaço surge uma inquietude e a consciência de que existe um espaço nosso.

Teve o caso de um YouTuber chamado Velberan que comentou crowdfundings que prometeram e não entregaram no tempo ou na forma que as pessoas pediram. Ele citou dois jogos brasileiros, inclusive o Trajes Fatais. No caso específico do Trajes, dentro do folclore brasileiro e do cangaceiro nordestino, a gente entendeu que existe uma obra com significado interessante dentro do gênero de jogo de luta, como King of Fighters.

O que esse YouTuber fez foi criticar e não falar como esse estúdio não conseguiu responder. No final do vídeo ele cita o Zueirama, que tem uma pegada de memes, que a gente se conecta automaticamente, e cita como “excelente exemplo” de um grupo de pessoas que entregaram um game. O problema que mora nessa comparação é pensar que o cenário brasileiro vai ser construído apenas em cima daqueles que “deram sangue” [sem retorno financeiro].

A gente tá num contexto nacional em que não existe apoio aos jogos, há poucos e disputados editais públicos, maioria na zonas Sul e Sudeste, privilegiados em relação às regiões Norte e Nordeste. E a gente não pensa essa cadeia de produção de jogos. A gente ainda no Brasil remunera mal os profissionais em jornadas de trabalho cansativas.

Esse cenário está sendo construído, sim, por pessoas muito corajosas.

Estão batendo contra tudo isso. A gente não deveria romantizar isso. A gente tem que ajudar os projetos e conscientizar as pessoas de que o Brasil não produz como nos Estados Unidos, como no Canadá e na maior parte dos países da Europa. Não estamos no espaço de privilégio.

Eu particularmente acredito na análise sistêmica de alguns efeitos para poder reagir. Acho que dar meu sangue, como o Mano Brown diz na música, se você nasce preto acaba se doando duas vezes mais e está 100 vezes atrás (letra de “A Vida é um Desafio”).

É muito isso. Se a gente quer construir esse cenário, temos que derrubar algumas falácias. Quando vejo alguns jogos brasileiros tentando reproduzir um escopo de grandes jogos ou de títulos médios, a gente sabe que ninguém faz isso sem dinheiro. A gente não pára para pensar na relação entre dinheiro, tempo e saúde, e como isso se gasta.

As premiações do SBGames e do BIG, na primeira tem uma sensibilidade maior. No BIG Festival ainda tem uma meritocracia que não representa a indústria. Você pode trazer grandes títulos como Gris de lá fora, mas a gente começa a ver que a lógica é desleal com toda uma produção com 10 vezes menos recursos de muitos países. Falta um espaço mais saudável, com muita comparação em relação ao exterior.

Isso causa muita dor e sofrimento em cima das expectativas. É um assunto que rende conversas com pessoas em estágios diferentes, com diferentes empresas aqui no Brasil.

Pessoas de outras regiões do país precisam ser escutadas.

DJ: Você recentemente relatou ataques nas redes sociais de teor racista. Pode nos explicar o que aconteceu?

MS: No dia 26 de abril tomamos uma decisão de montar uma pequena peça para postar nas redes sociais falando da experiência de uma das desenvolvedoras reclamando da falta de mulheres no cenário. Pessoas negras e mulheres procuram oportunidades de trabalho. Para além de fazer jogos, resolvemos organizar a comunidade.

As pessoas, que nunca tinham pensado em desenvolver jogos, achavam aquilo interessante. Uma dessas postagens nas redes sociais, no Facebook, foi alvo de ataques – sei que a toxicidade está concentrada no Twitter, mas foi nos grupos que pegou. A gente estava pedindo para as pessoas falarem de pessoas negras que desenvolvem videogames para trocar uma ideia. Colocamos a hashtag #BlackGameDevBR.

Usamos a hashtag porque lá fora isso surte efeito e rende trabalhos para as pessoas. Pensamos sempre na autonomia. A gente quer criar um código para as pessoas se encontrem. O último censo da indústria de games no Brasil mostra que os negros estão numa margem de 10%, um percentual absurdamente pequeno. E há pouquíssimas pessoas empregadas, sendo muito autônomos. Há gamedevs e ilustradores que ganham a vida, na verdade, com a publicidade.

A onde que veio nesses ataques questionava esse espaço estruturante e mostra como a indústria ainda é de homens majoritariamente de brancos. Algo que destoa causa incômodo. Não existe uma sensibilidade do que se fala.

Na chuva de mensagens que recebemos, a gente recebeu uma parte por ignorância em um país que não discute questões raciais, valores sociais, e um outro lado de mau-caratismo – que nós não damos espaço para conversa. Há pessoas ignorantes mesmo que perguntam sobre “falar em afrodescendente ao invés de negro”, o que não é o segundo caso.

Não alimentamos perfis de ódio. Quem reproduz racismo por ignorância, vale conversar. Falou em “mimimi”, a gente ignora.

Há pontos positivos no que aconteceu. Com a postagem, articulamos uma rede interessante de pessoas sensibilizadas que nos ajudaram a responder, na casa de dezenas. Muitos indicaram trabalhos. E uma coisa muito legal é que, ao marcar grandes empresas, e, entre elas, a NVIDIA respondeu. Não esperávamos isso. Eles estão no segmento mais de consumo e houve um apoio muito legal da parte deles.

Muito legal que uma empresa desse porte tenha enxergado a necessidade dessa visibilidade. Mesmo que as empresas não saibam lidar com pautas raciais, mas há espaço para conversar, para dialogar e mudar o ecossistema.

DJ: Como estão os projetos na Sue The Real com a Raquel Motta?

MS: Atualmente eu, a Raquel e o Zé estamos focados no One Bit Min, que vocês já comentaram. Jogo de beatboxes. Estamos na etapa de desenvolvimento. A Raquel está na parte de gestão e comunicação, eu estou na parte de programação e desenvolvimento, e o Zé na arte. A gente começou a se dividir em outras demandas e como elas conflitam com o desenvolvimento.

A gente tira tempo para conversar com a comunidade, inclusive dando entrevistas como essa. São partes complementares para resolver problemas que o jogo contribui para solucionar.

Até o final do ano a gente tem uma posição mais sólida sobre o nosso MVP (produto mínimo viável, sigla traduzida do inglês) e como estará o cenário de eventos depois da pandemia de coronavírus. Estamos curiosos de como vamos mostrar isso para as pessoas, pessoalmente ou no digital.

DJ: Tem algo que eu não perguntei e você gostaria de falar?

MS: Queria falar parabenizar o como a gente admira o papel da imprensa nesses tempos difíceis, de tanta informação que causa ansiedade e como esse papel de escutar pessoas é significativo. Viemos de um grupo de pessoas cujas falas são constantemente invalidadas. A gente se desloca com todo o esforço para tentar de algum jeito se comunicar. Isso é tão sistemático e repetitivo. Tentamos falar com alguns portais e não havia interesse.

Gostaríamos de dizer que é muito importante que a gente seja escutado, assim como a gente escuta muito. A gente espera que todo esse esforço, de vocês fazendo o que amam, vão para que a indústria cresça. No fundo, é um agradecimento diante da solidão.

É um momento difícil que a gente tá vivendo, embora o consumo de games tenha aumentado significativamente.

Grande abraço e obrigado pelo espaço. Valeu!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Bruno Werneck

Isso não é só na área de games. Sou desenvolvedor há 20 anos e fui professor de programação (online) por 4 anos. Durante esse período, só tive 2 alunos negros e um deles não conseguiu aprender direito e desistiu. Falta eduação de base e falta incentivo.

Zafarion

Não tem cabimento chamar isso de preconceito. Quem trabalha na área sabe que mulheres em sua maioria não se interessam por programação, quanto mais programação de jogos.