Você já deve ter topado com alguma dúvida em alguma regra de jogo. Como funciona a carta +4 do Uno, como leiloar uma propriedade no Banco Imobiliário… São dúvidas mais comuns do que gostaríamos de admitir, porque, algumas vezes, passamos um bom tempo jogando de uma maneira err… alternativa e que não coincide exatamente com o que está no manual de regras. (Se bem que, se você comprou o jogo, agora ele é seu, então divirta-se como achar melhor!)
Mas imagine que o jogo não veio com manual de regras. Pior: imagine que NÃO EXISTE um manual de regras!
Em busca da Regra Perdida
Pesquisando jogos de tabuleiro tradicionais, logo descobrimos uma coisa: em alguns casos, sabemos muito pouco sobre as regras dos jogos mais antigos.
Jogos atuais e bem divulgados no mundo inteiro — como xadrez, gamão ou go — hoje apresentam um conjunto de regras tão estruturado que uma belga e um maori podem disputar uma partida de campeonato mesmo sem falar o idioma uma do outro. Mas nem sempre foi assim. Esses jogos não foram criados de um dia para o outro nem com regras tão bem definidas. O gamão tem suas origens no século XVI, o xadrez descende de jogos como o chaturanga, que é do século VI, e o go tem mais de 2 mil anos de existência. Por motivos diversos, as regras desses jogos evoluíram até alcançar seus formatos atuais. Já outros jogos — como o puluc (também chamado de bul), muito popular entre os maias antes de os espanhóis chegarem — não deixaram registros escritos de um “manual”, e foi somente através da cultura oral que suas regras chegaram até nós.
Por outro lado, temos como exemplos de jogos cujas regras praticamente se perderam no tempo o jogo real de Ur e o senet. Ambos são bem conhecidos por quem se interessa por jogos da Antiguidade. Em 1922, uma expedição britânica encontrou, na região de Ur da Mesopotâmia, um conjunto de peças e tabuleiro que ficaria conhecido como o jogo real de Ur. Mais tarde, outros conjuntos seriam encontrados em vários lugares no Oriente Médio, assim como registros de partidas do jogo em pinturas. Baseando-se em inscrições em tabletes de barro, o curador do Museu Britânico Irving Finkel conseguiu deduzir algumas regras. No caso do senet, tabuleiros, peças e representações gráficas foram encontrados em diversas escavações arqueológicas no Egito, sugerindo que o jogo foi muito popular na região durante uns 2 mil anos. No entanto, o senet praticamente desaparece do registro que corresponderia ao período da dominação romana no Egito: o jogo só seria redescoberto com as expedições arqueológicas já na época do imperialismo europeu. Visto que não há registro escrito de como se jogava o senet na Antiguidade, os especialistas deduziram suas regras, baseando-se no tabuleiro, nas peças e nas representações gráficas. O resultado é que hoje circulam por aí diversas versões do jogo.
Regras? Não há regras!
No outro extremo — o dos jogos que sabemos existir, mas desconhecemos completamente suas regras — temos o liubo, o mehen, o zatrikion e o poprad. O liubo é um jogo chinês que deve ter mais de 2 mil anos. Assim como o tabuleiro e as peças que ilustram esta matéria, hoje em exibição no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, existem alguns desses conjuntos em outros museus do mundo, mas não há um registro confiável de suas regras, embora especialistas tentem deduzi-las. Talvez as regras sejam descobertas um dia ou pode ser que nunca venhamos a conhecê-las. O mehen é outro jogo do Egito que data, possivelmente, de 3000 a 2000 a.C. Mehen por acaso também é o nome de uma divindade egípcia, representada como serpente. O tabuleiro do jogo tem a forma de uma cobra enrodilhada. Não há nenhum registro conhecido de suas regras, embora algumas tentativas de recriá-las possam ser encontradas na internet. No começo do século XX, foi encontrado um jogo em Cnossos, um sítio arqueológico na Ilha de Creta. O conjunto de tabuleiro e peças — único no mundo — foi batizado de zatrikion. Infelizmente, não há o menor indício de quais seriam as regras para jogá-lo. Já o poprad, com um tabuleiro de dezessete por dezoito casas, foi encontrado em 2005 na região de mesmo nome, na Eslováquia, no interior da tumba de um príncipe germânico, igualmente sem as regras. Vem sendo estudado desde então, na esperança de que se consiga deduzir como jogá-lo. Curiosamente, um tabuleiro parecido com o do poprad foi encontrado no Egito: são os dois únicos exemplos conhecidos desse tipo de tabuleiro.
Então não reclame da próxima vez que tiver que consultar o manual de regras do seu jogo. Pense que, pelo menos, você tem as regras em mãos!
Jaime Daniel é Promotor Lúdico, sempre presente nos principais eventos de RPG e boardgames em São Paulo, e mantém O Metagamer, com análises e informações sobre jogos, através de seu canal de YouTube.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.